sábado, 1 de abril de 2006

Macalé no "Cú do Padre"

Publicação original do site Gafieiras. Conheça todo o acêrvo de entrevistas desta equipe. Para o nosso blog, só puxamos as realizadas dentro de botecos.

Entrevista realizada na manhã ensolarada de sábado, 1º de abril de 2006, no Bar das Batidas, em Pinheiros, São Paulo. Oficialmente batizado pelos boêmios como Bar Cú do Padre, por localizar-se atrás da Igreja Nossa Senhora de Monte Serrat.
N.B. (nota do boteco): Hoje o famoso Bar Cú do Padre, na Rua Padre Carvalho, 799, não existe mais. Em seu lugar sobrevive uma sórdida espelunca. Há um belo registro de como era bom este boteco no site Carne Crua.

(Enquanto aguarda Jards Macalé e José Luiz Soares Jr., a equipe consome algumas cervejas, ouve a rádio sintonizada pelo dono do bar (Alpha FM) e prepara o equipamento para a entrevista. Mais tarde, surge a dupla.)

José Luiz Soares Jr. - E aí, Tacioli, cortou a juba?
Ricardo Tacioli - Ah, faz tempo. E faz tempo que a gente não se vê.
Daniel Almeida - E aí, vai de cervejinha?
Jards Macalé - Água, água, sem gás e sem gelo. [ Responde olhando o fascículo da série História da Música Popular Brasileira, editada pela Abril nos anos 1970 ] Uma das poucas fotos do Gotham City é esta aqui.
Dafne Sampaio - É da apresentação do Gotham City, né?
Jards - É, é. Uma das poucas. [ silencia e observa ]
Dafne - Como foi ontem? [n.e. Referência ao show-solo realizado na noite anterior no Villaggio Café, em São Paulo ]
Jards - Foi ótimo. Pergunte ao proprietário. [ risos ] [ n.e. O produtor Zé Luiz Soares ]
Zé Luiz – Foi maravilhoso.
Dafne - Vou lá hoje.
Zé Luiz - Do meio para o fim fica uma atmosfera... Eu já havia percebido quando fizemos um show no Supremo, há uns dois ou três anos. O show começa bem, mas do meio para o fim vira um clima, as pessoas não querem deixá-lo...
Dafne - Fui um show em que havia vários convidados...
Zé Luiz - Foi uma série de shows da Lua. [ n.e. A gravadora Lua Music ] Chamava-se Lua no Supremo.
Dafne - Ah, então não foi esse, não.
Zé Luiz - Foi o Jards sozinho. Mas, no final, as pessoas não queriam deixá-lo sair. E é aí que ele quer sair mesmo, cansado.
Jards - Tem uma hora que cansa, né?!
Max Eluard - Foi um show em que o Itamar [ n.e. O músico paulista Itamar Assumpção (1949-2003) ] surgiu como uma entidade, não?
Zé Luiz – Foi esse mesmo. O engraçado que eu estava sentado numa mesa do fundo e eu tinha que apresentar o show. Aí subi e apresentei. Quando voltei a minha cadeira já estava ocupada. E pelo Itamar. Daí peguei uma outra e fiquei assistindo o show ao lado do Itamar. Dei sorte. Foi essa noite mesma.
Jards - O Itamar falou muito nesse dia?
Zé Luiz - Não falou muito. Acho que ele já estava meio doente...
Tacioli - Como era a sua relação com o Itamar , Jards?
Jards - Ótima, ele era meu amigão. Uma figura! Meu amigo, porra! E eu ficava surpreso como ele conseguia fazer tanta música. Eu não tenho dificuldade para fazer música, mas eu estava num momento muito bloqueado. E eu o via fazendo música sem parar. Tanto é que o Caetano me deu três letras para eu fazer a música, acabei não fazendo e ele fez uma delas. Aliás, de vez em quando ele me dá umas letras, mas estou em outra lua e acabo não fazendo. Caetano me deu uma música em Londres, aquela assim: [ canta ] “Ah! Que esse cara tem... Ele é quem quer / Ele é o homem / Eu sou apenas uma mulheerrr!”. [ n.e. Referência à música “Esse cara”, lançada em 1972 no LP Drama - Anjo exterminado, de Maria Bethânia ] Aí levei para o quarto e fiquei três meses olhando para a cara dele. Não bateu! E um dia ele foi ao meu quarto e pegou a letra. "Cê não vai fazer, não, vai?!" “Tô aqui pensando uma porrada de coisas...” Aí ele escreveu no livro dele, como é que se chama, "Mentira..." [ risos ]
Max Eluard - Verdade tropical. [ n.e. Livro autobiográfico de Caetano Veloso, lançado em 1997 pela Companhia das Letras ]
Jards - Ah, é, Verdade tropical. Ele diz que eu não fiz porque não quis bancar o veado, não-sei-o-quê. Eu não tenho esse problema, não, não sou veado. E não tenho nada contra os veados, muito pelo contrário. Enfim, têm vezes que não pinta, têm vezes que pinta.
Quem tem Barão não tem que lamber saco de Rolling Stones
Tacioli – Você falou que neste contato com o Itamar você se encontrava numa fase pouco criativa. Quando foi isso, Jards?
Jards – De vez em quando, pinta; de vez em quando, não pinta. De repente você tem muita coisa na cabeça, de repente você não tem nada na cabeça. Eu fico variando entre tudo e nada.
Tacioli – Agora você está variando entre?
Jards – Agora estou com tudo. [ risos ]
Zé Luiz – Ontem ele tinha quatro discos para vender, né?
Jards – Quatro discos. Tempo atrás não tinha nenhum. Graças à Lua, à Atração e, agora, à Biscoito Fino [ n.e. Gravadoras que recentemente lançaram álbuns do cantor e compositor carioca ], mas todas são primas-irmãs. Na Lua foram dois. E todos, acredito, saíram bacanas.
Dafne - Segunda-feira agora teve um show no Rio, nos Arcos da Lapa, o Fora de Ordem.
Jards – Isso.
Dafne - Como foi e como está essa história com a Ordem? [ n.e. Ordem dos Músicos do Brasil que, segundo a Funarte, é o “órgão que fiscaliza, em nível nacional, o exercício da profissão de músico”, cabendo a entidade “emitir carteiras de registro profissional para compositores, regentes, instrumentistas, cantores, professoras, arranjadores e outros, tornando-os aptos ao exercício”. ]
Jards - A Ordem foi um organismo criado em 1962, se não me engano. E colocaram lá um cara que é presidente até hoje, o Viana [ n.e. Valme Lopes Viana ], entre outros cupinchas.
Dafne – Isso lá no Rio, né?
Jards – No Rio.
Dafne – Tem o Sandoli também. [ n.e. Wilson Sandoli, presidente da unidade paulista ]
Jards – Esse também. Desde o Golpe de 64 estão no poder. Quero dizer, aquele tipo de poder. E um negócio absurdo porque a Ordem não faz nada de concreto pra você usar. Por exemplo: você paga uma anuidade para manter o número de registro de sua Ordem; o meu é 12.390. Todo anos tenho que pagar uma anuidade. Se eu não pagar essa anuidade eu não trabalho. Vai um fiscal lá e multa e faz o diabo a quatro. Agora, pagar somente pra ter um registro... Ninguém é obrigado a se associar à porra nenhuma, como diz a Constituição. Você não é obrigado a ser sindicalizado, você não é obrigado a entrar em Ordem, você não é obrigado a nada pra exercer o seu ofício. Você faz o que o seu talento mandar. Agora, cobrar uma taxa, me proibir de trabalhar se não pagar essa anuidade, é uma obrigação? É um absurdo! Inauguraram umas comissões permanentes - as câmaras setoriais - lá na Funarte [ n.e. Fundação Nacional da Arte ], uns estudos, umas reuniões que o próprio Governo pediu para que se discutisse a situação da música, do músico. E a Ana de Hollanda, que é musicista, cantora e diretora do Centro de Música de Funarte, disponibilizou as salas da Funarte pra essas discussões. Os músicos, que não são muito dessa história, são meio lelés da cuca, passaram o ano inteiro discutindo e fizeram um documento, um abaixo-assinado, pra que se tivesse novas eleições na Ordem. Mas a Ordem adianta e atrasa as eleições... Aí o Eduardo Camenietzki levou o manifesto lá. E saiu um bate-boca entre ele e o Viana. Aí, com essa mania de comissão de ética no Brasil, mania de cassação, fizeram uma comissão de ética pra julgar a expulsão do Eduardo e a cassação de seu registro. Ele é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele toca, é músico, grava, faz essas coisas todas, se cassar o registro do cara, acaba seu trabalho. E fizeram essa bobagem de querer cassá-lo. Está em processo. Finalmente os músicos tiveram uma luz nessa história. Aí nos reunimos e fizemos um show na segunda-feira, Fora de Ordem , com várias participações. Foi uma demonstração de força concreta dos músicos. Aquilo não foi brincadeira. Os próprios músicos produziram o show; tudo direitinho. Um show maravilhoso! Eu, por exemplo, me livrei do meu violão e toquei com o Frejat, com o Barão Vermelho. Não é a primeira vez que o Barão Vermelho me salva. É a segunda. Uma vez me salvou em Garanhuns. “Macalé, quer tocar com a gente?!” “Pô!” “Vamos lá com um ‘Satisfaction’!” Chegou lá e a gente tocou o “Vapor barato”. Era uma segunda-feira. Fiquei no meio daquele rock maravilhoso, quando pensei e falei para o Frejat: "Bicho, quem tem um Barão Vermelho não tem que ficar lambendo o saco de Rolling Stones. Tem que botar tapete vermelho também para o Barão Vermelho. Primeiro porque é barão, segundo porque é vermelho, e terceiro porque são tão bons quanto os Rolling Stones”. Mas essa subserviência nacional... Não se pode ver um estrangeiro para cair prum boquete. Desculpaí. [ risos ] [ n.e. A sócia-proprietária do Villaggio Café, Rozana Lima, já estava à mesa ] Aí fica esse negócio horroroso, entendeu?
Tacioli – Mas você está otimista...
Jards - Eu sou otimista-pessimista, pessimista-otimista. Quando está muito bom, começo a desconfiar que vai dar merda. Quando dá uma merda total, digo: “Vamos resolver esse problema! Vai ficar bom à beça!”.
Tacioli – Mas as entidades culturais poderiam ter uma força nessa história também...
