sexta-feira, 29 de junho de 2007

João Bosco

Publicado originalmente em http://butecodoedu.blogspot.com/

Um bate-papo igual àqueles de antigamente


No dia 17 de janeiro de 2007, eu [Eduardo Goldenberg] e o Luiz Antonio Simas, acompanhados dos amigos Rodrigo Ferrari e Leo Boechat, partimos em direção à Gávea, para o BAR DO SEU PIRES, na intenção de encontrarmos o João Bosco para um bate-papo desses que não se publicam mais. Enormes. Sem cortes.
Esse foi, particularmente, regado por uma garrafa de Red Label, algumas muitas garrafas de cerveja e muito violão.


Rodrigo Ferrari: Então, estamos aqui, 17 de janeiro de 2007, no Bar do Pires, na Gávea, com João Bosco... Começar a entrevista perguntando seu nome, o nome de seus pais e a rua em que você nasceu...

João Bosco: Bom... Meu nome é João Bosco de Freitas Mucci. Eu sou o sexto filho de Daniel Mucci, libanês, casado com uma mineira... libanês já falecido!... e ... morreu no dia anterior da morte, também, de Vinicius de Moraes... Eu me lembro... acompanhando meu pai até o cemitério... e no trajeto alguém me disse que o Vinicius de Moraes tinha falecido... E casado com uma mineira, de uma cidade também perto de Ponte Nova chamada Barra Longa, Maria Auxiliadora de Freitas Mucci. Eu digo que eu sou o sexto filho homem porque numa família aonde o chefe da família, vamos assim dizer, é libanês, é árabe, teve cinco filhas mulheres, ele já era um árabe completamente desacreditado na praça... (todo mundo ri)... Porque vocês sabem que na cultura do árabe a mulher tem uma importância relativa... Quer dizer... O homem tem a sua importância e a mulher vem a seguir, é uma sociedade que mantém ainda, um pouco, dessas leis prioritárias... E então quando eu nasci foi um motivo de muita celebração, de muita alegria, de muitos presentes. Minha mãe conta que a minha casa ficou repleta de amigos e principalmente das pessoas libanesas e afins, que moravam em Ponte Nova, cuja colônia árabe era... até hoje... não sei por quê... era muito expressiva. A cidade era toda demarcada por lojas, negócios, bancos com nome das pessoas que compunham essa colônia árabe, joalherias, enfim... Todo aquele comércio que faz parte da tradição desse mundo dos negócios árabes. E então foi um dia muito especial o meu nascimento, por causa disso... Meu pai voltou a erguer a cabeça, a andar empinado, com um certo orgulho porque tinha produzido um filho homem! Teve que esperar e amargar muito por isso!

RF: Que dia foi?

JB: Isso foi no dia 13 de julho de 1946. O meu pai era goleiro, um talento do coração!, e ajudava meu avô nos negócios por obrigação. Mas eles falam que meu pai – e eu só vi o meu pai jogando no gol naqueles jogos de veteranos... - ... mas eles dizem que meu pai realmente foi um grande goleiro, e a cidade toda comenta isso, existem diplomas e medalhas conferidas a ele pela sua habilidade no gol... E o que eu me lembro de meu pai, já jogando com os veteranos, era que ele tinha os dedos das mãos todos tortos, todos quebrados e os dentes foram todos quebrados também pelas chuteiras dos atacantes... E meu pai foi um goleiro muito disputado... Ele jogou a vida toda, praticamente, no Pontenovense Futebol Clube, que na época tinha um time excelente, cujas cores eram vermelho e branco, e depois também teve que passar uma temporada em Juiz de Fora, estudando por obrigação do meu avô, aonde ele jogou aonde ele estudava, no time, mas teve convite pra jogar nos melhores times de Juiz de Fora como Tupi etc e foi amigo de grandes goleiros no Rio de Janeiro, principalmente Castilho, que era goleiro do Fluminense, e que era amigo dele, e meu pai era um tricolor fanático, né?, doente... E talvez isso explique porque é que eu comecei torcendo pro Flamengo... Mas o meu pai contava que jogava muito com os times do Rio de Janeiro e eu cheguei a ver muitos times do Rio de Janeiro, ainda criança, jogando em Ponte Nova, os principais times do Rio de Janeiro na época, que eram muitos... não era só Flamengo, Vasco, Fluminense e Botafogo... Mas havia o América, eu vi Pompéia jogar, havia Olaria, havia Canto do Rio que eram times excelentes, né? São Cristóvão... e que faziam campanhas belíssimas... Bangu... Eu vi Zózimo jogar também em Ponte Nova... Então eu tenho uma lembrança, assim, da minha infância aonde a presença da colônia árabe é muito grande e também dos grandes times cariocas e de seus jogadores não menos famosos! Isso é uma coisa que tem um destaque na minha formação de infância!

RF: Quando você nasceu seu pai tinha quantos anos?
JB: Eu nasci em 46... Meu pai tava no auge de sua carreira, jogando bola... Meu pai morreu com cerca de 65 anos... E já se vão aí da data da morte dele... 25 anos... Mais um pouco... 30... Eu tive cinco irmãs, mas lá em casa é mais ou menos de dois em dois... Entendeu? De dois em dois anos... Meu pai era muito regular nessa questão da prole! (todo mundo ri) Se você vem numa escala descendente, começando com a irmã mais velha, você vai me pegar com 60 anos, mas ela deve ter 70, 71, a outra tem 69, a outra 67...

Simas: Uma escadinha!

JB: É... Uma escadinha... Mas eu falo isso porque o Aldir, por exemplo, ele não viu o meu pai jogar. Mas ele sentiu o meu pai jogar, que é a coisa do poeta... E o Aldir tinha uma ligação muito forte com o meu pai, uma coisa que não dá pra explicar – e nem precisa! Nós fizemos uma canção, uma vez, quando ficamos muito tempo sem nos ver, mas ainda trabalhando juntos, me lembro que ele fez uma canção – à distância – aonde ele fala do meu pai, é uma canção dedicada ao meu pai, e nessa canção ele fala do meu pai, das peculiaridades do meu pai, daquilo que ele conheceu intimamente do meu pai e aonde ele cita, inclusive, as suas proezas como goleiro... Meu pai devia ter contado histórias pra ele... Mas a ligação do Aldir com meu pai é uma coisa muito impressionante... Eu tenho uma foto do meu pai, em casa... Uma foto dessas grandes, tipo 18 por 24, uma moldura, mas ela fica na estante, entre os livros, e pra você se deparar com ela você tem que saber que ela está ali pra você olhar pra ela. Essa estante está num ambiente aonde você normalmente é atraído por outros quadros, por outras coisas que compõem, os objetos desse lugar... Mas eu me lembro de uma noite, o Aldir na minha casa, já recentemente, um ano atrás, uma coisa assim... A gente já tinha bebido todas, a gente tava realmente já... eu colocando música pra gente ouvir no som... E de repente ele se depara com a foto do meu pai, e eu do lado dele senti esse momento e ele se comoveu, entende? Aquilo foi uma coisa muito emocionante... E somente duas pessoas viram aquilo, né? Eu e ele! Eu e o Aldir! E meu pai, com certeza, deve ter sentido isso... Mas essa ligação dele, do Aldir, com o meu pai, nos torna muito mais do que parceiros, nos torna praticamente pessoas da mesma família, quer dizer, a gente já era mais do que isso antes, entendeu? Mas esse é um dado que eu acho que é importante...

Eduardo Goldenberg: Essa canção foi gravada?

JB: Essa canção foi gravada por mim e pelo João Donato, no songbook do Donato. Essa canção foi uma coisa impressionante! Eu tava na casa do João Donato, que é uma pessoa maravilhosa, um compositor admirável e de uma simplicidade muito grande não só naquilo que faz mas no trato com as outras pessoas, no caráter, entende? É um sujeito muito gracioso, muito dado, sabe? E eu tinha passado um dia e uma noite com o Donato e a gente tava lá tomando aqueles birinights, aquelas maluquices do Donato, que ele gosta e eu acompanho, e na hora em que eu fui embora... A gente tava fazendo músicas juntos! Aí na hora de ir embora ele foi me levar até a porta e na hora de despedir ele cantou duas frases de uma melodia como quem se despede de alguém com carinho, né? Um músico despedindo do outro, dizendo boa-noite, né?! E ele me cantou duas melodias de uma frase, ele fez... (João cantarola)... Eu fui embora e aquilo me saltou, tinha alguma coisa ali naquelas duas frases tão simples, ditas de uma maneira tão amistosa, tão amorosa, sabe? Um tempo depois eu peguei no violão e desenvolvi isso aí... E acabei fazendo uma música... E essa música eu mostrei pro Donato, e ele adorou! E ele disse: “Temos que colocar uma letra”. E eu já não via o Aldir já há muito tempo... Mas eu falei: “Tem algum empecilho pro Aldir fazer essa letra?”, e ele: “Claro que não! Eu adoro o Aldir”. Daí eu mandei a música pro Aldir. Aí ele fez...

EG: E você já tinha composto pensando no teu pai?

JB: Não! Absolutamente... (pensando) Meu pai sempre dizia uma frase que era “enquanto Deus me der vida e saúde...” e aí ele completava a frase... “eu vou ao seu casamento”...

RF: Era um bordão!

JB: Era um bordão! Só que toda vez que eu fui a missa com o meu pai ele nunca entrou na igreja!!!!! (todo mundo ri muito) Ele sempre ficava do lado de fora, ali, porque a igreja dava pra uma praça, então ele não entrava e ficava ali e ficava com os amigos conversando...

Leo Boechat: Mas ele era libanês e tinha outra religião?

