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segunda-feira, 9 de junho de 2025

A reportagem que virou canção

Pedaço do mapa onde Minas ia dar no mar. No destaque, Milton e Fernando
David da Silva

Em 1908, o Governo do Estado de Minas Gerais comprou uma faixa de terra no sul do Estado da Bahia. Pelo estreito território com 142 km de extensão e 12 km de largura passava o caminho de ferro que ligava Minas ao mar. A área pertencia ao Banco de Crédito Real, que havia confiscado a propriedade da Companhia de Estrada de Ferro Bahia-Minas, por conta de um empréstimo não pago. Dois anos depois, o banco faliu, e o filete de terra nunca foi entregue ao comprador.

Fernando Brant lembrou dessa história quando, em 1975, Milton Nascimento lhe mostrou uma melodia que havia composto na noite anterior. Estavam hospedados na casa de um amigo no bairro Peixoto, colado a Copacabana, no Rio. Tinham trabalhado o dia inteiro na música “Saudade dos aviões da Pan Air”. Fernando foi para o quarto dele, dormir. Milton ficou mais um tempo na sala, e quando resolveu ir para a cama, tinha um piano no meio do caminho.

Dois anos antes, em 23.maio.1973, a revista O Cruzeiro publicou uma reportagem de Fernando Brant sobre  a Estrada de Ferro Bahia-Minas fechada pela ditadura militar em 1966. Os trilhos ligavam quatro municípios baianos e oito, mineiros.

A tristeza daquela gente ao perder os seus trens combinava com as notas tristes da melodia do Milton. E Fernando contou em versos aquilo que havia contado como jornalista.
Estação preservada em Ladainha, cidade natal do poeta Sérgio Vaz, morador de Taboão da Serra

Manoel Bernardino de Almeida estava na sua mesa do telégrafo da estação de Ponta de Areia no dia 30.mar.1966, quando veio a ordem de Brasília: o governo do marechal Castelo Branco mandou parar a ferrovia. “Levei o aviso para o chefe da estação”, lembra o telegrafista.

Pessoas com passagens compradas para viajar no dia seguinte. Mercadorias nas plataformas, prontas pra embarcar. Todos pegos de surpresa.

A Maria Fumaça saía às 6 da manhã de Araçuaí e chegava a Ponta de Areia às 6 horas da tarde, parando em 38 estações. Esta história durou de 16.maio.1881 até a triste 3ª-feira de 31.maio.1966, quando a Maria Fumaça soltou o seu último apito.

Vagões-prancha varreram os 578 km da estrada (143 km na Bahia e 435, em Minas) recolhendo do leito da linha trilhos, postes, fios, dormentes. Locomotivas e vagões foram desmanchados na base do maçarico, e levados para derreter nos fornos da Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda (RJ).

Na década de 1850, o jornalista, senador e empresário Teófilo Otoni já falava em ligar o Norte de Minas a um porto marítimo em Caravelas, no extremo sul da Bahia. Em 1878, o engenheiro Miguel de Teive e Argolo escreveu uma série de artigos sobre o plano de ligar o norte mineiro ao Oceano Atlântico. Com o capital de três grandes fortunas da região, o engenheiro deu início à EFBM (Estrada de Ferro Bahia-Minas) em 26.ago.1880.

Para incentivar a empreitada, o imperador Pedro II concedeu à companhia 6 km de terras de cada lado da ferrovia.

O trem começa a rodar em maio/1881.

Por dificuldades financeiras, em 1897 a EFBM foi encampada pelo Governo de Minas. Em 1904, a ferrovia foi arrendada para um empresário.

Em 1908, o Banco de Crédito Real confiscou as terras da EFBM no Estado da Bahia, dadas como garantia a um empréstimo.

Em outubro/1910, o governo mineiro desfez o arrendamento, e passou a EFBM para a União. Em 1911, o governo federal arrendou a ferrovia para a Compagnie de Chemins de Fer Federaux de l’Est Bresilien, empresa franco-belga. Em junho/1934, o contrato foi desfeito, e os trilhos voltaram ao controle da União.

A ferrovia tinha problemas estruturais. Havia trechos com trilhos de segunda mão de 24,8 kg por metro linear (hoje o normal é trilho de 57 kg). Descarrilamentos eram frequentes. Nas baixadas baianas, inundações e deslizamentos de terras infernizavam o fluxo. Os dormentes eram colocados diretamente no terreno, sem lastro.

Em 1948, o Governo de Minas quis retomar a faixa de terra no território baiano. Não rolou.

O assunto ficou adormecido até a reportagem de Fernando Brant reacender o braseiro.

Até ser destruída pela ditadura, a saga da EFBM abrangeu 85 anos de uma região que viu crescer e morrer uma esperança transportada em vagões.

Em exatos dez versos, Fernando Brant resumiu toda a força dessa longa história que você acaba de ler.
Fernando Brant e Milton Nascimento compondo

A reabertura da EFBM vai custar R$ 12 bilhões. O projeto foi assinado em 17.fev.2023 entre a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e a MTC (Multimodal Caravelas). O início das operações está previsto para 2029. Em Araçuaí estão 85% da nossa reserva de lítio, minério usado em baterias de celulares, carros elétricos, notebooks, indústria farmacêutica, etc. A Companhia Brasileira de Lítio e a canadense Sigma Lithium já estão revirando as entranhas do chão de Araçuaí. O novo traçado de 491 km vai transportar o lítio pelo mesmo itinerário da velha Maria Fumaça que ia até Ponta de Areia.

Ouça a música na voz de Vanessa da Mata aqui

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