Jards - Mas ninguém tentou, ninguém quer nada. Quero dizer, nunca ninguém quer nada, não, aí vem o meu pessimismo natural, “ninguém quer nada”. Não, acaba querendo, todo mundo quer tudo. Quem foi que disse aquela frase, desse negócio do brasileiro bater palma de braços cruzados?
São os músicos quem bancam esse delírio
Zé Luiz - Somente para ilustrar o que o Tacioli perguntou. Eu, como contratante, como produtor de shows, estou do outro lado e sei o absurdo que é isso. Por exemplo: um programa de shows no SESC é fiscalizado pela Ordem. Aí exige-se dos produtores uma tal guia, um formulário em cinco vias, que é vendido na Ordem dos Músicos. Você compra aquele negócio, pega os dados de todos os músicos, os números das carteirinhas, e retorna à Ordem dos Músicos ali no Ipiranga (em São Paulo). Depois de atendido, eles te dão o protocolo e pesquisam se o músico está em dia com a anuidade. Se tiver um que não está em dia, eles rejeitam a guia. Aí você tem que ir em cima do músico e obrigá-lo a quitar a anuidade. Essa é a mecânica, é a maneira que eles têm de fazer os músicos pagarem. Aí o contratante entra em conflito com aquele músico. Se ele não quitar sai do projeto ou, muitas vezes, o próprio contratante é quem paga a anuidade e põe em ordem a papelada. Depois, deduz do cachê. Ou seja, todo mundo é aviltado. Um negócio horroroso!
Jards - A partir daí nós temos um problema: para onde vai esse dinheiro, atualmente eu não sei.
Dafne - Não há uma colônia de férias?
Jards - Tem uma colônia de férias. Propus enchermos três, quatro, cinco ônibus de músicos bem mal-educados e irmos visitar a nossa colônia de férias. [ risos ]
Zé Luiz - Bóia, sunga.
Jards - Tudo. E levar os filhos, as crianças, que infernizam um pouco mais. Tem cavalos, cavalinhos; tem sauna, tem piscina, tem uma porrada de coisa, um luxo só! Nunca fui convidado. Soube desse patrimônio...
Zé Luiz - Você é não é da Ordem?
Jards - Mas ninguém sabia disso. Um dia, quando fui pagar a Ordem dos Músicos, eu me emputeci e dei três porradas na mesa. No Rio de Janeiro a Ordem não é informatizada. Aí fica na fichinha, vai procurar fichinha... Antes do sujeito procurar a fichinha, ele estava conversando com uma pessoa sobre firulas. E fica horas. "Eu estou com pressa! Tenho que ensaiar!" "Peraí! Pois é, fulana, imagina você... Sicrano, veja a ficha aí. Como é o seu nome mesmo?!” Dei três porradas na mesa. Aí sempre vem um cara. "Olha, vem cá Macalé, você precisa ver os melhoramentos que temos feito. Aqui o nosso estúdio..." E abriu a porta. Havia um nego instalando um monte de madeira no chão. "Estamos fazendo um estúdio para os nossos músicos. Temos o nosso sítio. Você não quer visitar o nosso sítio?" "Tenho o meu. Eu quero pagar essa porra e ir embora." E o cara tentando me mostrar como a coisa funciona. "Eu não quero saber. Já sei, meu amigo. Eu quero ir embora. Pago ou não pago essa porra?!" "Não, tem que pagar!" "Ah, então deixa eu pagar. Agora pega esse funcionário aí e faz ele prestar atenção nas pessoas que estão aqui." Havia uma fila. Quero saber quanto vale o nosso patrimônio. Aquele edifício velho no Rio de Janeiro... Os edifícios de Brasília, os edifícios em São Paulo, os apartamentos em Copacabana. É tudo em nome da OMB e quem usufrui são colegas-cupinchas e família. Isso é uma esculhambação! A gente passa noites e noites e noites, 48 horas pensando, tentando trabalhar, aí chegam esses caras e compram, fazem patrimônio com o nosso dinheiro e colocam no nome da OMB que, na verdade, somos nós quem compramos aquela porra. Isso é uma esculhambação!
Tacioli - Se houvesse uma mobilização de quem contrata e do contratado...
Jards - Não adianta muito se os músicos não se organizarem... São os músicos quem têm que se rebelar contra isso. Foi o que aconteceu segunda-feira, finalmente.
Zé Luiz - A coisa é tão escabrosa que um dia eu estava lá na Ordem e vi o Sandoli sair da sala dele. Ele estava indo embora. Eu não consegui entender aquilo: ao seu lado dois seguranças fortemente armados. “O que significa isso? Para que o presidente de uma associação de músicos com dois seguranças fortemente armados?” Algo está errado.
Tacioli – Eram duas clarinetas.
Zé Luiz – Eu vi, eram duas automáticas. Barra-pesada.
Jards - Eu vou destituir esses seguranças. Por quê? Porque são os músicos quem pagam esses seguranças. Todo o dinheiro que estiver sendo utilizado na Ordem dos Músicos do Brasil é nosso. Somos nós, por falta de consciência ou por preguiça, quem bancamos esse delírio.
Max Eluard - Qual seria a saída? Não existir Ordem dos Músicos?
Jards- Não. Por enquanto, com tudo isso que já tem, é reformular o estatuto, ter eleições democráticas. A ditadura botou o cara lá, a "ditamole" não tirou o cara de lá. E agora, nesse arremedo de democracia, o cara ainda continua lá.
Tacioli – Mesmo tendo um músico no Ministério da Cultura não...
Jards- O Gil deu depoimento e assinou como músico, não como ministro. Ele está sendo ministro, mas assinou como músico. A Ana de Hollanda, do Centro de Música da Funarte, um órgão federal, assinou como musicista. Tanto na área federal dos ministérios, como na área da classe, todo mundo assinou. O Chico foi lá e deu um depoimento... O Gil foi mais formal. "Precisamos discutir a situação paranormal da Ordem dos Músicos do Brasil. Por que será? Porque ..." Então, tá. [ risos ]
Max Eluard – O problema não é a Ordem em si, e sim como ela é gerida.
Jards - Claro, como é gerida.
Max Eluard - No papel está tudo bem.
Jards - Mas a ação é uma merda.
Nas Dunas da Gal ficavam todos os doidos possíveis
Tacioli - Hoje faz 42 anos do golpe militar. Você lembra onde estava nesse 1º de abril?
Jards - Eu estava rindo da ditadura. Era 1º de abril e eu estava crente de que era tudo mentira, brincadeirinha da rapaziada pra dar porrada, mas no dia seguinte não havia riso nenhum. Eu estava vendo na televisão, pela TV Rio, os acontecimentos, tudo em preto-e-branco. Aí desce de um carro o general Montanha [ n.e. O Coronel César Montanha de Sousa ], que era um tampinha desse tamanho, e um sentinela, coitado, na porta do Forte de Copacabana. Aí o cara da TV narrava como um jogo de futebol. "General Montanha desce do carro. Seus seguranças em volta. General Montanha avança para os sentinelas. Os sentinelas não sabem o que fazer. Um deles barrou o general. O general deu um tapa na cara do segurança e arrancou-lhe o fuzil. Foi tomado o Forte de Copacabana!" Eu digo: "Porra!". [ risos ] A risada parou na tomada do Forte de Copacabana e aí em diante fudeu.
Tacioli - Você estava com 21 anos?
Jards – Eu tenho 63.
Zé Luiz - Você nasceu em que ano?
Jards - Em 43.
Tacioli – Então tinha 21 recém-completados.
Jards - Porra, 21 aninhos, cheio de amor pra dar, quando veio aquela porradaria toda. Que horror!
Tacioli - Você lembra das expectativas que cultivava antes do golpe?
Jards - Eu tinha um pequeno grupo de músicos que se chamava Dois no Balanço. Eu e o filho do maestro Severino Araújo [ n.e. Compositor e líder da Orquestra Tabajara ], o Chiquinho. Ele na bateria e eu no violão. Aí entrou um outro, o Jota, meu grande amigo que me apresentou a Torquato Neto, piauiense. Jota veio também do Piauí. Com o Jota o grupo passou a ser o Três no Balanço. Depois entrou o saxofonista... É, o grupo ficava variando. O Jota era da PUC, como o Pedro Malan. A gente fazia festinhas pra arrecadar fundos para Ação Popular, a AP [ n.e. Movimento político surgido em 1962 constituído, inicialmente, pelos militantes estudantis da Juventude Universitária Católica e grupos da Ação Católica. Figuras como Herbert José de Souza (o Betinho) e José Serra integraram a AP ], que depois entrou na guerrilha. Essa AP era católica. Aí a gente fazia os bailezinhos para levantar fundos para a AP. Não sei porque, mas eu era uma espécie de líder, do conjunto pelo menos. Então, minha ação política começa levantando fundos pra a Ação Popular.
Tacioli - Em relação ao Brasil no início dos anos 1960, havia a percepção de que o país estava indo a lugar bacana?
Jards - Bossa nova, Teatro Novo, Cinema Novo, tudo novinho em folha. Artes plásticas, Oiticica. Glauber, Nelson Pereira. Aquele pessoal todo do cinema, Joaquim Pedro, Rogério Sganzerla. Havia um conflito também entre o Cinema Novo e o cinema que chamavam Udigrudi. Mas tudo numa perspectiva que indicava que o caminho da criação estava aberto. O Zé Celso e seu Teatro Oficina, o Teatro de Arena. Fiz direção musical e tocava no Arena conta Zumbi, que era uma mistura do Teatro de Arena com o Teatro Opinião, do Rio de Janeiro. E o Dori Caymmi me convidou pra substituí-lo, já que ele ia fazer um trabalho. Aí fiquei lá e conheci o Milton Gonçalves, o Augusto Boal, o Lima Duarte. Éramos todos revolucionários. Queríamos instaurar uma ética e uma estética novas. Ia tudo muito bem até que a porrada fudeu. Quando chegou o AI-5, não teve mais jeito. Treze de dezembro, eu me lembro bem.
Max Eluard - Qual foi seu sentimento nessa hora?
Jards – Chorar de indignação e de medo.
Max Eluard - Medo?
Jards - Claro, já sabia que a partir dali fudeu, já que tiraram todas as prerrogativas de cidadão. A partir dali era invasão, porrada, tortura. Era a radicalização do regime ditatorial.
Tacioli – Esse sentimento de medo era sentido pelos estudantes, pelos ...