JB: Não! Meu pai era libanês católico. Mas no título! E essas coisas eu aprendi cada vez mais com ele... Porque essa coisa da religião é uma coisa que tá dentro de você, não é uma coisa que tá no templo... Tá dentro! Eu acho que vontade e fé se misturam muito! Tem um livro do João Ubaldo Ribeiro, que é um escritor por quem eu tenho uma admiração profunda e eu tenho muito orgulho de ser muito amigo dele, aonde ele diz: “A vontade pode”. E isso é uma frase que se você for pensar, ela tem uma importância muito grande. A vontade pode. Quem quer, consegue! O que é a fé? A fé é uma vontade litúrgica! A fé é uma vontade! Quando você acredita numa coisa você parte pra cima daquilo, seja com um instrumento, seja com uma bola nos pés, seja com a caneta, com a máquina fotográfica, seja com uma régua de cálculo, com uma máquina de somar, qualquer coisa! E meu pai dizia sempre isso... Ele tinha uma vontade de estar junto das pessoas o maior tempo possível... Mas com respeito... “Enquanto Ele (frisando) me conceder!” Mas acontece que eu nunca vi ele rezando e nunca vi ele entrar na igreja. A gente ficava do lado de fora conversando, ele com os motoristas de táxi, com os amigos, ele gostava de um baralho também, ficavam falando do jogo do dia anterior...

S: Mas não era muito apegado a essa coisa material?

JB: Não, ele não tinha apego nenhum! Meu pai nunca pensou no dia seguinte. Nunca pensou no dia seguinte. Nunca. Toda vez que ele descia em Ouro Preto de ônibus, aonde eu estudava, eu me encontrava com ele no ponto de ônibus no trajeto em frente à escola, ele saltava ali, eu ficava ali com ele, às vezes tinha uma banca de um quitandeiro aonde ele vendia coisas, inclusive laranja! E ele às vezes descascava as laranjas, chupava duas ou três laranjas, batia um papo, pegava o ônibus seguinte e ia embora!!!!! E isso era o nosso encontro. O Aldir inclusive fala disso na letra. Na verdade o Aldir é o melhor contador de histórias que eu já conheci na minha vida. Uma mesma história que eu tenha vivido com ele, eu vou contar pra você e ela não vai ter a menor graça. Mas quando ele conta, é a mesma história, é uma coisa muito espirituosa, muito engraçada, você se diverte ouvindo porque ele é um grande narrador de histórias... Então essa letra está recheada de informações que eu passei pra ele... E ele coloca isso tudo lá, mas daquele jeito, como o grande contador de histórias que ele é.

EG: Mas volta aí pro Donato... Você perguntou se podia mandar a letra pro Aldir...

JB: Então! Aí eu mandei a música pro Aldir sem falar nada...

RF: Sem nem pensar em nada?

JB: Nada! E o Aldir então mandou essa letra...

EG: Chama como a canção?

JB: Chama “Nossas últimas viagens”, e fala da última vez que o Aldir foi a Ponte Nova, viu o meu pai... Meu pai já falecido... Então ele fala das últimas viagens dele a Minas e do meu pai aqui pra Terra!

EG: Foi composta quando?

JB: Ah... Eu não tenho essa memória, mas tem muitos anos... No songbook do Donato eu gravei com ele. Ele toca piano, eu toco violão e canto. E no meu songbook, produzido pelo Almir Chediak, quem canta isso é o Dominguinhos. E o Dominguinhos abre essa música dizendo da emoção que ele teve de cantar essa canção e diz assim: “O que eu queria na minha vida e não fiz, era uma música pro meu pai como vocês fizeram...”.
RF: O título foi o Aldir que deu?

JB: Foi. Foi composta numa época em que a gente se via muito pouco. Mesmo a gente à distância, a gente nunca deixou de ser irmão, porque nós falávamos de uma pessoa que ambos tínhamos um carinho muito grande...

EG: Vamos voltar pra sua infância. Você consegue dizer quando foi seu primeiro contato com música? Ou a primeira vez em que você teve certeza de que era isso que você iria fazer?

JB: Não. Na verdade eu sempre estive junto da música. Eu nunca pensei nisso... Porque pensar nisso implicaria em você ter um projeto de vida profissional com a música. E eu nunca tive isso. E naquela época não existia isso! Não existia a profissão de músico! Você dizia pra alguém aquela célebre frase: “Eu faço música”. E esse alguém: “E você trabalha em quê?”. Então a minha irmã era pianista. A minha mãe era violinista. A minha avó era bandolinista.

EG: Então se fazia música na sua casa?

JB: Se fazia muita música... Tinha sarau... Minha irmã era muito boa pianista...

EG: Tinha piano também na sua casa?

JB: Tinha... Isso é um detalhe que é impressionante... Toda casa tinha piano. Esse negócio da dificuldade de ter piano, isso é uma coisa dos tempos modernos, da economia recente... Na minha história, em Ponte Nova, que é uma cidade topograficamente cheia de subidas e descidas, como Ouro Preto, eu me lembro de subir e descer ruas com as crianças estudando escalas de piano, principalmente as moças. Fazia parte da educação a aula de piano. E não era uma pessoa de classe média, classe média alta! Qualquer casa tinha um piano! Na minha casa tinha piano! Nós éramos de uma família relativamente pobre, meu pai a essa altura da minha infância já tava deixando os negócios e mexendo com seguro de vida, ele era securitário, e minha mãe era professora de escola primária. Nós éramos dez irmãos, e nós vestíamos, comíamos e morávamos, entendeu? E na minha casa tinha piano!

EG: Depois de você vieram mais quatro filhos?

JB: É, mais quatro... Eram dez filhos! Mas deixa eu contar uma coisa... A minha irmã tava sempre envolvida com outros cantores, músicos, ela às vezes tocava no conjunto da cidade, aonde havia um crooner, e ela cantava também! Ela chegou a cantar muito bem, inclusive. Então na minha casa tinha sempre alguém ensaiando com ela no piano, eu criança já. Uma das coisas que eu mais me recordo dela tocando piano não era bem o piano, mas era um anel que ela tinha de uma pedra, tipo uma ametista, que ficava folgada na armação do metal, e ela ficava balançando. E à medida que ela tocava aquilo produzia um som, um ritmo, com os dedos. A pedra chocando com o metal dava um som, e aquilo me chamava muito a atenção. Engraçado, isso. Mas eu cresci no meio dessa audição diversificada. Vinha gente de música popular, vinha seresteiro e eu, garoto, também tinha os meus amigos de rua e eu acredito que eu vim misturado com a música, numa diversidade muito grande.

S: Alguém na família tocava violão?

JB: Não. A minha irmã é que ganhou um violão, que foi esse violão que sobrou pra mim. Ela comprou esse violão... Era todo esverdeado, aqueles violões que você compra em loja que você compra bacalhau, peça de roupa (todo mundo ri), língua de sogra, e o violão fica pendurado no teto amarrado com um barbante... Então ela comprou esse violão e ela acabou percebendo que esse violão ficava muito tempo comigo. Aí ela fez de conta que não sentia mais falta do violão e o violão acabou ficando em tempo integral comigo... Foi aí que eu comecei a tocar...

EG: Que idade você tinha aí?

JB: Eu devia ter 10 pra 11 anos... Mas a minha vida musical, no princípio, era muito heterogênea, sabe? Eu tinha uns amigos, jovens como eu, que gostavam do início do que tava acontecendo na música da juventude, e eu tinha um amigo meu que tinha uma discoteca do Elvis Presley, imensa, e a gente ficava ouvindo os discos do Elvis Presley... E você pode até achar engraçado... Mas você sabe que eu sou flamenguista por causa do Elvis Presley, né? Eu comecei a torcer pro Flamengo por causa do Dida, que tinha um topete muito parecido com o do Elvis. Quando eu vi a figurinha do Dida...

S: E o Dida... alagoano!

JB: ... eu falei... O Elvis joga no Flamengo!!!!!

(todos rolando de rir)

JB: Vou torcer pra esse time! Só depois é que eu fui saber que o Dida era alagoano... Fiquei vendo o Dida escondido na Gávea, sem querer perturbar o cara, só vendo o cara de longe... Porque esse cara é o início, pra mim, de tudo... O fato de eu torcer pro Flamengo vem daí! Vem do topete dele... Que é um topete de Elvis Presley! Elvis joga no Flamengo! Era essa a sensação!

EG: Bela história, hein!

S: Magnífica!

LB: Melhor que Elvis não morreu é Elvis jogava no Flamengo!

JB: Aí eu comecei a misturar Dilermando Reis com Elvis Presley, misturava isso com Noel, com Caymmi... Meu pai, naquela época, fazia umas viagens ao Rio pra comprar material pra loja do meu avô. Então ele vinha comprar os tecidos, uma coisa assim. Mas ele, goleiro de futebol – e futebol tem uma relação com a música popular muito forte, inabalável - , eu acho que ele vinha aqui pra Lapa... Ele nunca me falou isso... Mas onde é que ele aprendia a cantar aquelas músicas que ele cantava e que eu às vezes acompanhava no violão ainda garoto? Ele cantava muito samba do Noel. Onde é que ele aprendia? Eu nunca vi ele ouvir rádio em casa... Eu acho que quando ele vinha ao Rio, ele ficava aqui...

S: Escapava pra velha Lapa...

JB: Então a minha formação musical era muito solta, livre, diversa, e não havia um critério. Pelo menos não havia um critério cultural. Ninguém baixava uma norma pra dizer o que prestava e o que não prestava. Na verdade essa norma era ditada pelo meu sentimento, por aquilo que meu coração mandava! Então eu acho que dentro dessa mistura toda, na audição, e eu dou muito valor a isso, há essa maneira solta de estar ligado à música... Por exemplo, é muito difícil você dizer, numa música feito “Tiro de Misericórdia” que ali não tem um pouco de... Por exemplo... essas coisas que vêm porque querem... independente da sua vontade... porque a música tem muito isso... vem porque quer! Né? E você não controla isso. E é muito difícil você especificar determinadas influências, ou pelo menos aonde é que elas estão. Mas eu acho que é muito difícil em certas músicas, por exemplo, que eu andei fazendo, dizer “aqui não tem o Little Richards”... Eu acho importante isso...

RF: Tinha vitrola na sua casa em Ponte Nova?

