quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Uma noite no topo do trompete

Na fileira à minha frente, na segunda poltrona da esquerda, o gigante Fernando Dissenha, trompete solo da OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo).
No palco, um dos maiores trompetistas da atualidade, o norte-americano Allen Vizzutti. Consagrado mundialmente, o artista já deu shows em mais de 60 países, e tocou em mais de 150 trilhas de filmes campeões de bilheteria como De Volta para o Futuro, Rocky II, Poltergeist II, Star Trek, etc.
A terceira noite da segunda edição do Jazz Trumpet Festival começou com uma bela homenagem a Dorival Auriani, o Buda, que no último dia 15 de janeiro completou 85 anos de idade. Comovido, o veterano trompetista que começou a tocar aos 7 anos, agradeceu em lágrimas a reverência.
“Logo que pensamos em criar esse festival em 2013, eu recorri ao maestro Edison Ferreira, coordenador musical da Faculdade Cantareira, e ele prontamente me atendeu”, conta Marcos Braga, um dos organizadores do evento. “Conheci o maestro Edison quando eu ainda era adolescente, e trabalhava como vendedor em uma loja de instrumentos onde ele era freguês. Durante um ano e meio freqüentei a Associação Músicos do Futuro, criada por ele em Taboão da Serra”, relembra Braga.
A Faculdade Cantareira, por intermédio de Edison Ferreira, cede suas instalações para os quatro dias e quatro noites de masterclasses e concertos com os maiores trompetistas do gênero popular no Brasil e no mundo. No Jazz Trumpet do ano passado o convidado de honra foi o japonês Eric Miyashiro. Nesta edição 2014 o festival deu um bom passo à frente com a conquista do patrocínio da Yamaha Musical.
As marcas Weril e Adams montaram showroom na duração do festival que se encerra na noite desta quinta-feira. Enquanto músicos se desmanchavam de prazer no test drive do trompete de última geração da Adams, o empresário Leonardo contava passagens deliciosas de suas viagens pela Europa, inclusive sobre o dia e lugar onde resolveu batizar sua empresa com o nome Philharmonie.
Antes de subirmos para o auditório, na cantina lotada da faculdade o diretor de marketing Roberto Pinto contou à reportagem que entre as 109 escolas superiores de música autorizadas no Brasil, a Cantareira está no ranking das melhores.

Feitiço de band leader
Assistir a uma apresentação de Allen Vizzutti encanta os ouvidos e fascina os olhos. Dentro de sua camisa amarela Vizzutti extrai do trompete um pouco mais do que o instrumento pode render. Se entrega a cada música com o empenho de um trabalhador braçal. Meneia o corpo, marca o compasso com as mãos quando está livre do bocal, e chega mesmo a dar um ou outro breve grito quando o saxofonista da Speakin’Jazz, que o acompanha, dá estocadas no ar com notas ácidas.
Desafia os colegas de palco para virem à frente do palco, chamando pra briga, num alegre desafio de improvisos. Ele próprio lança seu instrumento para o alto quando satisfeito com alguma peripécia sua, depois de ter feito os pistos de seu trompete vibrarem em escalas inimagináveis.
Se os ouvidos da platéia são totalmente requisitados pela técnica faiscante de Vizzutti, os olhares não têm outra alternativa a não ser ficarem grudados na figura fantástica do músico. Pura veneração.
Top de lista no seu ofício, Allan Vizzutti, no entanto, não se faz de bam-bam-bam com os colegas que o escoltam na eletrizante aventura até o cume do jazz. Comanda todo o espetáculo com a maciez de um gerador elétrico, bem lubrificado.
Dois pensamentos me tocam ao ouvir Vizzutti em Georgia on my mind. Nove entre 10 pessoas atribuem essa música a Ray Charles, quando na verdade Ray só a gravou em setembro de 1960, trinta anos depois de composta. De autoria de Hoagy Carmichael com letra de Stuart Gorrell, já foi feita com jeitão de obra eterna, pois na primeira estrofe refere-se a sí própria como "uma velha e doce canção". O outro pensamento que me acorre perante o tom melífluo que Allen imprime em seu trompete neste número é que, se todo o árabe tem obrigação de ir a Meca pelo menos uma vez na vida, cada cidadão ocidental deveria ter o direito de ir a New Orleans ao menos uma noite na vida para ouvir clássicos do jazz como este. 
Interessante notar que durante a execução de Night in Tunisia, de Dizzy Gillespie, a maestria de Allen Vizzutti se mostrou generosa com Marcos Braga, chamado a um duelo de trompetes. Num determinado momento, quando Braga se volta para trás, olhando alguém ou alguma coisa na orquestra, Vizzutti o puxa pelo ombro enquanto desfere acordes alucinantes. Faz Marcos Braga voltar-se para a frente, como quem diz: “Mantenha o foco, my friend”.
Bonito também foi saber que no seu masterclass pela manhã, Allen Vizzutti elencou as coisas que julga mais importante na carreira de um músico. No que pode ser chamado "Os 5 Mandamentos de Vizzutti", ser um bom músico é o menos importante. Em primeiro lugar, diz Allen, você deve cercar-se de bons amigos e ser bom com cada um deles. Caso contrário, por melhor que você seja com seu instrumento, ninguém vai te dar oportunidades para tocar.
Araken (Yamaha Musical), maestro Edison, Rafael Dias,
Allen Vizzutti, Leandro Lima, Eliezer e Roberto Sales
Fiel ao seu sangue latino, Vizzutti ainda divertiu os expectadores “contando um caso” através do tubo do trompete, com direito a ilustrar as frases meio faladas/tocadas com largos gestos de mão, bem à moda italiana.
No corredor de saída, trocando impressões com companheiros de trabalho, o trompetista Walmir Gil comenta: “Não sei do que é feita a boca do Allen Vizzutti, mas de carne não deve ser”, brinca.
O público ovacionou em pé a hipnótica apresentação de Allen Vizzutti. Devíamos ter aplaudido ajoelhados.

Louvável pela iniciativa de criar o primeiro evento do Brasil voltado para o trompete popular, a organização todavia cometeu, ao menos na noite de ontem que a reportagem acompanhou, um pecado capital. Não havia no fundo do palco as logomarcas do patrocinador e da instituição que está acolhendo o festival.

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