Jards – Pelos estudantes, sim, porque tinham mais informações. Agora o povo... O povo achava aquilo bom, acabar com essa bagunça, TFP pra cima e pra baixo, aquelas passeatas enormes contra a censura. Agora, no meio dessa confusão, tínhamos um pedaço de praia lá em Ipanema, no Posto 9. Eles sabiam, vigiavam aquilo, mas deixavam como válvula de escape. Então ia todo mundo pra praia, naquele mesmo lugar. Ficou conhecido como as Dunas da Gal Costa, as Dunas da Gal. Logo ela que não cheirava, não fumava, não fazia porra nenhuma. Mas eram nas Dunas da Gal onde ficavam todos os doidos possíveis. Lá você podia queimar um "charo" de maconha e ninguém te incomodava. Agora, se botasse o pé na calçada era grampeado imediatamente.
Max Eluard - Espaço de tolerância.
Jards - É. Há um exemplo horrível, que não foi na praia, mas em São Paulo. São Paulo era mais violenta, a repressão aqui, Doi-Codi [ n.e. Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna, órgão de inteligência e repressão do Governo Brasileiro surgido com o golpe militar de 1964 ], esse negócio aí. Essa é a verdadeira história do “Vapor barato”. O Waly [ n.e. O poeta e compositor baiano Waly Salomão (1943-2003) ] veio pra São Paulo, cabeludo, como estava no disco. Aí foi preso com uma bagana no bolso. Levaram-no pra delegacia, depois o jogaram no Carandiru e o torturaram à vontade. Pau-de-arara, choque elétrico e o diabo-a-quatro. Quando o soltaram meses depois, ele estava um lixo. Foi se esconder em Niterói pra não ficar dando bandeira no Rio de Janeiro. No Rio de Janeiro todo mundo sabe onde você está, a toda hora. Você passa a mil metros, "Ah, eu vi fulano agora mesmo indo pra casa de sicrano, que viu beltrano". É uma fofoca generalizada no Rio de Janeiro, como é em todo o Brasil, mas ali é foda. Aí ele veio de Niterói cantando “Morro da Cantareira”. Além de me fazer gravar o “Morro da Cantareira”, o Waly foi lá em casa e entregou a letra do “Vapor barato”, que tratava exatamente disso. [ canta ] “Estou tão cansado... não preciso de muito dinheiro, vou me picar porque a barra pesou.” E vapor barato, é vapor... barato... Entenderam? Tem várias leituras, e vapor barato é vapor barato.
Tacioli – Você também foi torturado?
Jards - Não, a tortura foi mental, porque viver aquele período foi uma tortura mental violentíssima.
Somos todos presos políticos
Tacioli - Você falou que antes o Brasil cultivava uma visão otimista, com muita coisa nova acontecendo. E hoje, o que você vê?
Jards - Olha, uma vez o Hélio Oiticica me disse: “O Brasil é o país dos dedos-duros. Todo mundo é dedo-duro, é um horror!". E não mudou muito, tem tortura em prisão, mas não tem mais de preso político. Pra mim, somos todos presos políticos. Eu sou anarquista, não tenho nada a ver com essa política careta que se faz no Brasil. Agora, pra mim, o povo brasileiro é preso político de uma história que ele não conseguiu montar, não conseguiu montar o quebra-cabeça da história da democracia, de uma possível democracia. O Brasil ficou qualquer nota. E esse denuncismo atualmente... Você já deve ter ligado o canal da TV Senado e visto todo mundo cagüetando todo mundo. Então o paraíso dos dedos-duros continua, mudou somente o sistema de se fazer as coisas. Antigamente a Polícia ia bater na casa da gente e te dar umas boas porradas. Hoje ela já bate na casa do Ministro Palocci, já bate na casa do Gushiken, do Thomas Jefferson. [ risos ] Vai batendo pra lá. Mas isso existia há muito tempo. Nos anos 1940 e 50, do Getúlio, o Barão de Itararé, nosso querido barão - esse era barão de verdade, apesar de ser de mentira, e hoje é dia 1º de abril, vamos dizer a verdade, o barão era o barão - depois de levar muita porrada da polícia do Getúlio, botou uma placa na porta: “Entre sem bater”. [ risos ] Aí neguinho abria a porta e "Barão?!", ele pegava a malinha [ risos ] e ia lá pra perto do Vidas secas, do Graciliano, ia pra perto dos seus na prisão. Sempre é bom você levar uma escovinha de dente e uma pastinha de dente de avião no bolso. Você nunca sabe quando vai entrar em cana no Brasil. Nunca! Hoje mesmo mataram um brasileiro, um homem-bomba na Inglaterra, a dita polícia educada pra caralho! Na França, que beleza, aquilo lá explodiu de novo e por aí vai.
Tacioli - Mas há algum lugar em que exista uma realidade ou um projeto viável ou o ser humano é um projeto falido?
Jards - O ser humano não é um projeto falido, senão a gente não estaria aqui conversando sobre as outras coisas que o ser humano está entupido. É possível, sim! Eu queria sair o mais rápido possível do planeta. Porra, se esse babaca foi agora, por que a gente está aqui? Acho que uma caroninha vai bem. O homem devia perceber que não é porra nenhuma, que é um micróbio mínimo, sei lá, mínimo do universo, e parar de fazer essa putaria, viver feliz! Exerça a sua felicidade, não é só merda que existe. Tem aquela frase que não sei se é do Bakunin ou Malatesta, não interessa: "Todo homem que põe a mão no meu ombro e diz que me governa é um usurpador". Eu não tenho ninguém pra mandar em mim, mando em mim e fim de papo. Isso não é ego, não é egocentrismo. Não, o mínimo que o cara pode fazer é comandar a si mesmo.
Max Eluard - Você é um anarquista.
Jards - Eu sou. Como ideologia. Sou anarquista-construtivista, não sou destruidor, não. Agora, se precisar, se me encher muito o saco, vou e tiro o cadarço do sapato do inimigo. Quero ver ele correr atrás de mim com sapato com um cadarço solto, tropeçando. [ risos ]
Só porque belisquei a bundinha de uma menininha...
Tacioli - Jards, parte da música nos anos 1960 se posicionava de alguma forma. E hoje, em um momento tão negativo quanto aquele, a música tem um papel?
Jards - Tem um papel higiênico de tanta merda que se ouve no rádio. Porra, desliguei o rádio! Eu, que gosto de música, desliguei o rádio. Eu só ando de táxi. Entro e digo assim: "Amigo, por favor, desligue esse rádio". O cara, “Pô!”. “Desligue o rádio!” E depois... "Amigo, por favor, desligue esse ar-condicionado que faz mal para a garganta. Bactérias à vontade, tudo fechado. Já fui hospitalizado por causa de uma bactéria dessa no início do ano. Então, não quero mais andar com bactérias no bolso. Por favor, desligue." Aí, mal-humorado, desliga. "Agora, ande a 40 km só pra eu sentir o ventinho." O cara pira, enlouquece. Ele só não me expulsa do carro porque as distâncias são relativamente longas, porque ele vai perder um dinheirinho. Mas que ele fica muito puto, fica. Tem uns que dizem: "Não, tudo bem, seu Jards, pode, inclusive, fumar".
Dafne – Mas você acha que a situação no Brasil está brava?
Jards - Não, a coisa não está brava no Brasil. Eu prefiro que essa lama toda esteja à tona e que a gente pise e olhe, “Que merda, hein?!” a acontecer tudo isso que está acontecendo por baixo do pano. Eu prefiro! Prefiro enfrentar a merda! Por isso o papel higiênico. Prefiro enfrentar a merda de frente, olho no olho, à merda ficar por baixo. Prefiro olhar e dizer: "Que merda, hein?! Vamos limpar essa merda ou vamos continuar assim mesmo?” E quem são os cagões? Quem cagou no meio da sala?
Dafne - Quem cagou no meio da sala?
Jards - O Congresso Nacional, aquele bando de bostas, de cagalhões! Fazem merda e ainda querem levar dinheiro.
Tacioli – Somente o Congresso, Jards?
Jards - Tem vício. O Congresso dá um exemplo péssimo para o brasileiro médio pra baixo, aquele que não tem nem a consciência das coisas. Ele começa a achar que aquilo ali é aquilo mesmo. Ele não entende que aquilo ali não é aquilo mesmo, que o Brasil não pode ser assim, não tem que ser assim, pode ser outro muito melhor. Para consertar um traficante, as coisas no morro, botam o Exército na rua... Eu já não gosto de botar, já que fui expulso de Colégio Militar. Meu pai era militar, capitão de fragata. Morreu. Minha mãe recebe pensão de vice-almirante. E fui para o Colégio Militar, de onde fui expulso. Aliás, fui expulso de várias coisas. Do Colégio Maria Soares, do Colégio Nossa Senhora da Paz, pertencente à Igreja, e só porque belisquei, de brincadeira, a bundinha de uma menininha que tava ali do meu lado. Eu tinha 10, 11 anos, no máximo. Aí a mãe da menina, histérica, interrompeu a missa pra falar mal de mim para o padre. [ risos ] Aí o padre foi lá de trás e me pegou pela orelha. Foi me puxando e me jogou no meio da rua. E ainda voltou pra rezar assim [ n.e. Mostra como o padre batia as mãos]. “Bom, resolvido o problema.”
Briguei com um dos maiores torturadores
Tacioli - O que você fez pra ser expulso do Colégio Militar?