JB: Tinha rádio, no início... E depois, duas irmãs mais velhas, que eram muito ligadas em música... A minha irmã pianista, que é viva até hoje, que é a mais velha, e que tem um coral lá em Ponte Nova, o coral aonde a minha mãe inclusive participa, e uma outra irmã, já falecida, que também gostava muito de música... Elas começaram a trabalhar na Receita Federal, tinham um salário bom, então permitiu que elas comprassem uma vitrola pa casa... Eu achava, inclusive, naquelas vitrolas, que o instrumento – e eu só fui saber isso muito tempo depois – baixo elétrico só existia nas vitrolas “high fidelity”, e não no rádio! Eu achava que quem tocava aquele instrumento era a vitrola! Porque o baixo ele precisava de uma estrutura pra se expressar! Como o rádio era uma coisa pequena, tinha ondas que não permitiam uma tradução com fidelidade do que se registrava, eu achava que o baixo só existia nas grandes vitrolas! Então eu, quando ia ouvir música na casa dos outros, que eu via que a vitrola era pequenininha, daquele tipo que você tira a tampa, aí eu dizia “não quero, essa vitrola não toca baixo”... Isso era muito engraçado, cara! Eu só fui descobrir que o baixo era um instrumento mesmo muito tempo depois! Muito engraçado. E eu tive uma vitrola dessa de tampa... Em Ouro Preto era a minha vitrola. E eu sofria muito. Porque eu já tinha a consciência de que o baixo existia, mas que eu tinha que imaginá-lo, ali era impossível ouvir...

RF: Você não começou com acordeon, não?

JB: Não... Minha irmã ticava acordeon... E tinha muito professor de acordeon... Mas é que o violão tinha foto, tinha pose, se fazia mais publicidade...

EG: E depois do violão verde... o segundo... você comprou?

JB: Não... O segundo era um violão que eu tinha na república em Ouro Preto, na Sinagoga, que quando eu entrei pra essa república esse violão já existia lá há muito tempo, e eles não davam a menor bola pra esse violão... Esse violão, inclusive, tinha uma marca de ferro elétrico no verso, porque neguinho botava o ferro ali... Daí eu peguei esse violão pra mim...

LB: Em Ouro Preto você já tocava violão legal?

JB: Em Ouro Preto realmente eu comecei a tocar violão.

EG: Aí você tinha o quê? 18 anos?

JB: Eu fui pra lá em 62, tinha 16...

LB: Mas você já tocava bem?

JB: Eu tocava em Ponte Nova, parei de tocar, fui pra Ouro Preto e lá o violão ressurgiu. Mas aí ressurgiu intensamente, eu comecei a conviver com os músicos da escola, com os colegas...

RF: Você fazia qual engenharia?

JB: Civil.

EG: E você começou a compor lá em Ouro Preto?

JB: Comecei a compor lá sem perceber que estava compondo...

EG: Pegava o violão e...

JB: ... e ficava tocando música dos outros... Que é o que eu faço até hoje! Eu nunca pego o violão pra compor, eu pego o violão pra tocar música de alguém. Às vezes eu cismo com músicas... Ontem quando eu falei com você eu cismei com “Tudo se Transformou”... Porque eu sempre que toco “Chega de Saudade”, quando chego naquela parte (cantando) “mas se ela voltar, se ela voltar que coisa linda, que coisa louca, pois há menos peixinhos a nadar no mar do que os beijinhos que eu darei na sua boca...”, eu sempre me lembro do Paulinho da Viola... E isso há muito tempo! Eu sou canceriano, sou mineiro, sou preguiçoso... Eu demoro, demoro a pegar. Aliás, escuta isso! Eu até dei um computador pra minha mãe um dia desses... Não me deixa não voltar ao assunto!

RF: Tá!

JB: Mas eu dei um computador pra ela – ela queria aprender!, minha mãe já está com 90 anos, e isso deve ter uns 5 anos... – achei que seria bom pra ela, aprendendo ou não. Aí um dia eu ligo pra ela e digo assim “Mamãe, e aí?”. Aí falamos de uma série de coisas, e tal... E eu digo assim: “E o computador?”. “Ah! Tá aqui, meu filho... De vez em quando ele pega, de vez em quando ele não pega...”. (todo mundo ri muito) Eu fiquei com aquilo na cabeça... Aí eu conversei com alguém e contei “Falei com minha mãe, rapaz, sobre o computador, e ela diz que tem dia que ele pega, tem dia que ele não pega... você não acha isso interessante, em se tratando de computador, uma coisa de ponta, de tecnologia, pegar e não pegar?”. E o cara “Não, João, mas faz sentido! Antigamente o rádio pegava e não pegava!”... Eu tava falando sobre...
EG: Paulinho da Viola!

S: “Tudo se Transformou”...

JB: Então sempre que eu toco esse samba, me vem o Paulinho, de quem eu tenho a honra de ser amigo pra caramba e durante muitos anos eu fui meio até que cambono, uma espécie de assistente (Simas ri) do Paulinho, porque eu carregava aquela cesta de chuteira, pro futebol... Eu ficava à beira do campo e dizia “Olha, você tem que cair mais pra direita... desse jeito você não vai receber bola, não... você tem que voltar”... Eu dava instruções pra ele... Imagina você! E ele tinha um Fusca... E quando acabava o futebol a gente ficava naquele sopão que tinha lá no Portelão, tomava a sopa, tomava aquela cerveja... e quase todo sábado era isso aí. E agora, recentemente, eu disse pô “pára de ficar pensando nisso e vai ver o que é que é”... Aí eu fui pegar o “Tudo se Transformou”... Então tá lá... (cantando) “Violão até um dia quando houver mais alegria eu procuro por você, cansei de derramar inutilmente em tuas cordas as desilusões deste meu viver, ela declarou...”... A segunda parte de “Chega de Saudade” passa por ali! Você vê como é que é engraçado isso... Na verdade a música pra mim é uma espécie de carretel de linha, porque você vai puxando e uma coisa vem depois da outra... Ou seja... Depois de um, vem dois, vem três, vem quatro, vem cinco, vem seis... Não adianta pular pro oito, que antes do oito tem sete... Entendeu? Não tem essa de escutar isso! Eu não escuto isso! Eu escuto uma coisa que me leva à outra e que me leva à outra e que me leva à outra!!! Eu acho que “Tudo se Transformou” dialoga com “Chega de Saudade”, o Paulinho estabelece um diálogo com Vinícius e Tom, pois se um samba diz “ela declarou recentemente que ao meu lado não tem mais prazer” o outro diz “vai minha tristeza e diz a ela que sem ela não pode ser”...

LB: Pensando assim foi que você misturou Noel Rosa com Beatles?

JB: Exatamente! Fita Amarela com Eleanor Rigby...

LB: Ou como fez com o Expresso 2222, do Gil, com a música do ET!

JB: Já misturei Bethoven com Tico-Tico no Fubá! (cantarola) Aí entra no choro... (cantarola)... Pô! Tico-Tico e Bethoven! E não é gratuito! Existiu mesmo... É uma coisa feita que chama a outra... Não sei por que cargas d´água, mas eu acho que música é um pouco assim... Fazendo um corte, rapidinho, eu li uma série de entrevistas do Chico Buarque pra esse show recente, onde ele fala isso! Que o roteiro do show foi construído com uma música puxando a outra! Eu acho que na verdade todo roteiro, todo repertório, toda a maneira de se fazer música vem de uma coisa puxando a outra! É assim que eu penso. Então não existe, formalmente, um critério pra se educar musicalmente. Não! É uma coisa puxando a outra!

EG: Mas vamos voltar lá pra Ouro Preto. Você falou que começou a compor sem saber que estava compondo... Era por isso? Você ficava tocando música dos outros e de repente tava compondo?

JB: É porque quando eu procurei o Vinicius de Moraes em 67...

EG: Você que o procurou? Ele tava lá?

JB: Eu que procurei, ele ia sempre lá. Eu entrei pra escola em 67. Por isso é que eu digo que eu perdi um ano, junto com o nosso amigo Gilberto... Porque eu saí em 72. Na verdade o meu curso de engenharia, que era de cinco anos durou seis! E eu devo esse primeiro ano que eu perdi na escola – eu perdi por freqüência! – eu devo ao Vinicius. E é uma dívida que eu não vou conseguir pagar! Foi o ano em que eu mais aprendi na vida! Foi ano que eu não fui à escola! Eu procurei o Vinicius na pousada aonde ele ficava hospedado, “Pouso do Chico Rei”. E comigo foi o rapaz que era meu colega de república e que tocava no quarteto vocal que eu tinha chamado “Quarteto de Ouro Preto”, aonde nós já tocávamos música popular brasileira e eu fazia os arranjos vocais sem conhecer nada de música, uma nota de música... Aliás não conhecia e não conheço. E peço desculpas publicamente por isso, porque isso não é nenhuma vantagem! Isso é um complexo que eu tenho... Não aprendi música, não consegui aprender música porque meu saco estourou! Eu devia, ao invés de estar estudando engenharia, eu devia estar estudando música! Por isso é que eu acho que as escolas têm que ter nos seus currículos educação musical! Porque se o sujeito revela ali o talento dele, ou a sina de ser músico, é dali que ele parte. Como eu não tive isso, eu fui estudar engenharia. Não reclamo também! Porque na engenharia também eu vi coisas muito bacanas e que estão muito ligadas à música, principalmente através dos gregos, dos filósofos, dos matemáticos e que estão dentro da engenharia, porque a maioria dos cálculos, dos matemáticos, desses enunciados, foram feitos por gente biruta igual qualquer tipo de músico louco que tem por aí, tudo feito na base da inspiração, da intuição. Mas me diga uma coisa... Como é que um garoto, de Minas Gerais, com seus 21 anos, bate na porta do Vinícius do Moraes – que era tudo no Brasil, Vinicius reinventava a letra da música brasileira (e eu digo reinventava porque eu acho que quem inventou a letra na música brasileira foi Noel Rosa e depois o Vinícius a reinventou, mas o Noel encabeçando, na década de 30!) – então como é que você bate na porta de um cara desses pra mostrar música, sendo que ele se chama Vinicius de Moraes? E por que o Vinícius de Moraes? Porque Vinícius de Moraes era o cara que escrevia poesias muito parecidas com a pessoa dele. Toda a poética de Vinícius, toda a generosidade que você encontra na poesia de Vinícius, toda a vontade de fazer amigos, de encontrar o amor... tava nele! Ele era aquilo! Então eu bati na porta procurando um cara que eu tinha certeza que ia me receber de braços abertos...

EG: E foi o que ele fez?

JB: Foi o que ele fez! De braços abertos e com uma garrafa de uísque. E ele disse: “Você faz o quê?”. E eu disse “Entrei pra escola esse ano...”... “Ah, é?...”, e eu com o violão do lado... “Eu tenho um quarteto vocal, esse rapaz aqui toca comigo...”, o nome dessa rapaz é Paulo César Pavanelli – quase Carpegiani mas não é!!!! (todo mundo ri muito). Só pra lembrar que 81 foi o ano que não terminou para os outros times! E o Vinícius: “Ah, você tem um coral? O que é que vocês tocam?”. Eu disse e ele disse “Mas esse repertório é muito bom...”, e inclusive tinha coisas dele. “Toca alguma coisa aí!”... Aí eu toquei um samba que eu tinha feito... “Pô, mas esse samba é bom, toca outro...”. Eu fui e toquei outro. “Pô, mas esse também é bom... toca outro!”. Aí eu vi que tinha acabado. Eu era um compositor de dois sambas! Eu nunca estive atento ao lance de compor, eu tava tocando a música de todo mundo... só depois vinha a minha...

EG: E essas duas deram samba?

JB: Essas duas deram samba! Uma ele letrou, que foi o “Samba do Pouso”, a primeira, que tá gravada no songbook dele, eu gravei com “Os Cariocas”...

EG: Foi a primeira música que você fez na vida?

JB: A primeira música que eu fiz na vida...

S: E foi ele que se dispôs a letrar?

JB: Naquela hora!

EG: Dentro do quarto?

JB: Ali! Na pousada! Meu primeiro parceiro... O segundo quem letrou foi um cara que eu conheci aqui no Rio de Janeiro, chamado Torquato Neto. Porque eu venho ao Rio, nas férias, e porque aí o Vinícius resolve me adotar!, e eu via o meu nome pipocando naquelas notinhas... O Vinícius dava notas sobre mim nos jornais, no “Jornal do Brasil”... E havia o “Correio da Manhã”, e outros jornais, “O Globo”, e o Vinícius sempre falando de mim. Isso era uma coisa que eu não vou conseguir nunca devolver ao Vinícius... (visivelmente emocionado)... entendeu? Toda a generosidade que ele deu, não só a mim, mas como a muitas pessoas do meu tempo, e acho que extensivamente ao público do Brasil que, pô... que tem por ele... e não sou eu que digo isso... que tem a experiência que esse público tem de reencontrá-lo através de especiais, de filmes biográficos e tudo, e revelarem a sua admiração por uma pessoa tão bonita e tão maravilhosa feito o Vinícius. Mas ele resolveu me adotar... E ele e o pintor Carlos Scliar, que é meu padrinho de casamento...

RF: Que tinha casa lá, né? (em Ouro Preto)

JB: Tinha casa lá e eu freqüentava muito a casa...

RF: Casa maravilhosa...

JB: Exatamente... aquele chalé... que era do Scliar e do pintor Ivan Marquetti, que faleceu há pouco tempo e foi grande amigo meu esse tempo todo da minha vida, um grande amigo, um grande pintor. E o Vinícius adorava o Ivan, tinha um carinho muito grande pelo Ivan. Mas os dois começaram a me convidar pra passar as férias escolares, da escola de Minas, no Rio! Então na época de julho e na época que vai de fevereiro a fevereiro, eu passava no Rio de Janeiro. Numa dessas que eu vim, entre janeiro e fevereiro... eu vou te dizer até a época... foi a época que o Chico Buarque lançou um disco aonde ele tem uma foto segurando um violão na Lagoa... E que tem a música “Realejo”... (disco de 1967, “Chico Buarque de Hollanda)

LB: Preta a capa?

JB: Preta! Eu vou te dizer porque é que eu me lembro desse disco... Quando eu estava na casa do Torquato, o Chico ligou pra ele naquela madrugada. E conversaram sobre música. Aí o Torquato faz uma menção a esse disco, que tava ouvindo, que tava curtindo o disco, e esse disco nunca mais me saiu da cabeça e por dois motivos... O Chico ser o que é, compositor maravilhoso, genial e único e o Torquato por ser um pensador, e poeta, e representante de um pensamento que é singular e que é fundamental inclusive no Tropicalismo. Eu fui parar na casa do Torquato por causa de um sujeito que morava em Niterói, e que mora até hoje, chamado Chico Enói e que ninguém sabe quem é, ninguém conhece, que não conseguiu impor o seu repertório, a sua obra. Ele mora em Niterói até hoje, e não conseguiu mostrar o seu trabalho, mas que tinha e tem talento para estar aí, hoje, fazendo a sua música... Que a música tem muito disso, a poesia tem disso, a literatura tem disso...

RF: Oportunidade, né?

JB: Enfim... ele não teve oportunidade. Mas quem me levou ao Torquato foi o Chico Enói. Portanto nesse samba nós temos parceria... Eu e o Chico Enói. Aquela parceria que a gente entra porque a gente é amigo... aquela parceria de antigamente!

S: Tem que entrar!

JB: Tem que entrar... É a parceria que eu mais sinto falta! Porque é a parceria que vai a qualquer lugar, a qualquer hora...

RF: Como o Donato foi teu parceiro por causa daquelas frases no dia da despedida de vocês...

JB: Exatamente! Né? Se não fosse aquele negócio aquela música não existiria... O Chico Enói, se não me leva à casa do Torquato, eu não teria ido, eu não teria feito um samba com ele chamado “Fique Sabendo”...

EG: Que foi o segundo samba que você mostrou pro Vinícius...

JB: Não. O segundo samba que eu mostrei pro Vinícius, e que ele letrou, chama-se “Rosa dos Ventos”. O Torquato letrou esse samba naquela noite... Agora eu vou te dizer... Naquela noite quem é que estava na casa do Torquato? O telefonema do Chico Buarque, que não é pouca coisa e eu presenciei... (Rodrigo ri) Um pianista de São Paulo, que é um gênio, chamado Laércio de Freitas, conhecido pela alcunha de “Tio”, tenho a honra de ser amigo do Laércio... Sempre que eu vou a São Paulo nos encontramos, e todo show meu em São Paulo ele vai, e quando eu estou em São Paulo, aonde quer que ele esteja tocando eu vou assistir... Estava um sujeito chamado Jards Anet da Silva mais conhecido...

RF: Macalé!

JB: ... como Macalé... Deitado num canapé... (todo mundo ri)... Devia ter tomado uns birinights, tava ali sonhando com os anjos, tirou uma soneca... Conheci o Macalé dormindo! Não é qualquer pessoa que é apresentada a uma outra dormindo! Eu conheci o Macalé dormindo, tive esse prazer... E um músico, numa mesa, que estava com um terno marrom, mas um marrom muito especial, mais pro brown do que pro marrom, marrom cheio de guéri-guéri, uma camisa rosa, uma gravata verde, uma meia rosa, um sapato clássico marrom, um anel muito bonito nos dedos... Esse sujeito era conhecido como Ismael Silva! (Simas gargalha)


EG: Que noite!

JB: Estávamos numa mesa como essa aqui... Conversando... Eu acho que a mulher do Torquato tinha um parentesco com o Ismael que eu não vou dizer a vocês porque eu não me lembro mais! Mas tem um parentesco com o Ismael. E foi essa a noite que eu passei na casa do Torquato Neto, na Ladeira dos Tabajaras! Que eu nem sabia o que era o Rio de Janeiro, mas toda vez que eu vejo Tabajaras... Pode ser num filme de Hollywood, pode ser no Casseta e Planeta, pra mim... Tabajaras vem essa turma toda junto!

EG: E você foi parar lá por conta desse amigo de Niterói?

RF: 1967, né?

JB: 67 pra 68... Final de 68...

EG: E quando você e Vinícius fizeram “Rosa dos Ventos”?

JB: Fiz em outra época em que ele foi pra Ouro Preto...

EG: Volta lá pro encontro com o Vinícius lá em Ouro Preto , o primeiro samba...

JB: Então... Ele letrou o samba, eu voltei pra república com o Paulinho Pavanelli...

EG: E você louco, né?
JB: Já bêbado e ali, naquele dia, eu tive uma certeza na vida... A minha vida ia ser música... Ali! Naquele dia! Naquela noite!

EG: Você lembra o dia exato, João?

JB: Não... não lembro...

EG: Mês?

JB: Abril, maio... O inverno tava se anunciando... Eram noites um pouquinho mais frescas, mais frias... ainda não era inverno... abril, maio... de 67! Ali, naquele dia, eu descobri que meu negócio era música. E aí eu comecei a ouvir música diferente. Eu comecei a olhar pra música não mais como aquele sujeito que não se programa, que não tem vínculo, que não tem responsabilidade com a música, eu comecei a olhar música diferente. Então eu comecei a ouvir música e já queria saber quem era, quando foi gravada, quem é que cantou, que tom que estava, eu comecei a olhar música com outro propósito! Acho que a partir dali eu virei compositor, virei músico! E coincidentemente parei de ir à escola! Então... Perdi o ano! Repeti o ano... Mas o Vinícius, outras vezes, me aconselhou: “João, que é isso? Vai à escola! Não vai pro Rio agora não... Vai fazer o quê no Rio? Tá aqui com seus amigos, numa cidade maravilhosa...”.

RF: Você tocou naquele teatro municipal de Ouro Preto?

JB: Várias vezes! Várias vezes... E vi o Vinícius lá várias vezes... Com o Toquinho, se apresentando lá, com a Marília Medalha... Eu conheci o Victor Assis Brasil...

RF: Quantos músicos do Rio iam se apresentar lá?