Jards - Briguei com um dos maiores torturadores da lista do Tortura Nunca Mais!, que era capitão da minha companhia, o Capitão Zaniti. Ele é o terceiro da lista de torturadores. Ele era o capitão da companhia, eu era interno da IV Companhia. Eu vivia tocando violão, brincando. Eu, o Castrinho, o Agildo Ribeiro. Só tinha filho-da-puta lá dentro. E eles não foram expulsos, muito pelo contrário. O Exercito não queria botar o Agildo Ribeiro lá dentro porque era filho do Agildo Barata. A família dele entrou com um processo e ele acabou ingressando no Colégio. Mas o único expulso daquela tropa fui eu. Uns entraram antes, outros entraram depois. O Ivan Lins também, mas o Ivan Lins era caretinha. [ risos ] Enfim, o cara chamou a minha mãe pra se queixar. Minha mãe, uma viúva nova, coitada, via ali um bom lugar, porque era um belo colégio, professores ótimos, roupa lavada, cama, comida, disciplina. Era tudo que ela imaginava que era bom. Passei dois anos vagabundeando lá dentro. E preso. Eu não era desse sistema: marchava pra acordar, marchava pra tomar café, marchava pra ir pra sala de aula, marchava pra almoçar, marchava pra ir jantar, marchava pra marchar. De noite, quando deitava na cama, as perninhas ficavam assim. Sonhava que estava marchando pelo mundo afora em quinhentos mil dias. Um negócio maluco! E todo fim de semana, sábado, domingo, os internos iam pra casa. Mas aí havia um negócio: quem se comportasse mal durante a semana e tirasse nota não sei das quantas, ficava com estudos obrigatórios aos sábados e aos domingos. Bom, sábado, domingo, rarará! A gente saía pela janela, pulava o muro junto ao morro da Babilônia, atravessava uma trilha do morro que acabava na praça Nossa Senhora da Paz e íamos paquerar as meninas do Instituto de Educação. Curtinhas, sempre curtinhas, todas. "Ah, calcinha branca! Aquela é vermelhinha! E a rosinha tá ali!" Aí paquerava a menina e levava pra o Metro pra ver um filme. Eu lembro que o meu primeiro namoro no cinema foi com Pillow talk [ n.e. Comédia romântica de 1959, dirigida por Michael Gordon, e estrelada por Rock Hudson e Doris Day. No Brasil o filme recebeu o nome de Confidências à meia-noite ] Aquilo pra mim foi um filme de sacanagem. A Doris Day no banheiro e o Rock Hudson com os pezinhos assim, somente roçando e falando sacanagem pelo telefone. Pra mim é Hot sex [ n.e. Referência a um dos programas eróticos exibidos pela TV por assinatura, o Sexy hot ], Playboy pra caralho! E a gente voltava à noite, quando havia um guarda. Em colégios militares o sentinela não pode ter bala na agulha. A gente sabia disso; era somente bala de festim. Aí quando voltávamos o guardinha dizia: "Quem vem lá?". "Vai tomar no cu, babaca! Enfia esse fuzil no rabo!". E o cara, "Porra, mas você querem me sacanear?". "Queremos, sim!” "Vou contar!" "Vai contar? Como você vai contar que deixou a gente sair e agora a gente já está voltando?" “Porra, cara, é mesmo!" Bom, aí o capitão chamou a minha mãe e a deixou no gabinete dele. Eu cheguei junto à porta e ele... "Sentido!". Pum! Fiquei em posição de sentido. Aí ele bateu a porta na minha cara. Fiquei a uns quatro dedos da porta, com ela fechada na minha cara, em posição de sentido. Já não gostei. Houve uma hora, muito tempo depois, ele abriu a porta e a minha mãe estava chorando, toda triscada e tal. Aí falou: "Veja o que você fez com a sua mãe!". "Eu fiz com a minha mãe, não, seu filho-da-puta! O que você fez com a minha mãe?!" "Você não pode me tratar assim. Sou seu superior!" "Uma pessoa que faz isso é superior? Seu inferior!" "Só não acabo com você", disse ele, "porque estamos fardados". E eu disse: "Não seja por isso". E fiquei nu no corredor; tirei tudo. Fiquei nu e parti pra cima dele. Foi uma merda! Todas as companhias aproveitaram e tiraram casquinha uns dos outros. O ódio que havia por baixo brotou. Foi uma bosta! Aí, separa daqui, separa dali, e o comandante, o General Magela, um bom sujeito, me chamou à sala de comando. "Jards, todo mundo gosta de você aqui no Colégio. Há esse negócio de teatro, música, cinema. Agora, você fez a única coisa que não podia ter feito, que é quebrar a hierarquia. Você é um aluno e ele é o comandante da sua companhia." Não o cagüetei, não, porque não sou dedo-duro. Deixei rolar, estava louco pra sair... Aí ele: "Não vai constar expulsão na sua ficha para não atrapalhar a sua vida civil". Eu nem pensei nisso... “Vida civil?!” Eu nem sabia de vida militar, quanto mais vida civil. Aí, pronto, botou “Jubilado” que, na verdade, é “Expulso”, essa é a palavra certa. Depois da tortura, minha mãe começou achar que aquilo não era pra mim mesmo. Se eles a sacanearam tanto, imagine a mim, um menino, um garoto cheio de energia. Resultado: você vai à Internet e procure pelos ex-alunos do Colégio Militar, ex-alunos famosos. Vou estar lá, eu como músico, entre um brigadeiro-do-ar e um general-de-brigada. Jards Macalé, músico.
Abri a TV para saber de onde saíam aquelas pessoas
Tacioli - Você tinha quantos anos quando seu pai faleceu?
Jards - Quinze.
Tacioli- Até essa idade, como era o ambiente na sua casa?
Jards - Um amor! Pessoas comuns com uma ternura entre todos. Agora, a minha avó era especial, porque era a minha madrinha também. Ela era secretária bilíngüe da White Martins. Que eu me lembre nunca fui dormir sem um presente. Meu pai queria instaurar um quartel militar. Minha mãe seguia as ordens, tal. De vez em quando acochambrava. "Jards!" O nome do meu pai era Jards também. "São crianças!" De vez em quando ele se emputecia, vinha com o cinto... “Eba!” Tínhamos uma porradinha, mas nos amávamos.
Tacioli – E irmãos?
Jards- O Roberto, meu irmão mais novo, quatro anos mais novo que eu. Ele não era tão revoltado. Era mais manso, mais calmo, não fazia muita diabrura. Mas eu era um inferno.
Tacioli – Com o seu pai militar, o que você ouvia em casa?
Jards - Eu via os amigos do meu pai, da Marinha, lá em casa, combatendo a ditadura do Getúlio e, ao mesmo tempo, querendo salvar a Petrobras e a Cidade do Aço. Era uma conversa engraçadíssima. Menino ainda, eu não entendia direito aquilo, mas no fundo, que eu me lembre, eles queriam segurar a Cidade do Aço e a Petrobras, e derrubar o Getúlio. Tanto que depois o Juscelino entrou, meu pai foi ajudante de Ordens do Ministro da Marinha. Mas o que havia ali? Uma porção de brincadeiras... A primeira televisão foi a Marinha quem trouxe. Isso graças ao presidente Dutra, aquele velhinho louco, depravado. Pela primeira vez, os Estados Unidos estavam devendo ao Brasil. Devendo! Dívida externa para o Brasil! E não é que o Dutra trocou tudo por ferro velho?! Tudo por uma esquadra usada da Guerra, além de brinquedos de plástico. A dívida externa nossa foi pras cucuias. Aí começou tudo de novo, o FMI, o caralho; isso é uma loucura! Nessa época meu pai foi para os Estados Unidos, para a Filadélfia, e trouxe a esquadra, que não era uma esquadra, mas uns torpedeiros, uns contra-torpedeiros. E cada um daqueles marinheiros e oficiais trouxeram uma lembrancinha. Meu pai trouxe uma televisão RCA Victor, de armário. Quando vi a primeira experiência, fiquei assim... Um dia não havia ninguém em casa e fui abrir a televisão para saber de onde saíam aquelas figurinhas, aquelas pessoas. Aí eu não soube botar direito a porra, me perdi nas válvulas. Desvalvulei-me! Joguei tudo lá dentro e fechei. De noite não tinha televisão. Nada! E eu... "Puta que pariu, e agora?" Aí mexeram e mexeram, e acabaram chamando um técnico de televisão da Marinha. Lá veio o cara. Na hora em que ele abriu, disse: “Mas quem foi que tirou essas válvulas do lugar?". Todo mundo olhou pra minha cara.
Fui expulso do Municipal pelo meu próprio pai
Tacioli - E o que você ouvia de música na infância e na adolescência?
Jards - Essa fase foi maravilhosa, porque meu pai tocava acordeom rudimentar, minha mãe canta maravilhosamente bem e amava a Rádio Nacional. Ela fazia meu pai levá-la à Rádio Nacional. Era fã do Orlando Silva, do Francisco Alves. Eu vi minha mãe chorando, mas aos prantos, terrivelmente aos prantos, quando soube da morte do Chico Alves. Ela foi pra janela, chorou. Eu não entendia direito que história era aquela, gostar de um cantor é uma coisa, mas chorar aos prantos, dias de luto por causa do Francisco Alves... Eu não entendi direito. Agora eu entendo. Estou de luto por todos os meus amigos que morreram até hoje. E minha mãe cantando sempre, bonito. Minha avó com uma voz fininha, linda. Ela foi criada na Inglaterra, mulata. Em Trinidad Tobago, Pará, London London, Pará, Rio de Janeiro, minha avó. E eles me levavam para a Cinelândia onde havia os Concertos para a juventude. Então eu vi o Villa-Lobos regendo, o Guarnieri, o Guerra-Peixe, meu futuro professor. Uma porrada de gente regendo a Orquestra Sinfônica Brasileira. Ou então me levavam para o Cine Arte, que era um cinema, não sei se era 24 horas, na minha cabeça ficou 24 horas, onde passava séries, desenhos animados, atualidades francesas, o jornal da Atlântida e não-sei-o-quê. E, de vez em quando, havia uma coisa interessante, um filme... Em vez de colocarem o Chaplin ou outras comédias, eles botavam as pessoas tocando piano. Eu não vi, mas o Villa-Lobos, o Radamés Gnatalli, e uma porrada de músicos maravilhosos tocavam no cinema pra acompanhar o filme. Já havia filme sonoro, mas pra caracterizar aquele negócio das comédias, botavam as pessoas ali, tocando. Antes eles tocavam durante todo o filme, mas no Cine Arte tocavam somente naquela parte. Era maravilhoso! E eu ficava lá vendo tudo. O meu pai gostava de ópera e me levava para o Municipal pra ver ópera. Um dia fui expulso do Municipal pelo meu próprio pai. Isso é grave! Pode rir, mas é grave. Pode rir! Se vai rir no final, começa a rir do início. Havia o corso na avenida Rio Branco. Não eram as escolas de samba, essas coisas. O corso era formado de carros alegóricos que passavam, cada um mais alegórico que o outro, e sempre havia uns índios, que eu amava, que eram índios vestidos de pena, assim, parecia pena de espanador. Eu achava aquilo o máximo! Chegava em casa e arrancava tudo que era pena do espanador. Minha mãe: "Meu filho, quem arrancou as penas do espanador?". E saía vestido de índio. Minha mãe tem essas fotografias de criança. Aí fui ver O guarani no Municipal. Gente pra caralho! Era baratinho. Aí estou vendo O guarani: gravata borboleta, calça curta, um suspensório, meia e sapatinho novo. Não gosto muito de ópera. De repente, entra um coro de índios vestidos de espanador. Eu caí na gargalhada. E todo mundo “Psiu!”. Quanto mais se pede silêncio num lugar de silêncio, o barulho aumenta. Porque o cara faz “Psiu!”, aí o outro faz “Xi!” e todo mundo “Xi!”, “Xi!”, “Xi!” e vira uma zona. Meu pai me pegou pelo colarinho, me levou e me deu um tapão na cabeça. Eu rolei escada abaixo, lá de cima do Municipal. Pra mim parece que foi lá de cima, mas nem meu analista sabe direito como foi a história, já que, a cada hora, eu conto que foi mais e mais em cima. [ risos ] Aí, cara, fiquei com horror de ópera e fiquei muito puto com meu pai. Mas a música sempre viria da Rádio Nacional. Minha mãe fazia meu pai levá-la à Rádio Nacional. E eu ouvia a Rádio Nacional e cresci com a Rádio Nacional, que era a TV Globo da época, mas com muito mais qualidade. Primeiro, por ser rádio, você fantasia, não chapa a imagem. “Esse aqui é aquele ali ó, o dedo-duro!” Televisão é uma coisa de dedo-duro. “Ali ó, aquele ali!” Mas é uma grande invenção pra quem sabe usar.