JB: Olha... eu conheci Victor Assis Brasil lá. Na noite em que eu conheci o Victor eu até me aproximei dele, eu já tava envolvido com música lá... Aí eu disse pra ele... “Um dia, no Rio de Janeiro, eu vou te procurar e te convidar pra você fazer alguma coisa...” e ele... “Pô, com o maior prazer!”... E ele nem sabia o que eu fazia! E no disco “Linha de Passe” eu cumpri a minha promessa! E ele também! Ela toca comigo uma canção chamada “Mara”, minha e do Aldir... Ele toca, só eu e ele... O solo é dele, o contracanto é dele... Isso em 78. Você vê que a minha promessa se cumpriu! E a dele também!

S: E então você seguiu o que Vinicius tinha proposto e só veio pro Rio depois de se formar?

JB: Só vim depois de 72. Mas vinha todas as férias, mas só mesmo depois de formado é que eu vim... Rapaz... Eu não colei grau!!!!!

S: É mesmo? Terminou o curso e...

JB: Eu terminei o curso... Na verdade eu colei grau mas não busquei diploma! É isso! Eu colei grau no dia 4, vim pro Rio no dia 6 e casei no dia 9! Na verdade eu casei oficialmente no Rio, no dia 9, eu colei grau no dia 4, vim pro Rio no dia 6, e casei aqui oficialmente com um Juiz e pronto... Não voltei mais! Não busquei nada, não fui pra república, não busquei meus livros, meus cadernos...

RF: Sua foto tá lá!

JB: Eu sei! Eu sei! Eu tinha uma mala muito especial com as minhas coisas... Então eu busquei essa mala, ficava debaixo da minha cama, como todo bom mineiro, onde guardam os tesouros... O Scliar foi meu padrinho aqui...

RF: E a sua mulher é de lá?

JB: A Angela nasceu no Rio e foi criada em Ponte Nova. A família da mãe era carioca, e a própria mãe era cantora lírica.

RF: E quando você veio pro Rio foi morar aonde?

JB: Eu fui morar na Pacheco Leão... Trouxe os móveis de Minas, de Ouro Preto... Quem fez os meus móveis foi um carpinteiro de Ouro Preto... Com o primeiro adiantamento que eu recebi da RCA Victor quando eu assinei o contrato. Então com esse dinheiro eu comprei os móveis que eu precisava e vivi com esse dinheiro um ano aqui no Rio de Janeiro enquanto eu não tinha trabalho.

LB: E o encontro com o Aldir?

JB: Meu encontro com o Aldir foi mais ou menos no final de 69. No final de 69 eu conheci um sujeito de Petrópolis, chamado Pedro Lourenço Gomes. O conheci em Ouro Preto porque ele era amigo de um amigo meu de Ponte Nova, chamado Roberto Lopes, que gostava de cantar e que cantava de uma forma muito peculiar, muito macia, muito cool, e eu me lembro que uma das canções que ele cantava – e fazia isso muito bem! – era uma canção do Johnny Alf. “Ah, somente um dia longe dos teus olhos...” (cantando) Ele cantava isso muito bonito. E o Roberto era amigo desse Pedro Lourenço, de Petrópolis. E eu o conheci em Ouro Preto junto com o Roberto, e ele me viu tocando e já fazendo aquelas coisas, em 69, eu já fazia umas músicas meio malucas, tipo “Agnus Sei”, essas coisas... Aí ele disse assim: “Rapaz eu tenho um amigo meu lá no Rio que quando ouvir essas músicas... eu não sei, cara, eu acho que ele vai botar umas letras que você vai gostar aí...”, e eu falei “É?” e ele “É! Inclusive ele é um amigo com quem eu toda segunda-feira estudo com ele, nós lemos livros juntos e estudamos filosofia e psicanálise, um rapaz chamado Aldir Blanc”, e eu “Legal... fala pra ele...”. Aí eu fiquei pensando naquele nome, já tinha ouvido aquele nome em algum lugar... Aí fuçando a minha memória, que naquela época funcionava muito bem (ri), eu me lembrei dos festivais universitários! Lá na escola de Minas havia um jornal chamado “O Martelo” e eu escrevia sobre música, e eu já tinha falado dele mas não falado religiosamente, sabe?, mas já tinha passado por aquele nome. Aí um belo dia em tô em Ouro Preto e me liga o Pedro e me diz “Nós vamos praí”... E eu disse “Nós quem?” e ele “Eu, Aldir, o Paulo Emílio, o Eduardo Andrade”... que era percussionista, fotógrafo, tocava com o Gonzaguinha e trabalhou muito tempo na TV Manchete. “Quando é que vocês chegam?”, “Depois de amanhã”. Aí eu passo na casa do Ivan Marquetti, que é a casa que o Scliar tinha com ele... A empregada disse “Seu Ivan viajou...”, “Pô, mas o Ivan não falou nada...”. Aí eu encontro um amigo nosso, estudante, que disse... “É... o bicho tá pegando aí...” E era o negócio da ditadura! “Os caras em Belo Horizonte estão atrás de algumas pessoas, o Ivan tá na lista, fulano tá, mas se eu fosse você eu dava um pinote, porque vocês estão sempre juntos...”... Aí eu lembrei da comitiva que vinha do Rio! Aí deixei uns amigos avisados em Ouro Preto. “Vou me mandar”, “Pra onde?”, “Pra casa de mamãe!”. Eu era um garoto, um jovem, a maldade era do mesmo tamanho da inocência, daí fui pra casa de mamãe, se alguém quisesse me achar era só ir pra casa de mamãe porque eu tava lá! Aí deixei, em Ouro Preto, o pessoal avisado que eu ia pra casa de mamãe. Depois eu perguntei pro pessoal da república se eles já tinham chegado em Ouro Preto e eles já tinham chegado e estavam indo pra Ponte Nova. Daí eles foram pra minha casa em Ponte Nova. Foi a primeira vez que eu encontrei o Aldir! E nesse dia minha mãe fez aquela macarronada né?, que dá pra vinte pessoas, foi quando eu fiquei conhecendo o Aldir, que já tinha levado um gravador, o Pedro tava presente e ficou “toca aquela, toca aquela!” e eu toquei o “Agnus Sei”, o “Bala com Bala” e o “Angra” que não tinham letra. Aí o Aldir botou no gravador as três e levou. E começou a me escrever do Rio de Janeiro e a gente se correspondia por cartas e ele me falando dos livros todos que eram na verdade dicas que ele me passava de literatura sem querer dizer “leia isso”, ele dizia “olha, eu li isso...” e aí citava as passagens e eu comecei a procurar os livros pra estar junto dele, pra entender o que ele queria me dizer... Foram as três primeiras músicas: “Agnus Sei”, “Bala com Bala” e “Angra”. Isso foi no princípio de 70.

EG: João... e de quando foi aquele disco de bolso do Pasquim?

JB: 72. Nós já tínhamos trinta música nessa época! Porque aí eu comecei a mandar as fitas pra ele, 70, 71, e ele mandava as letras...

EG: Então a parceria se estabeleceu assim mesmo?

JB: É! Fita pra cá e letra pra lá!

LB: Quando voltou o resultado das primeiras letras, qual foi sua reação pra essas três primeiras músicas?

JB: Cara, a primeira coisa que me chamou a atenção foi a sonoridade das letras...

EG: As músicas já tinham nome?

RF: Você que deu o nome?

JB: Não! Não! Ele deu os nomes! “Agnus Sei” vinha assim... “Ê andá pa Catarandá que Deus tudo vê...” (cantando)
... Aí eu dizia... “Gente! Era mais ou menos o que eu fazia tocando!!!!”... Então o sujeito já tava dentro da sonoridade, não era só em letrar, ocupar os espaços da melodia, ele olhava dentro e sentia o seu ritmo, o que você pensava quando tocava aquilo... Entendeu? Isso foi a coisa que mais me impressionou... Você vê a letra de “Bala com Bala”... “A sala cala / E o jornal prepara / Quem está na sala / Com pipoca e bala...” (cantando)... Tudo lá... pó-pó-pó... O ritmo! Tudo era rítmico... Mas o Aldir é um letrista extraordinário também em função do ritmo que ele tem também... Porque o Aldir foi o primeiro percussionista aqui no Rio de Janeiro! Tocava tumbadora comigo! Primeiro nós tínhamos um duo, eu e ele. Depois uma banda. E ele tocava percussão. E vou lhe dizer uma coisa que ninguém desconfia! No primeiro show que nós fizemos aqui no Rio, no Colégio São José, eu toquei duas músicas do Ray Charles e o Aldir na tumbadora!!!! Eram “Tell me the truth” e “I´ve got a woman”. Fazia parte do nosso roteiro!

LB: Excelente!

JB: (rindo muito) Primeiro show, no Colégio São José! Que o nosso baterista... Não tem lá uma escadaria?

EG: Tem!

JB: Então! O nosso baterista desceu aquela escadaria de Fusca... Eu não sei como é que ele faz, mas ele tomou um porre tão grande que ele errou o caminho e desceu as escadarias do São José de carro! Foi aí que nós entendemos a primeira piração de músico que a gente viu explícita! O nosso batera desceu as escadas de carro!

RF: Isso foi quando, João?

JB: Isso em 73, 74 no máximo. Não passava disso aí... Mais pra 73. E em 73 eu gravei meu primeiro longplay pela RCA Victor cujos arranjos são do Luizinho Eça e do Rogério Duprat aonde tem o “Bala com Bala”.

LB: A Elis gravou você em 72, né?

JB: Ela grava “Bala com Bala”...
EG: Como é que vocês chegam na Elis?

JB: Elis tava ensaiando um show no Teatro da Praia e o Ziraldo me ligou e disse “Olha, a Elis tá no Teatro da Praia ensaiando um show, por que é que você não vai lá mostrar umas coisas pra ela?” O Ziraldo já conhecia muita coisa da gente em função do disco de bolso... Aí eu fui. Peguei o violão e fui. Essas coisas da vontade, da fé. Entrei no Teatro e ela tava no palco. Quem tava começando o trabalho com ela ali era o César Camargo Mariano, era o primeiro trabalho dele com ela. E iria começar ali naquele show. Ele falava muito pouco, mas de uma musicalidade extraordinária... Cheguei no palco e o Ziraldo já tinha ligado pra Elis. Ela disse “Você que é o cara lá de Minas?”, e eu falei “Sou...”, e ela “Ih, eu adoro Minas Gerais, tô em estado de graça com Minas Gerais!”... Isso porque ela tinha gravado Milton, “Canção do Sal”, que nos remete à Salinas, nossas grandes cachaças... Aí eu fiquei mais à vontade. Aí ela falou “Toca aí...”, e o César parado no piano. Peguei o violão e saí tocando umas coisas que eu realmente não me lembro mais o que era, mas quando chegou no “Bala com Bala” ela disse “César, essa aí a gente bota no show na segunda-feira!”. O show ia estrear na segunda-feira! Não era de quinta a domingo, não! Era de segunda a domingo! “Essa eu vou botar no show de segunda-feira”... Aí ela disse “As outras, nós vamos gravar!”... Aí eu botei no gravador dela “Caça à Raposa”, “Caçador de Esmeraldas”, “Comadre” e o “Agnus Sei” que ela já conhecia e botei “O Mestre Sala dos Mares”. No disco seguinte ele vem com quatro! Ela gravou quatro músicas nossas e quatro músicas do Gil sendo que essa do Gil – “Amor até o Fim” – ele não gravou até hoje! E eu ouvi essa música pela primeira vez quando o Gil foi mostrar pro Vinicius na casa que ele morava aqui na Gávea, já em 73... Eu tô na casa do Vinicius e ele oferecendo uma festa pro Astor Piazzolla, nos convidou – a mim e ao Aldir, Flávio Rangel, Egberto Gismonti, Chico Buarque – e nós estávamos ali, naquela pequena casa que o Vinícius morava, na Gávea, e no meio da festa o Vinícius disse “Joãozinho, toca pra eles...”, aí eu peguei no violão e fiz o “Agnus Sei”, fiz o “Bala com Bala”, fiz o “Angra”, fiz o “Amon Rá e o Cavalo de Tróia”, fiz o “Cabaré”, um monte de coisa e ficou todo mundo, né?, o Flávio Rangel, o Egberto, querendo saber de onde aquele garoto vinha... Ficou falando do Aldir... Cada um pegando prum lado, né? O Flávio, dramaturgo, um sujeito do teatro, pegando pelo lado da palavra... Aí toca a campainha e o Vinícius fala “Espera um minutinho...”, vai, volta e diz “Joãozinho, você quer vir aqui fora comigo?”, eu fui e quando cheguei lá fora, no alpendre, quem é que estava lá? Gilberto Gil! Com um violãozinho na mão, de jaqueta jeans, e fala assim “Gil, esse é um estudante lá de Ouro Preto que tá vindo aqui pro Rio, gravou recentemente lá no disco do Pasquim...”, aí o Gil reconheceu e tal, e o Vinícius pediu “Gil, mostra esse samba aí, que você me mostrou, inédito...”, aí o Gil cantou “Amor Até o Fim”... (cantando) “Amor / Não tem que se acabar / Eu quero / E sei que vou chegar / Até o fim / Eu vou te amar / Até que a vida em mim resolva se acabar...”. Foi a primeira vez que eu vi o Gil pessoalmente, que eu já conhecia o Gil de repertório que quem me mostrou foi o Baden Powell, mas não pra mim, mas na casa do Scliar, o Baden, numa dessas idas a Ouro Preto, falou “Eu queria mostrar pra vocês um cara lá da Bahia...”, e aí botou a fita cassete pra rodar no gravador e veio tudo! “Procissão”... Tudo! Isso antes do Gil ser o Gil... Então quando eu conheci o Gil pessoalmente pra mim foi uma coisa! Eu já conhecia aquele cara, já era fã daquele cara, e aquele cara ali, me cantando um samba novo, inédito... Tanto que só agora, recentemente, há uns 5, 6, 7 anos atrás fomos fazer um show nesse Claro Hall que não tinha esse nome... Era o Metropolitan! Fomos fazer um show pra UNIMED e a UNIMED pediu Gilberto Gil e João Bosco. O Gil me perguntou “O que é que você quer fazer?” e eu pedi que fizéssemos “Amor Até o Fim”!!!!! Ele curtiu o arranjo pra caramba e eu lembrei a ele o episódio na casa do Vinícius...

LB: Mas João... Você já vem de uma turma que chega depois do Gil, do Caetano, do Milton, Paulinho da Viola, já nos anos 70...

JB: Mas na verdade a gente conhecia essas pessoas! Não me pergunte como, mas alguém mostrava o que o outro fazia... Como o Baden mostrou o Gil que eu nunca tinha ouvido... Chegava uma outra pessoa e mostrava um outra cara desses, sabe? Fantásticos, maravilhosos, e que não época estavam começando carreira. Então a gente conhecia. Eu, por exemplo, quem me apresentou Milton Nascimento foi um compositor chamado Nelson Ângelo, que é meu amigo desde a minha juventude...

EG: Mineiro de Belo Horizonte!

JB: É, com amigos e parentes lá em Ponte Nova! Aquela música “Fazenda” foi feita pros tios que moram em Ponte Nova, na fazenda! Entendeu? Então o Nelson Ângelo, que é um compositor que eu acho assim, admirável, fantástico, gênio, maravilhoso – e também é desses compositores que não tiveram ainda, né?, o Brasil ainda não fez por merecer a obra dessa gente!, entendeu? – foi quem me apresentou o Milton. Quando eu conheci o Milton, o Milton Nascimento, que a gente chamava naquela época de Bituca, tocava num restaurante na Rua da Bahia! E quando nós fomos visitar o Milton, que o Nelsinho me apresentou o Milton, nós tivemos que esperar o intervalo pra ele parar de tocar e a gente falar com ele na porta, porque a gente não podia entrar! Que era um restaurante! A gente não podia entrar! Não era teatro! Não era night club! Era um restaurante onde as pessoas comiam e ele tocava naquele espaçozinho ali, e você não podia entrar! Você mandava o maitre avisar o cara, o cara acabava o set dele e vinha lá fora! Foi assim que eu conheci o Milton!

S: Quer dizer, João, as pessoas se comunicavam muito mais, né?

JB: Eu acho que é isso aí! É o negócio da comunicação... Hoje você tem toda uma tecnologia do seu lado e morre de solidão, tá entendendo?

S: E como surgiu, nesse meio todo aí, uma influência muita grande pra você, que é a Clementina? Como é que ela chega na tua vida?

JB: Eu já tinha encontrado os negros em Ponte Nova. Eu fui criado por uma senhora que tinha todas as marcas, todas as características dos negros oriundos da África. Então ela tinha um jeito de falar as inflexões, tinha os rituais, as maneiras de se comunicar com os santos, através das plantas, através das ervas... Então essa pessoa nos criou a todos na minha família. Ela morreu agora com 102 anos, morreu no ano passado. E eu fui a Ponte Nova agora visitar o túmulo dela, e o portão do cemitério, às quatro e cinco tava fechado! Aí eu não pude entrar. Aí tinha um velório do lado, numa casa funerária, eu entrei e falei que queria entrar no cemitério e uma senhora me disse que o cemitério fecha às quatro. Aí eu perguntei “O cemitério fecha às quatro pra quem?” (todos riem) Eu ia viajar no dia seguinte, então eu fiquei falando com ela do lado de cá do portão, mas nos comunicamos! Nos comunicamos! De maneira que os africanos eu já havia visto em Ponte Nova, e lá em Ponte Nova havia muitas usinas de açúcar, pra ser preciso eram sete. E todas as usinas de açúcar eram provenientes da plantação da cana, por isso os alambiques. Ponte Nova também foi uma grande produtora de cachaça e isso qualquer cachaceiro que se preza sabe, que em Ponte Nova se produziu muito boas cachaças nos anos sessenta... Então aquela cultura dos canaviais era dos africanos, dos operários, dos trabalhadores braçais, que tinha uma relação com a cultura do povo, que a cana vem dessa cultura... E eles tinham as congadas... E todos os domingos eles saíam pela cidade batucando e cantando e eu seguia aquela gente, que eu achava aquilo maravilhoso, eu era atraído por aquilo. Então eu já tinha um vínculo, tanto que você pega um samba feito “Bala com Bala” e ele é feito em Minas, ainda sem eu conhecer o Rio de Janeiro, nem a música negra. Mas eu já sabia disso por ouvido. Mas quem me apresentou a Clementina foi Hermínio Bello de Carvalho que quando me ouviu tocando me disse “Minha mãe tem que te ver!”... Aí eu tomei um susto! Imaginei aquela senhora, com aquele tricô já, cansada, e ainda pensei “Eu vou matar essa senhora de susto, com esses gritos, esses troços...”. Mas, não. “Minha mãe” era a Clementina. Foi aí que em 76, já no LP “Galos de Briga” ele diz “Vocês vão inaugurar o Projeto Seis e Meia no Rio de Janeiro”. E foi o primeiro “Seis e Meia”... Clementina e eu... E eu tenho uma fita que me foi dada de presente agora que é uma fita recuperada e gravada na época, eu e Clementina cantando “O Ronco da Cuíca”. Foi com ela que eu aprendi que, de fato, em função da música africana, que a palavra importa, porém a sonoridade tem a mesma importância. A Clementina cantava o “Benguelê”, que é música do Pixinguinha, cujo título remete à Angola, cidade de Benguela – é Benguela, ê!, Benguela, ê, Benguelê, Benguelê, que é um banzo que se tem quando se vem do lugar... -, mas a letra me foi dada pelo Nei Lopes, e na época eu pedi pelo amor de Deus ao Nei pra me explicar aquilo, pra eu saber o que é que eu tava cantando! Ele escreveu e muitas palavras não correspondiam ao que a Clementina cantava... Ou seja, a Clementina já adaptava a sonoridade dela à palavra. Não correspondia à letra! Então, o que é bonito na língua africana, e acho que na língua portuguesa – que pra mim já é a língua brasileira, já passou de português! – é que ela é dinâmica, ela não pára, não cria limo. A letra e o som que Clementina emitia não é mais o que está escrito no papel! Aí é que eu achei bacana, porque isso vinha muito de encontro ao que eu sentia na música. Pelo fato, inclusive, de ouvir música estrangeira sem falar a língua e repetir a língua a seu modo! Você não falava inglês, nem francês, nem espanhol, mas você falava a sua língua que era aquilo que você entendia quando ouvia. Você ouvia aquilo, e falava aquilo! Aí vem aquele conjunto de rock, que eu tinha, chamado “X GARE”... Só muito tempo depois eu fui entender que era um rock que eu ouvia que era “She´s got it”!!!!! Isso é a Clementina, e a língua dinâmica que não cria limo e que vai se desenvolvendo, se moldando...