Qual é o nome da sua manicure?
Renato Nery – Jards, você está vivendo um momento criativamente bom. O que faz você viver este momento bom?
Jards - Por que a sua unha está assim e a minha não consegue ficar desse jeito? [ risos ]
Renato – Não sei.
Jards - O que você passa?
Renato – Eu não passo nada.
Jards – Mas como não? Você trata. Qual é o nome de sua manicure?
Renato – Eu não tenho manicure. [ risos ]
Jards – É você sozinho?!
Renato – Eu mesmo quem trato.
Jards – Então, me acompanha. Você vai tratando as minhas unhas até ficar assim. [ risos ]
Renato – Vou contar o segredo...
Jards – Mas você toca música clássica ou popular?
Renato – Popular.
Jards – Com essas unhas?
Renato – Com essas unhas. Mas me diga uma coisa, Jards, o que te atrai...
Jards – Estou desconfiado de você. [ risos ]
Renato – [ sem graça ] Levei uma cantada...
Jards – Vai, cara, vai, pode falar... Mas olhem só... Muito branquinha, muito limpinha. Isso é para ganhar as meninas. Tragam o violão! Cadê o violão?!
Max Eluard – É o Zé do Caixão do violão.
Jards – Vai lá.
Renato – Você disse que o seu processo criativo oscila...
Jards – Como de todo mundo, eu acho.
Renato – Isso. Então, o que te faz hoje estar num bom momento criativo?
Jards – Eu fiz 63 anos agora, 3 de março. Eu olhei para trás e acabei gostando do passado e quero viver o resto agora mais feliz, mais regrado, menos porra-loca, botar a minha criatividade... eu vivo disso. Não sei fazer só isso, mas só faço isso. Agora ganhei um violoncelo de presente. Um violoncelo meio quebradão. Mandei consertá-lo num luthier. Setecentos e cinqüenta paus. Arrumei um professor que é o primeiro cello da Sinfônica Brasileira, que me vendeu somente o arco por mil e quinhentos paus. Deu uns dois mil e tantos paus e nem comecei a estudar... Com 22 anos eu já estudava violoncelo na Pró-Arte, com Peter Dauelsberg que, coincidentemente, era o primeiro violoncelo da Orquestra Sinfônica Brasileira. Aí comecei a estudar com Guerra-Peixe, o maestro, o compositor, o nacionalista. Na época todo mundo queria imitar Schoenberg, Stravinski, o caralho, até que lhe caiu a ficha do nacionalismo e fez um belo trabalho de coletar material... As composições dele são geniais. Foi meu professor de composição e de orquestração. De teoria musical tive uma pessoa maravilhosa, uma professora gaúcha genial, sábia, que também deu aulas para o Paulinho da Viola, o Edu Lobo, alguns da música popular, acho que para o Egberto Gismonti. Estudamos com ela rudimentos de música, de ler e de escrever e de saber o que está fazendo. De pegar material técnico e utilizar pra si. E aí se juntou o estudo erudito com a coisa popular, que eu já vinha, e juntou também com o humor. Pô, só a PRK-30 era uma enciclopédia de loucura. O músico que regia aquela loucura ali atrás era Radamés Gnatalli e os músicos faziam aquelas coisas com o maior amor. Aí eu entendi, alguns anos depois, porque uma das minhas falências – eu sempre vou à falência... Esse show de agora é para cobrir uma pequena falência de... [ risos ]
Zé Luiz – Responsa, responsa...
Jards – Um pequeno buraco...
Zé Luiz – Então não pode ser daquele jeito que você falou para eu pagar...
Jards – O importante não é o dinheiro...
Zé Luiz – De outro jeito...
Jards – Como assim?
Zé Luiz – Daquele outro jeito?
Jards – Como?
Zé Luiz – Como você me falou no cafezinho...
Jards – Ah, não! Você é um empresário bem-sucedido, tem dinheiro. Pra você eu peço outra coisa. [ risos ] Numa das minhas falências fiz um show com o Luiz Melodia e o Itamar lá no Rio, que se chamava Neurologia. Todos os humoristas – Paulo Caruso, Jaguar, Millôr Fernandes, Chico Caruso – iam ao meu show. Eu achava estranho. “O que esse pessoal gosta tanto de vir aos meus shows, ficar rindo... Eles não são humoristas?! Deviam estar chorando.” Eles me deram sustentação, não de dinheiro, mas psicológica, durante um longo período, tanto é que fui agora ver o Salão de Humor do Rio de Janeiro na Sala Laura Alvim, aí cheguei um pouco antes [ toca o celular do Jards ]... Peraí... Deixa eu atrapalhar aqui... “Alô! Estou dando uma entrevista aqui no Cu do Padre, um botequinho bem cu do padre mesmo. Pode telefonar depois? Um beijo!”. Foi há duas semanas. Tinha um show deles depois. Aí chegou o Paulo – eu nunca sei quem é o Paulo e o Chico, são duas torres gêmeas – e... “Tem feito música?”, me perguntou. “Fiz uma paródia.” [ n.e. Paródia de “Twist and shout” ] [ canta ] “No soy traficante, soy maconheiro...” E a platéia: “Maconheiro! Maconheiro!” Muito bem. “Você vai cantar com a gente!”, disse o Paulo. “Você está louco, rapaz!” “Não, você vai lançar isso internacionalmente, mundialmente, o cacete...” “Isso é maluquice!” “Não, vai!” Falou e saiu.
(De repente, um sujeito que já havia tomado umas cangibrinas e se dirigia ao sanitário, dispara:
Jards?! Jards Macalé?
Jards – Não! Paulo Silvino ao seu dispor! [ risos ]
Ô, Jards, boa sorte! Não havia te reconhecido, querido.)
Jards – Obrigado, meu amor. É por isso que os humoristas... Bom, aí subimos no palco e “Agora o Jards Macalé lançará mundialmente a sua versão...” E aí, a introdução: [ como na abertura de “Twist and shout” eternizada pelos Beatles ] “Ah! Ah! Ah! Ah!”. E eu não entrei... E mais uma vez. “Ah! Ah! Ah! Ah!... Yo no soy traficante, soy maconheiro... Usted!” [ risos ] Uma festa!
Foi o que o João Gilberto me ensinou nesse dia
Tacioli - Jards, e o João Gilberto na sua história, como foi?
Jards - Eu sempre amei. O Nelson Motta chegou em 1958 lá em casa. “Tem um cara que vem aí, você precisa ver como toca um violão e canta! E tem uma música que é a primeira que vai sair. Quer ver?” Aí me mostrou rudimentarmente ao violão “O barquinho”, que é outra história maluca. Os caras que fizeram essa música, Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, foram passear lá na Barra da Tijuca, de barquinho. Acabou a porra da gasolina. Entardecendo e eles naquele barco. E o barco não pegava mais. Aí, aquele sol esplendoroso, carioca, entardecendo, aquela coisa, começaram: [ canta ] “Dia de luz, festa de sol / O barquinho a deslizar...” E quando tentaram rodar o motor, tuc, tuc, tuc. Aí foi no ritmo. Tuc, tuc, tuc [ cantando a melodia da música ] É assim que se faz música. É que nem a história do Waly, que foi preso, torturado no Carandiru, e voltou com o “Vapor barato”. Dependendo das situações você faz uma música feliz ou uma música infeliz.
Max Eluard - Tem uma história sua com o João Gilberto que vi você contando num show certa vez em Bauru. Dizia que você havia ido à casa dele e ficou uma hora... Como é essa história?
Jards - Ele me chamou. Uma hora? Não, seis horas! [ risos ] "O que você estará fazendo às seis horas da tarde?" Eu respondi: "Nada". "Vem pra cá." Aí eu fui. Fã incondicional, absolutamente fã incondicional dele. Ele sentou no sofá, aquela vista, lá de cima aquela coisa redonda no Leblon ali, lá no último andar, parecia um disco voador. Se via até no Leme lá de cima. Estou exagerando um pouco. Sentamos por uma meia hora, lá do quarto dele. Quando ele tocou o violão, me perguntou: "Você quer saber o que é a bossa nova?". Todo mundo quer saber. Lá fora eles querem saber o que é a bossa nova mais do que a gente aqui, né? Aqui tem axé, tem... Mas tem frevo, tem tudo. Mas a bossa nova mesmo, caga-se solenemente. Lá eles querem saber da bossa nova como o nosso maior produto musical. Produto de mercado. Todo mundo quer saber da bossa nova. Ensinei bossa nova prum jamaicano, lá em Londres. Botava a introdução da batida básica do disco do Caetano, do Transa, precisava desenvolver o estilo bossa nova, mas ele devolve com a batida do reggae. Ensinei na Alemanha um amigo, violonista clássico. Ele ouvia a batida e "The basic, Macal, the basic!". Ele queria que eu ensinasse o básico. O básico é tchan, tchan. Foi aquilo que o João Gilberto me ensinou nesse dia. Aí o João Gilberto pegou um acorde só e ficou batendo... Um acorde ré maior no baixo. Na primeira uma hora eu achei a maior canseira. Mas logo depois já estava meio hipnotizado, mas ainda estava acreditando que era só o último detalhe. Na terceira hora comecei a ficar meio distraído, maravilhado. Na quarta hora comecei a ficar meio cansado. Na quinta hora que eu olhei pra ele, ele estava pensando, ele sozinho no violão, ele e o violão era uma coisa só. Na sexta hora eu saí de fininho, pé ante pé, fui pra casa, peguei o meu violão. Eu sou bom aluno, vou ver como que é e tal.
Max Eluard - Esse era o segredo?