S: João... Você fez isso na sua versão de “Jambalaya”, né?

JB: Isso é o som que eu ouvia! Exatamente! Você deu um exemplo que pra mim é perfeito! Eu nunca gravei essa música, que foi gravada pelo pessoal do Boca Livre...

LB: Você não gravou?

JB: Não! E na verdade o título que eu botei nessa música era “Jambalaya, chureia, faz casa e prega botão”. Porque em Minas o verbo chulear virou chureia! Ofício de costureira. Eu ouvia isso! (canta “João Balaio”).

LB: A partir de certo ponto, você e o Aldir passam a ter, nos anos 70, várias referência ao candomblé... O que foi isso? Vocês se envolveram realmente com isso?

JB: Olha... o Aldir se envolveu tanto com essa literatura, com essa religiosidade dele, que eu cheguei na Bahia uma vez e um cara disse pra mim... “Amigo de ala, aqui, nos dedos, se conta quem sabe da existência deles...”. Na Bahia, que é uma África no Brasil! Amigo de ala! O cara foi fundo. Por que é que ele foi fundo nisso? Eu acho que só a religiosidade de um sujeito meio ateu, feito o Aldir, explica. Porque a música da gente vinha nessa pegada!

LB: Mas você embarcava?

JB: Eu embarcava, mas eu embarcava muito na intuição. Eu confesso pra você que a única sabedoria que eu tenho na minha vida é a intuitiva, a intuição, quando você sente que é por ali. Mas você não leu, não estudou aquilo. Você apenas sente que é por ali. Então eu ia, eu apontava pra ali. Agora, eu tive um cara que não só veio comigo, como diz assim: “Deixa que eu venho aqui abrir a picada”, entendeu? Porque ele veio escrevendo... Fizemos “Tiro de Misericórdia”, “Escadas da Penha”, “O Ronco da Cuíca”, “Boca de Sapo” e eu sentia aquilo tudo, entendeu? Eu te confesso que fui a um pai-de-santo uma vez pra saber onde é que tava metido. O cara jogou, deu três passos pra trás e disse: “É o seguinte, cara, tá liberado!” (todo mundo riu). Foi o melhor médico que eu fui na minha vida foi esse! Médico igual a esse não tem! O cara que joga o negócio e diz pra você “não precisa voltar, tá liberado”... Aí eu fiquei nessa onda...

EG: João... conta uma coisa... Fala do Paulo Emílio...

JB: Isso era um santo, um anjo torto, embora um galã...

EG: João, eu vi o Paulo Emílio uma vez, eu era muito moleque, e ele ia num bar na Rua do Bispo, na Tijuca, o “Caras & Bocas”, acho que você foi algumas vezes lá...

JB: Fui! Lógico!

EG: Vocês começaram a compor ali?

JB: Na verdade o Paulo Emílio, quando eu conheci o Aldir, foi a primeira pessoa que o Aldir me apresentou. Eles tinham uma afinidade muito grande. O Aldir tinha uma preocupação com o Paulo Emílio que era mais do que irmão. E o Paulo Emílio tinha uma admiração pelo Aldir, que ele não escondia isso... Ele falava claramente, falava pra mim isso... Quando nós, eu e o Aldir, fizemos uma música chamada “Denúncia vazia”, que a Nana Caymmi gravou, e eu não havia gravado ainda, eu tava no estúdio da Odeon e a Nana entrou com aquele jeito dela “Seu filho da puta, seu merda, você não fez nenhuma música pra mim...”... “Tem essa aqui”, e ela disse “Porra, eu quero gravar essa merda agora!” (todo mundo ri) Aí o Toninho Horta tava no estúdio, o Luiz Alves, e eles na hora, comigo, fizemos a gravação antológica. A Nana fala dessa gravação toda vez. O Paulo Emílio fez um relato sobre essa letra do Aldir que eu nunca mais vou esquecer na minha vida. Defendendo que toda aquela letra trazia em si uma novidade naquele momento, um frescor dentro da letra de música. O Paulo Emílio e o Aldir tinham essa relação. E pra te falar a verdade o “Tiro de Misericórdia”, quando eu e o Aldir por questões de santos e times de futebol andamos meio, assim, atravessados um com o outro, quem pulou pra cá pra defender a parceria foi o Paulo Emílio. Foi ele que dirigiu o show “Tiro de Misericórdia”, foi ele que viajou comigo pelo Brasil, foi ele que escreveu o programa do show...

EG: E o Marco Aurélio, João?

JB: O Marco Aurélio era o enviado! Do Aldir e meu! Do Aldir pra mim e de mim pro Aldir! Eu cansei de brigar com o Aldir com o Marco! O Aldir nem sabia! Eu brigava com o Aldir... Eu achava que era o Aldir... O Marco incorporava tanto o Aldir quando ele estava comigo... Quando eu falava com o Marco, que eu queria dizer as coisas pro Aldir que eu não conseguia, eu dizia pro Marco! (rindo) Ele é que matava no peito! Aí ele chegava lá no Aldir e mandava tudo... A primeira vez que eu e o Aldir nos vimos, muitos anos depois sem nos falarmos assim... ao vivo... o motivo foi o Marco Aurélio... Eu li no jornal um dia antes o anúncio fúnebre da morte do Marco Aurélio... (emocionado) E eu não consegui resolver isso... Ninguém foi capaz de me ligar pra me dar essa notícia... Aí, coincidentemente, nesse dia, eu vou assistir o show dos cartunistas, Chico Caruso, Veríssimo, Aroeira, e o Aldir está lá. Quando o Aldir vem passando, e passa por mim, ele pára e nós dizemos um para o outro a mesma coisa: “Pô... e o Marco Aurélio?”... Simultâneo. Você vê que não interessava o fato da gente estar esse tempo todo sem se falar. A nossa relação continuava inabalável. É como se tivéssemos nos visto no dia anterior. Isso não contava. Mas a primeira coisa que nós nos cobramos juntos, foi o Marco Aurélio. Eu disse... “Pô, bicho, eu soube ontem pelo jornal...” e ele “Isso é um absurdo...” e começamos a conversar...

EG: O Marco você conheceu através do Aldir?

JB: Bem no princípio... Junto com o Mello Menezes... Paulo Emílio foi muito amigo do meu pai também. Ele ia muito à Ponte Nova, meu pai adorava ele... E Paulo Emílio foi um poeta por definição! Aquele poeta do Fernando Pessoa! Ele era o cara! Ele fingia que a dor que ele sentia era a dor que realmente ele sentia!

S: Com ele você fez o quê?

JB: “Nação”, “Coisa Feita”, “Linha de Passe” – a primeira parte é dele!

S: A primeira parte é dele, é?

JB: E só tinha aquela! Começou eu e Paulo Emílio... Aí encontramos o Aldir um dia, mostramos pra ele o samba que se chamava “Made in Brasil” e o Aldir entrou com “Cana e cafuné / Fandango e cassulê / Sereno e pé no chão / Bala, candomblé...”... Ele foi sentando o cacete! Mas aí ele mudou o título. Negócio do Aldir, né? E tem também “Cobra Criada”, né? Elis gravou em Montreux!

EG: Como ninguém!

JB: “Cobra Criada”... “Sudoeste”... “Coisa Feita”... (canta) “Sou bem mulher...”...

EG: João... me diz uma coisa agora... Como é que é a história de compor com seu filho? Quem propôs isso? A que horas isso aconteceu?

JB: Não... Isso ninguém propõe, não... O Chico morava ainda na minha casa. Eu tava tocando uns troços e ele desceu de noite, de madrugada. E ele disse “Eu tenho ouvido você tocar essas coisas aí...”... Ele já escrevia, já tinha publicado um livro... E como o Aldir, era baterista. O Aldir foi baterista e depois percussionista, cujo apelido era Zumbala.

EG: Do Aldir?

JB: É... Zumbala... Todo cara que gosta de letrar e que é percussionista, meu amigo, sai de baixo! Eu trabalhei com gente que não faz noção do que é que é isso! Quando sua música tem muita sílaba, se o sujeito não for percussionista, ele não consegue, ele não entra! E o Chico, vou te falar, ele é afilhado do Aldir. O Aldir é padrinho de nascimento! Lá na certidão tá lá... Padrinho: Aldir Blanc!

EG: E você é padrinho da Mariana, né?