Jards - Não, isso não tem o menor segredo. Já fui contando publicamente, virou verdade. Já dizia Goebbels [ n.e. Paul Joseph Goebbels (1897-1945), Ministro da Propaganda da Alemanha Nazista ]: “Você conta uma mentira mil vezes, ela vira verdade”. Só que essa é verdade. Aí todo mundo acha que é mentira, porque é o processo sempre ao contrário.
Tacioli - Tem uma outra verdade do João Gilberto pra contar?
Jards - Não. Nenhuma que nos interessa. [ risos ]
Vou à falência quase todo dia
Max Eluard - Mas voltando para a questão do anarquismo. Você acha que o anarquismo é um sistema viável dentro da nossa sociedade?
Jards - Eu acho que sim, é só pensar. É só refletir, com reflexão, pensar exercício de pensar.
Max Eluard - É uma mudança muito mais interna do ser humano do que de sistema.
Jards - É claro. Você vira um estado, o que chamam de estado, país, você vira um país, um estado com responsabilidade, com limite. Pra mim o meu limite é até aqui, ó, por exemplo. Isso aqui. O meu espaço aéreo que eu determinei é aqui. Quatro dedos de distância pra não esbarrar. Eu faço assim e rodo: se botar um círculo em volta, esse é o meu espaço aéreo.
Zé Luiz – Desculpe-me. Eu invadi.
Dafne – Invadiu seu espaço aéreo. [ risos ]
Jards - Mas eu considerei um espaço aéreo aqui, assim. O último dedo mais longo. Ele invadiu o meu espaço aéreo, vai ter que conversar. Eu acho que todo mundo tem o seu. Você anda na rua? Sou incapaz de esbarrar em alguém.
Max Eluard - Mas a gente vivendo assim há séculos, dentro de uma lógica de produção, que é o capitalismo, em que você tem que derrubar o outro pra se dar bem. Como a gente recupera isso?
Jards - Bom, isso é problema deles. Eles resolveram jogar desse jeito e nos empurrar pra esse jogo. Eles vão ter que se resolver, porque nesse jogo nada é absolutamente perfeito. É um jogo de azar. O capitalismo é um jogo de azar. É como se estivesse todo mundo num pano verde, uns sabem jogar bem pra caralho, outros não sabem jogar. Os que não sabem jogar, como nós, eu, por exemplo, vou a falência sempre, quase todo o dia. E amo cada minuto dessa falência. Cada segundo.
Dafne - Vi o Big Brother 6 e notei que o povo brasileiro premiou uma pessoa despossuída, uma pessoa humilde, como na novela também quer ver o bonzinho se dar bem, ficar feliz, pobre ficar rico, ter filho, casar. O povo sempre premia o bom na novela, na TV, na ilusão, mas na vida real o negócio é outro. O bonzinho é otário.
Jards - Mas isso é a isca. Eles jogam a isca. Eles não vão economizar com isso.
Max Eluard – Como lidar com isso?
Jards – Não tem como lidar com isso. Não vejo Big Brother, não me interessa. Agora, já vi há muito tempo, 1984.
Dafne - Não, com essa dualidade do povo que premia na ilusão o bonzinho, mas na vida real...
Jards - Na realidade eles estão pisando na merda. O povo é uma figura de retórica que não existe. Dão o nome de povo a um amontoado de pessoas de várias gradações, classes... Agora, eles têm coragem de fazer essas besteiras todas. A televisão é um perigo! Por exemplo: não vi o Juscelino [ n.e. A minissérie da TV Globo, JK, exibida no início de 2006 ], mas somente o último dia. Minha mãe acompanha todas as novelas. "Meu filho, veja!" Minha mãe, 86 anos, vê a novelinha dela. Regra normal pra pobre, rico ou classe média. Então "Veja o último capítulo!", aí fui ver. Estava até achando interessante porque pelo menos deram os nomes próprios das pessoas. Mas estava muito globalizado também, coisa esquisita. Fiquei entre ter vivido aquele período muito bem, sabendo daquele período e, ao mesmo tempo, ficou um charme global esquisito. O José Wilker canastrão... Ele é bom ator, mas tava um canastrão no JK. Todo mundo esquisito. A Letícia Sabatella é uma linda menina. Gosto mais dela do que de todas aquelas atrizes.
Como carioca, achei o projeto do JK uma merda!
Zé Luiz – Seria o JK também um canastrão?
Jards - Isso é você que está dizendo.
Zé Luiz – Não seria? Estou perguntando, Macalé.
Jards - Não, mas eu estou respondendo. [ risos ] O presidente bossa nova. Não, o Juscelino me parece uma pessoa legal, eu não sei. Aí, tudo pronto, começaram a fazer cagada. Eles não agüentam, não, vão fazer merda na televisão. Acham que aquele aparelho ali, toda essa tecnologia, faz parte de uma grande privada onde eles puxam suas válvulas. É horrível! Aí botaram no final um letreiro: [ canta] “Bossa nova, amigo, é ser presidente...”, quer dizer, Juca Chaves, que é um gozador de direita... Gastaram burros de dinheiro para no final gozarem o Juscelino com aquela música, uma música pra sacanear a bossa nova, a música pra sacanear o estado brasileiro, a música era pra sacanear tudo. Eles fazem aquilo tudo, gastam uma puta fortuna, para sacanear... Quem foi o filho da puta que inventou aquela música? E aqueles idiotas todos concordaram? Concordaram! Como que fazem um negócio desses? Gastam rios de dinheiro e imprimem isso na cabeça do brasileiro, nas novas gerações que não sabem de porra nenhuma de história, que não viveram isso... Uma informação que vem truncada, com os nomes próprios, e no final os caras dão uma gozada dessa, na própria obra? Eu não sei.
Tacioli - Mas o projeto do JK, depois de tantos anos, foi um bom projeto?
Jards - Olha, eu como carioca, achei uma merda. É um egoísmo meu. Quando a capital da República estava no Rio de Janeiro, o Rio de Janeiro era animadíssimo. Até na ditadura de Getúlio a coisa era animada. Quando chegou o JK, aquele sorriso, aquele otimismo, aquela coisa toda dele, aí o Brasil subiu pras nuvens. E, cá pra mim, não pagando o FMI, criou mais dívida, fez essa cidade maravilhosa do Oscar Niemeyer no meio do deserto. Construíram Brasília no cerrado tentando a integração nacional. Até que é engraçado. Mas, porra, concentrou em um lugar todos os bandidos que roubam a carteira do bolso do Brasil. No Rio de Janeiro, não, era esculhambação. Por exemplo: se o Palocci fosse em um puteiro no Rio de Janeiro, todo mundo estaria cagando para o puteiro. E se o caseiro caguetasse, porra, dariam porrada no caseiro. Mas em Brasília, não, todo mundo vai preso. O paraíso dos dedos-duros! A linha de frente da cagüetagem é a secretária, para variar, o caseiro, para variar, o motorista, para variar... A classe média e a baixa arrumam um empreguinho, aí caguetam o patrão. Aí o patrão cagueta o outro patrão. Aí o outro patrão não quer levar sozinho, cagueta o ministro. O ministro, coitadinho, é a última etapa de um processo, só falta acusar o presidente. Que é isso que eles estão querendo, derrubar o Lula! E eu não sou lulista, não! Caguei pro Lula! Mas acontece que ele virou um ícone dessa história toda. Vai abrir a janela do Brasil para um outro fila da puta? Imaginem o Garotinho e a Rosinha? Esse Alckmin que está cada vez mais com a cara do Maluf. [ risos ] O cara está falando igual a do Maluf, está falando igual ao Maluf. Outro dia eu senti uma saudade profunda do Brizola. Se o Brizola estivesse vivo... Se umas pessoas fossem vivas, essa merda não estaria acontecendo. Se o Glauber estivesse vivo, talvez ele não agüentasse essa caretice toda, mas, ao mesmo tempo, iria balançar o comportamento da rapaziada cultural. Não ia ter tanta sacanagem, tanta besteira dita por aí. Se o Darcy Ribeiro estivesse vivo, o combate ia ser maravilhoso. Se o Brizola estivesse vivo, atrapalharia todos os governos até morrer de verdade. Eu, por exemplo, sou um grande atrapalhador. O que é isso, cara? Um espião do caralho?! [ n.e. Olha para baixo da mesa e assusta-se com o Dafne, que está fotografando-o. Depois, faz pose. ]
Dafne - Obrigado.
Jards - Claro, fui dirigido por Nelson Pereira dos Santos.
Tizuka, pelo amor de Deus, me mate!
Max Eluard - E sua relação com o cinema, Jards, como começou?
Jards - Começou com uma Super-8 que comprei em Manaus, na Zona Franca. Eu sempre estive perto do cinema. Minha avó, como eu disse, me levava pequenininho pra ver cinema, Cine Arte. E eu sempre gostei de cinema, muito. Tanto que a minha música, quando trabalhei com Nelson Pereira, eu trabalhava com Leon Hirszmann, com Glauber, Joaquim Pedro... A primeira trilha de cinema que eu fiz foi quando musiquei os oitos poemas do Mário de Andrade para o filme Macunaíma, do Joaquim Pedro. E aí minha relação sempre foi muito próxima. Até a maioria dos processos eu saquei: roteiro, decupagem, mais ainda da Tenda dos milagres, também do Nelson. A decupagem do livro, dos personagens. Acompanhei todas as etapas: da idéia ao lançamento. Então a minha música e a minha interpretação mudaram porque fiquei muito mais perto do cinema que da música. Em termos de montagem, corta daqui, bota dali, letra, monta, desmonta. O mundo inteiro é música, tudo o que eu ouço aqui é música: o avião, o ronco do motor, você falando, enfim, tudo isso é música pra mim. Pra mim tanto faz fazer uma música que chamam de música, como botar ruídos à vontade. Pra mim tudo é música, o mundo inteiro é música.
Dafne – Como é aquele filme do vampiro, que está no Super-8, em que você atuou?
Jards - O Nosferatu. Não sou eu, não. O Torquato quem fez isso com aquele menino, o Ivan Cardoso.
Dafne - Você não trabalhou como ator?
Jards - Não, foi o Torquato.
Dafne - E como foi trabalhar como ator.
Jards- Engraçado, divertido. Cansa pra caralho, tem que esperar pra caralho, mas é divertido. O último papel, quando fui fazer a novela Amazônia, pedi pra morrer porque estava grande demais aquele negócio, não terminava nunca. Eu era um seringueiro no meio da selva. Amazônia linda, cheias de mosquitos, [ com sotaque estrangeiro ] “vários mosquitos, de vários tamanhos diferentes, nunca vi tanto mosquito na vida. Eu apagava a luz do quarto, aquela telinha na janela e os mosquitos olhando. Comprei até uma lente de aumento dessa bem bacana pra estudar os insetos do meu quarto. Nunca vi tantos insetos diferentes como vi na Amazônia. Muitos mosquitos e outros bichos mais na Amazônia. Muito bonito!” Mas pedi pra morrer porque eu não agüentava mais. Seis meses depois eu queria pular fora da Amazônia e não conseguia. Eu disse pra Tizuka Yamazaki – que foi criada comigo pelo Nelson Pereira dos Santos, no Amuleto de Ogum -, que estava escrevendo: "Tizuka, pelo amor de Deus, me mate!" "Mas agora que o seu personagem vai crescer?" "Não! O personagem cresce, mas a grana não cresce. Me mate!" Eu não sou dinheirista, mas a Manchete não botava o dinheiro na hora certa, na data precisa conforme o combinado. Eu esqueci desse detalhe e saí pela Zona Franca comprando o diabo. Jacaré empalhado, madeira, rádios, mil brinquedos... Foi a maior sacanagem. Aí quando cheguei no Rio de Janeiro, simplesmente a minha conta estava no SPC. Não podia ter talão de cheque, cartão, porra nenhuma. Falei, “É até melhor!”. Agora, três anos depois, tinha coisa que só podia ser com cheque. “Vou resolver isso. Mas como vou fazer?” O Pedro Malan é meu amigo de infância e estava no Banco Central. Naquele momento se encontrava em Washington tratando não-sei-do-quê. Um dia me deu na telha e passei um fax pra ele explicando tudo direitinho. Imaginem que tirei xérox do cheques! E uma carta engraçada pra caralho. Aí ele me telefonou: "Olha, o negócio é o seguinte: quem manda aqui é minha mulher". De onde se conclui que quando foi Ministro da Fazenda ele seguiu fielmente os conselhos dela. "Então, negócio é o seguinte: vou deixar na mão dela e tudo bem. Aguarde!" E eu aguardei. Um dia me telefonaram do Ministério da Fazenda. "Olha, aqui é do Ministério da Fazenda. O motorista pode passar aí pra levar o material?" "O.k.!" Eu, pobre pra caralho, pra variar, lá no Jardim Botânico, o meu apartamento caindo aos pedaços, e aí pára um carro imenso, MF. E os caras de preto... “Porra, será que vou em cana de novo? O que fiz?” Bom, abri a porta. "Ah, o Ministro pediu para trazer o material." "Ah!" Uma maçaroca de papéis... e, impresso, “Liberado”! Saí dali e fui ao banco.
A bossa nova não existe. O que existe é samba
Tacioli - Jards, tem surgido convites para trabalho de ator?
Jards - Interessante que não. Mas de vez em quando... Atualmente quem me procura pra trabalhar em cinema e em outras coisas são os filhos dos meus amigos. São os filhos do Glauber, os filhos do Joaquim Pedro, os filhos do Nelson Pereira, o sobrinho do Hélio Oiticica... E eu topo fazer, mas a maioria não tem dinheiro. Aí chegam, "Macalé, mas a gente não tem dinheiro”. "Não tem problema." "Mas como a gente vai recompensá-lo?" "Ah, tragam umas cinco bagas que tudo bem." [ risos ] Aí eles vêm com um papo... "Olha, é a primeira vez, é o primeiro movimento.” "Obrigado! Deixaí que fumamos todos." Aí acabou o estúdio... "Pô, ficou bom pra caramba!" "Olha, segura o pagamento." "Muito obrigado!”.
Zé Luiz - Segunda parcela.
Jards - Segunda parcela. Aí lá pelas tantas, não estou esperando mais nada, chega a terceira parcela. Porra, cara, não preciso correr no carnaval, sabe?
Zé Luiz - O tom está salvo.
Jards - O tom está salvíssimo. Eu trabalho pela descriminalização da maconha. Por isso que entrei para o Greenpeace. Se é proibido cortar mato, sei lá, verde, como é que nego vai cortar a cannabis sativa que, inclusive, tem subprodutos fantásticos. Os tecidos são resistentes pra caralho!
Max Eluard - Fazem corda de cânhamo.
Jards- É, cânhamo. Você pega cânhamo e joga assim pela sua casa toda e os mosquitos não entram. Contra a febre amarela é maravilhoso. Olha, catarata, coluna, tenho problema. Minha médica geriatra já arrumou a carteirinha: “Esse é usuário médico!”.
Dafne - No soy traficante.
Jards - Não sou traficante, sou usuário. Por isso que estou explicando. Atestado: “Psiquicamente fica bem, as dores terríveis na coluna que ele tem melhoram, fica relaxado e compõe muito quando está sob a canhação”. Porra, não vamos ser cegos. Cocaína, não, cocaína é droga de drogado. Cada um com a sua cultura. Tem monocultura de maconha, então fuma a porra da maconha em paz, faz chá, exporta a maconha. Agricultura, agricultura, mas, não, quer cheirar a cocaína da Venezuela, da Colômbia. O Brasil não tem gente suficiente pra segurar, além do tráfico barra pesada, formal, a fronteira, cara, não tem como parar a droga, de entrar arma nessa porra. Essa nossa fronteira é continental, barra pesada, é enorme, e não tem gente suficiente. Explode uma pistinha de avião ali, eles estão fazendo mais trinta lá.
Almeida - Biografias de pessoas nascidas no Rio sempre falam “nascido na Tijuca, em Copacabana...”
Jards- Nascido na Muda, Tijuca.
Almeida - É um definidor da personalidade...
Jards - É, porque Ipanema é Ipanema, Leblon é Leblon, Copacabana é Copacabana, Méier é Méier, Tijuca é Tijuca, Centro é Centro, Encantado é Encantado. Cada um, cada quarteirão, tem uma cultura própria.
Almeida - Você conseguiria definir o tijucano?
Dafne - E Muda é Muda ou Muda é Tijuca?
Jards - Não, a Muda é na Tijuca, porque era muda dos cavalos, dos jegues, do bonde, era a troca de cavalo ou de jegue. Então eu saí de onde o bonde faz a curva, da muda, e fui morar em Ipanema, justamente onde o bonde faz a curva, onde era o Bar Vinte, em Ipanema. O Leblon era ainda um areial cheio de casinhas de pescadores. E reza a lenda que o Leblon ganhou esse nome porque ali morava um pescador francês. Aí era o “Le blond”, quer dizer, “o louro”. Aí alguém cortou o "D" e ficou Leblon. Dizem, né?! Cada um conta uma história mais maluca, mas no final ninguém sabe direito o que é. Da Tijuca saíram Antônio Carlos Brasileiro, meu amigo, Jobim; Erasmo Carlos; Tim Maia; Jorge Ben nasceu, mas mais pra Tijuca, no Rio Comprido, mas também nasceu na Tijuca; o Johnny Alf. O Johnny Alf não é paulista, é tijucano! Enfim, lá havia também o clube de fãs...
Zé Luiz - O fã clube do Cyll Farney...
Jards - Dick Farney e o Lúcio Alves, tinha um negócio de jazz. Ali estavam plantando o que iriam chamar de bossa nova, que não existe; é uma marca como Coca-Cola. O João [ Gilberto ] me disse várias vezes: “Bossa nova não existe. O que existe é samba". Bossa nova é o nome dado para marca. Aliás, ninguém sabe quem deu esse nome até hoje. Há várias teses.
Não vou ao meu próprio enterro
Tacioli - Jards, e como é a sua relação com a finitude, com o fim das coisas?
Jards- Depende. Até algum tempo atrás eu vivia com muita tristeza e com muita apreensão esse negócio de finalizar, mas a Lygia Clark [n.e. Pintora e escultora mineira (1920-1988) ], minha amiga pessoal, me deu a chave do cofre. “Quando termina tudo e você se sente vazio, esvaziado, não lute contra o vazio. Vá fazer outra coisa. Passear, flanar.” Eu sou um flaneur, sou como o João do Rio no Rio de Janeiro. Eu passeando pelo Rio. Não tenho destino no Rio de Janeiro. De repente vou à cidade ver um negócio, acabo na casa do Moacyr Luz ou acabo no Corcovado ou, de repente, ando pela praia. Eu não fico rolando “like a rolling stone”. Enfim, não se fica ao léu. Você não fica pensando obsessivamente, “Que pena perdi aquela pessoa, aquela coisa. Acabou aquilo que era tão bom!”. Não!
Tacioli - Mas isso mudou...
Jards - Não, mudou...
Tacioli - Como era antes?
Jards -Ela [ Lygia Clark ] me disse: "Fique na sua, em algum momento vem". Agora vivo com essa consciência: não estou perdendo nada, nada acabou, não existe fim!
Max Eluard - Na lógica oriental, o fim é o começo de uma outra coisa.
Jards -É princípio de uma outra coisa. Então, não tenho esse desespero mais.
Almeida - E quando acaba a vida, Jards?
Jards -Começa outra vida. Me ouça que sou versado em vida. [ risos ] Eu já vivi muitas vidas. Eu já morri muitas vezes.
Almeida - E essa é a melhor?
Jards - Ah, toda morte é igual. [ risos ] Ele ri. [ sobre o Zé Luiz ]
Tacioli - Jards, e o Torquato Neto?
Jards - Torquato era um gênio, mas muito angustiado, aflito.
Tacioli - Morreu com menos de trinta anos?
Jards - Não, foi trinta e três, não me lembro. Eu sei que ele se adiantou, podia ter esperado um pouco mais, mas aqui a coisa estava tão dura também que ele não suportou. E eu acho que, no fundo, o Glauber também não suportou... Tem uma hora em que você fica desesperado, fica de saco cheio, parece que não há saída. E naquele momento, principalmente, parecia que não havia saída mesmo. “Vou viver o resto da minha vida assim, monitorado por um bando de militares ignorantes? Será isso então?” Ficou essa coisa de vida e morte. E chegou um momento em que eu não ia ao enterro dos meus amigos. Até o Darcy eu fui ver; aí depois o Leon Hirszmann, um doce de pessoa, uma pessoa que me fez tão bem; o Glauber; o Torquato... Toda hora tinha alguém indo. “Quer saber? Não vou mais no enterro de ninguém. Inclusive não vou no meu próprio enterro!”. Ah, não vou não! [ risos ]
Dafne - E a perda do Waly?
Jards - Eu não fui ao enterro, não. Onde já se viu morrer assim de repente, cara, deixando uma porção de órfãos, amigos, viúvas?
Dafne – Mas você disse agora que está, não lidando melhor, mas tendo uma compreensão...
Jards- Pois é, por isso que eu não vou mais gastar meu tempo em enterro. Não vai mudar nada.
Dafne - Não é isso que vai mostrar seu sentimento?
Jards - Não, muito pelo contrário. O clima é aquela coisa esquisita. Eu chorei em casa. Se bem que eu fui no velório do Waly lá na Biblioteca Nacional. Mas aí você vê, olha todos aqueles traidores juntos, sabe, chorando o amigo que eles mesmos enterraram de uma certa forma. É muito chato. Prefiro ver o Pica-pau.
Tacioli – Com o Moreira da Silva foi a mesma coisa?
Jards - Com o Moreira eu fui até o último segundo. O Moreira e o Zé Kéti. Tem morto que vale a pena ser velado e tem morto que vale a pena ser enterrado. Tem uns mortos aí bem filhos-da-puta. Não vou dizer o nome, não, mas tem morto bem filho-da-puta. Assim como tem vivo muito escroto. Mas deixa isso pra lá senão ficaremos horas aqui. [ risos ]
O violoncelo é uma mulher completa
Tacioli – Então, vamos fechar a conversa. E o violão brasileiro, Jards?
Jards - Não me fale desta mulher perto de mim. [ risos ] Isso aí é sagrado! Não vamos botar mulher no meio.
Dafne - Olha o que você vai falar, hein? Ele já escondeu a mão. [ referência ao Renato Nery, dono das unhas admiradas por Jards ]
Jards - Está cortando as unhas. Ontem eu estava tocando aquele violão, mas pensava no violoncelo. O violoncelo é muito mais gostoso, muito mais, sabe? É uma mulher completa.
Dafne - Você encaixa.
Jards - O violão é uma extensão de mim e eu sou uma extensão do violão. Quando vi João Gilberto atracado naquele violão, dando um acorde numa nota só, um acorde só, tanto descobri o que era bossa nova, o que era aquela batida, como descobri que ele era o violão. E o som que ele estava produzindo, era tudo aquilo junto, fechado. Tem hora que, uma semana sem tocar, passo pelo violão e começo a conversar com ele. “Não estou com muita vontade agora. Me aguarde, espere aí um instantinho. Vou voltar, mas, poxa, me dá essa colher de chá. Eu estou sem saco!” Aí tem dia que me dá na telha e “Vem cá!”, e passo noites tocando, tocando sozinho.
Tacioli - Quem trata bem o violão hoje, Jards?
Jards - A maioria dos violonistas que escolheram esse instrumento o tratam bem. Nunca vi um cara chutar um violão. Eu só quebrei o violão na cabeça de Bethânia aqui em São Paulo porque ela encheu muito o meu saco, senão não quebrava, não.
Tacioli - E o Sérgio Ricardo? [ n.e. Compositor e cantor paulista que integrou a primeira geração da bossa nova, autor de "Zelão" e de músicas que integraram filmes como Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha ]
Jards- Bom, o Sérgio Ricardo violou a platéia todinha. "Violada na platéia." Manchete desse tamanho num jornal. E todo mundo: "Oh, violada na platéia!". Foram ver e estava o Sérgio Ricardo jogando o violão na cabeça das pessoas. [n.e. Uma das cenas que marcou o II Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1967, motivada pela sonora vaia que a música, "Beto bom de bola", levou ]
Fui copista da Orquestra Sinfônica Brasileira
Tacioli - Quando você estava começando no instrumento, o João Gilberto não havia como violonista. Quais eram as suas referências?
Jards - Baden Powell, Garoto, Luís Bonfá, Bola Sete, Dilermando Reis, os violonistas daquela época. Descobri que o melhor estudo é o ensaio. Eu batia na porta dos Cariocas. Abriam a porta e "Entra aí que estamos ensaiando". Sentava num cantinho e via construírem o barato. Aí no dia seguinte ia ver o Luizinho Eça, do Tamba Trio. "Que bom que você está aqui. Estamos ensaiando". Digo: "Porra, legal!". Tom Jobim tinha um piano enorme na casa dele. Um dia ele fez um concerto de pijama azul. Sabe aquele pijama azul louco, maluco, aquele pijaminha azul? "Você conhece aquele veado que fez as nuvens, maravilhoso, aquela coisa? Vou lhe mostrar algumas músicas dele." Ele tocou todo o Johnny Alf, com harmonia do Johnny Alf e com harmonia dele. Depois dessa aí, fui morar com o Turíbio Santos. Esse violão meu, pessoal, não é esse aí, o outro, eu comprei da mão dele numa bagatela. Ele: "Pode me vender o violão de volta". "Na, na, na, não! Ah, nem por um trilhão!" E por aí eu fui ouvindo ensaios. Fui copista na Banda Tabajara [ n.e. Orquestra Tabajara ]. Agora o copista é bobagem. Tem computador que faz esse serviço. Fui copista da Orquestra Sinfônica Brasileira. Havia dias em que eu queria... "Agora quero metade ritmo. Agora eu quero cordas e sopro.” Aí escrevia todas as orquestrações de Mozart, Beethoven, Bach, o cacete. Sentava na platéia pra ver os músicos tocando aquelas partituras que eu escrevia. E eu, com a grade na mão, ia acompanhando e sacando o timbre de cada instrumento. Até o dia em que eu disse: "Agora quero aprender harmonia. Quero aprender orquestração direito. Quero aprender a segurar aquele violão direito”. Mas nunca deixei de assistir ensaio.
Tacioli - Até hoje vai atrás de ensaio?
Jards - Pra tocar junto tem que, no mínimo, dar uma ensaiadinha. O resto é firula.
Almeida - Jards, o que você acha quando se fala de artistas que estão hoje ainda fazendo músicas, mas “disco bom mesmo foram aqueles dois primeiros da carreira”?
Jards - Quem fala isso?
Almeida – A mídia...
Jards - A mídia é uma merda. A mídia mente descaradamente. A mídia não levo nem conta.
Almeida - Mas em mesa de bar se fala.
Jards- Pois é, insuflados pela mídia e por falta de conhecimento do que é um processo criativo. Eles não sabem como esse processo se dá. Nas minhas músicas geralmente há algumas citações, citações de várias músicas de vários coleguinhas. Eu cito propositalmente para incluí-lo na minha música. Pode ser uma música desses dois discos primeiros que ele gravou ou pode ser uma música do último disco do cara. Música é uma coisa atemporal. “Vapor barato” é aquilo que aconteceu ali, ninguém sabia que o cara havia sido preso no Carandiru, torturado, eletrocutado, porém a música vira um sucesso danado, mais por força de Waly, porque o Waly sabia vender. Eu nunca soube vender nada, eu dou. Me enche muito o saco e "Toma!". Quero me livrar daquilo. O Waly, não, ia lá e fazia. A Gal cantou “Vapor barato” e o “Mal secreto”. Foi um sucesso danado em 70. Aí acabou. De repente, aparece Terra estrangeira, filme do Waltinho Salles, com Gal cantando “Vapor barato” no final. Aí começou de novo. A Gal voltou a cantar o “Vapor barato”. Depois, o Rappa grava da forma deles, em reggae, a mesma música. Aí já estoura de novo. E, no entanto, a música... “O meu casaco de general / Cheio de anéis / Eu vou descendo por todas as ruas / Eu vou tomar aquele velho navio!”. Isso é coisa de hippie daquela época, como é que ela cabe hoje? Todo mundo sabe essa música, a garotada toda, todo mundo canta. Então, qualé, como essa coisa se realiza? Eu não sei.
A gente não vai comer, não?
Tacioli - Será que existe uma supervalorização do que foi produzido naquele período e não do que foi feito dez anos pra cá? Ou será que a obra, se é que dá pra dizer isso da sua própria obra, teve uma conotação muito mais forte do que o trabalho mais recente tem hoje?
Jards - Cada momento é um momento. Por exemplo: há músicas que são atemporais, há música que marcou muito um tempo, como “Vapor barato”. Passam-se anos, anos e anos e, de repente, por uma interpretação X, você entra com aquela música dando outra dimensão a ela, e ela retorna.
Renato - Uma nova leitura.
Jards- Uma nova leitura de uma música. Eu estava cantando Billy Blanco: "Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco / Afinal todo mundo é igual. Todo tombo termina por terra, por cima e na horizontal". Se morre ou não morre, fica ou não fica, vai ou não vai. Então, tem coisa na música brasileira filosófica, cara. É filosofia! E não essa chateação, esse pula-pula chato pra caralho. Quando começa assim [ ergue os braços e movimento como se fosse uma onda ]... Proibi o meu público! Eu não sou ditatorial, sou um democrata, mas eu proibi o meu público de fazer isso. [ repete o gesto ] O primeiro que levanta a mão já dá vontade de dar uma porrada. Digo: "Baixa a mão, aí, porra!". O cara não entende porque sou contra isso. Não sei, é feio. É um gesto simples, mas que carrega tanta burrice, tanta ignorância, tanta idiotice. O cara levanta o braço e já começa a me matar. Esse cara está misturando minha música com essa sacanagem toda que está aí. Estou fazendo justamente o oposto. Parece uma coisa esquisita, mas eu não gosto. Afinal de contas, a gente não vai comer, não?
Tacioli - Jards, obrigado pela...
Jards - Obrigado, é? [ risos ]
Dafne – Eu quero a minha parte.
Zé Luiz – A primeira parte do pagamento.
Jards - Obrigado a vocês pela atenção dispensada e cuidado com o Brasil! Ele tanto pode fazê-los felizes, como enfiá-los num buraco do cacete. Vamos torcer pela felicidade.
Dafne – Jards, uma coisa rápida...
Jards – Eu não tiro fotografia nu!
Dafne – Nada de nu! Vamos tirar um retrato ali junto à parede da Igreja, ali do lado.
Jards – Não vai aparecer um padre louco, não?
Dafne – Você gosta de padre que expulsa, né?
Jards – Eu gosto de padre.
Dafne – Não, sem padre. Já falei com eles. Eles vão entender...
ficha técnica
entrevistadores:
Dafne Sampaio
Daniel Almeida
José Luiz Soares Jr.
Max Eluard
Renato Nery
Ricardo Tacioli
fotos da entrevista:
Dafne Sampaio
Flávio Serafini
registro em vídeo digital:
Daniel Almeida
Max Eluard
edição:
Ricardo Tacioli
transcrição:
Marllon Chaves
texto de abre:
Dafne Sampaio
biografia:
Dafne Sampaio
layout da home:
Ricardo Tacioli
fotos da home:
Dafne Sampaio
Flávio Serafini
agradecimentos:
Bar Cú do Padre
José Luiz Soares Jr.
Rozana Lima

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