JB: Sou! O Chico é afilhado do Aldir. É canhoto, como o Aldir. E o Aldir, desde o princípio, tem uma espécie de orgulho... É como se fosse filho. Como se ele tivesse parte nisso, né? É um orgulho de família, não é orgulho de admirar apenas... Ele tá preocupado aonde é que o cara vai, com quem ele anda, o que ele bebe... “Ele tá bebendo o quê, João?”, sabe? Então é barra pesada. Ontem eu falei com ele horas... Comecei no telefone sem-fio, acabei no celular, tudo acabando a bateria... (todo mundo ri) Nenhum telefone não resiste a um diálogo com o Aldir! Não acaba nunca! Você acha que acabou e vem outro! Mas o negócio do Chico foi isso... Ele chegou de madrugada... E quando eu comecei a ouvir o que ele sabia do meu trabalho com os meus parceiros, principalmente com o Aldir, quando eu comecei a ouvir os comentários dele, as análises dele, eu disse “esse cara não é bobo!”. Pensei assim... Vou experimentar... Vou dar uma de Vinícius de Moraes. Aí fizemos o “Enquanto Espero” (cantarola). Aí fizemos “Das Mil e Uma Aldeias”... O disco inteiro! Tem recado do Aldir na minha secretária eletrônica, assim: “Jão...” – ele me chama de Jão, elimina o “o” e começa no “ão” – “... eu li o artigo dele na Cult... é foda!”. E desliga. Ele comenta! É só isso o recado! Só isso. Vou te falar, cara... Eu tô lá em casa um dia, três horas da manhã... Eu, tocando, parei de tocar, fui pra janela na frente da casa, tô vendo ali os Dois Irmãos, a rua, o silêncio, e eu olho e tem um tamanduá na porta da minha casa! Dentro da minha casa! Encostado no muro... Um tamanduá. Eu falei, porra, já tô começando a ver tamanduá... Toca o telefone, eu vendo o tamanduá, e a secretária eletrônica acionou e eu ouço o Aldir: “Jão, tá tocando violão ou tá vendo tamanduá?”. (todo mundo ri muito) Tô te falando! Pergunte a ele! Aí eu liguei de volta! “Tem um tamanduá aqui!!!!!” E eu vou te explicar por quê ele falou isso... Eu tinha visto um ouriço, um porco-espinho na minha casa há uns meses. Eu vi o porco-espinho na garagem, subindo no muro, e falei pro Aldir “Pô, o porco-espinho tinha uma bunda desse tamanho...” e ele ficou me sacaneando com isso, porco-espinho, a bunda do porco-espinho, com os espinhos... E quando ele me ligou nesse dia, eu acho que ele queria falar do porco-espinho. Errou no bicho mas acertou na milhar! Ele não acreditou! É que o Aldir quando bebe, de noite, sozinho, ele liga pra uns dois ou três, e eu sou sempre um dos dois ou três, sempre...

LB: João... Tem uma coisa, que vocês faziam, que eu não vejo ninguém fazendo hoje em dia... do cafajeste...

JB: Do “Latin Lover”, né?

LB: Cadê isso, João? Não tem mais isso?

JB: Ninguém apara o bigode, mais, como antigamente, deve ser isso...

LB: Você acha que é porque isso é datado?

JB: Não! Não é datado! São personagens que se comportavam dessa maneira, e aí eles foram ilustrados... Mas hoje em dia você passa aqui, nos dias de semana, nos dias de aula, e isso aqui fica lotado de estudantes e não se têm mais essa relação, nenhum deles tem o bigodinho, ninguém tem o topetinho, ninguém é cafajeste... Ou não é cafajeste nesse sentido... Mas eu acho que isso são detalhes de personagens que quando se compõem esses personagens, eles vêm muito da fantasia do poeta, né? A música ela é mais abstrata. Ela é menos explícita. Ela pode induzir, pode estar tudo ali. Mas eu encontrei um cara que foi meu tradutor! O Aldir sabia de quantos band-aids era feita aquela melodia. Isso é um negócio de parceria, né?

LB: Quantos anos de carreira, João?

JB: Eu me considero no início de 72. “Siri Recheado...” Eu fiz aquele samba e eu tinha um Corcel 76. Aliás eu sei a data do nascimento do meu filho por causa desse Corcel. Eu tenho um Corcel em 76, portanto meu filho nasceu em 76! Igual ao Chico que diz que entra em forma pra jogar pelada e não o contrário, que eu acho genial, e daí eu digo que eu tive um Corcel em 76, daí o meu filho nasceu nesse mesmo ano, senão eu não saberia. Eu fui pra um carnaval na Rio Branco e no trajeto me veio um samba, eu cantando dirigindo... E era o “Siri Recheado e o Cacete”!!!!!

EG: João, ontem eu pus no blog a imagem do roteiro do “Seis e Meia” de 86... Eu tava lá!

JB: Lançamento do disco “Cabeça de Nêgo”... Nesse show eu canto um samba do bôto cor-de-rosa do Costeau, que eu adorava esse samba, e que há muito tempo eu não pego nesse samba e todo dia eu falo pra mim que eu tenho que pegar no samba... Igual ao Paulinho da Viola que eu demorei três anos pra pegar... É coisa de mineiro! Negócio de mineiro, mineiro tem essa preguiça construtiva... Então eu tenho que esperar o momento adequado...

EG: E João, o que é que você está fazendo agora, janeiro de 2007?

JB: Eu tenho uma porrada de músicas prontas, e eu tô tentando fazer um disco com essas coisas inéditas, coisas minhas com o Aldir, coisas com o Chico, tem coisas com o Nei Lopes... Eu musiquei um texto do Nei... que ele vai curtir muito! Que é a história de um trombonista que é o rei do jongo mas que adora jazz. O Nei, pra mim, é um cara muito esperto... Porque ele fez essa letra acho que pensando em mim mesmo... Porque um cara que é jongueiro e gosta de jazz, né?

S: Já que eu sou imperiano, quero te fazer uma pergunta. Você gravou o Silas de Oliveira... Por que o Império?

JB: Quem me levou pro Flamengo foi o Elvis e o Dida, quem me levou pro Império foi o Silas! Quando eu ouvi aqueles discos das grandes escolas de samba do Rio de Janeiro, quando eu ouvi o disco do Império, e ouvi as músicas de Silas de Oliveira eu pirei! Eu pirei com o Silas de Oliveira! Eu queria tocar aquilo toda hora... Aí eu fui pro Império. Quem produziu esses discos foi o Pelão... Só tinha Mangueira, Império, Salgueiro, Portela, esses quatro que o Pelão produziu. Aí veio a Sony e fez das dez melhores escolas. Mas quando eu ouvi esse disco que o Pelão produziu do Império eu pirei com o Silas de Oliveira. Aí comecei a tocar Silas de Oliveira, comecei a procurar as coisas do Silas de Oliveira, aí eu fui pro Império. A comecei a subir a Serrinha. Aí fiquei amigo dos imperianos, aí fiquei amigo de Tia Ira, comecei a freqüentar as lajes onde se faziam os churrascos, comecei a fazer música com os caras, aí pintou uma ligação muito grande com o Império, mas através do Silas. E o Silas continua sendo, pra mim, o grande compositor de sambas de enredo de todos os tempos. Eu acho que aquela gravação de “Heróis da Liberdade” uma gravação muito feliz...

S: Bonita...

JB: Eu gosto daquela gravação... Depois do Pelão...

EG: Mas não é tão bonita quanto a sua gravação do hino do Flamengo no CD do Ary Barroso!

S: Nunca ouvi...

EG: Nunca ouviu?

JB: E aquela gaitinha que tem na gravação é do Ary...

RF: E você, como intérprete, como é que fazer mais de cem apresentações do mesmo espetáculo?

EG: Ah, não se faz mais isso...

JB: É... Isso é difícil...

RF: Esse disco da centésima apresentação me marcou muito, em vinil... E tenho agora em CD...

JB: Não se faz mais esse tipo de coisa... Sair em grandes temporadas...
EG: Grande temporada hoje é de seis semanas...

JB: Nem isso! Só Chico Buarque e Bethânia fazem isso... Todos os outros artistas fazem geralmente de quinta a domingo... Vocês sabem que eu tenho muita vontade de fazer um disco solo agora, depois desse DVD, com banda grande...

RF: E o que é que você tá ouvindo agora?

JB: Então! Ontem eu ouvi “Miudinho”, do Paulinho da Viola, que eu tenho vinil em casa...

RF: O chiadinho da agulha é fundamental, né?

JB: É... (cantando) “Vai, meu samba / Tudo se transformou...” Eu ando tocando esse samba, tirei o samba, toquei o samba até umas duas da manhã... Ontem eu fiquei só por conta do Paulinho! Você sabe que eu ganhei na Loteria Esportiva, né?

RF: Não!

JB: Ninguém sabe disso...

EG: Conta, conta, conta...

JB: Fizemos 13 pontos!

RF: Quando isso?

JB: Fizemos 13 pontos em 1980!

RF: Hoje ninguém mais faz 13 pontos, agora são 14!

EG: Ganharam muito dinheiro?

JB: 13 pontos é sagrado! Loteria Esportiva são 13 pontos, são 13! Eu ganhei um dinheiro compatível com a compra de um apartamento de dois quartos no Jardim Botânico, naquela época! Eu! Metade. Quer dizer que a outra metade também... Então aquele dinheiro daria pra comprar um apartamento de quatro quartos (todo mundo ri)!!! Mas por razões pessoais eu não posso dizer aqui porque é que eu e Paulinho não alardeamos essa notícia e nem fizemos um samba falando disso... (todo mundo ri, João ri muito...). Só jogamos uma vez e ganhamos uma vez! Fizemos um triplo no Vasco e Flamengo, foi a primeira coisa que a gente resolveu na hora de marcar o cartão, que foi pago com cheque, que estávamos duros, o cara fechando a loja... Embaixo do Cine Veneza... O cara fechando a loja e o Paulinho pedindo pra aceitar o jogo... Dois triplos, só! Pagamos o dobro da aposta mínima... 13 pontos! Paulinho pagou em cheque e eu fui pra Cuba com Chico Buarque, Djavan, fui participar do Festival de Varadero... Passamos 15 dias em Cuba. No primeiro domingo, Paulinho em casa, 1, 2, 3, 4, 5, 12, 13, caralho! E eu ainda tinha mais sete dias em Cuba. O cartão tava em nome da minha mulher, que na hora que a gente jogou eu disse “Não bota o meu”... Eu só me dou na música, no jogo eu não tô com nada. Paulinho não quis o dele, não quis o da Lila, mulher dele... Eu falei “Bota no nome da Ângela!”... E a gente em Cuba, o Paulinho pirou!!!!! Foi uma grana, bicho, muito legal... Agora, fazer 13 pontos com Paulinho da Viola é fazer 13 pontos duas vezes! E agora eu quero fazer um disco assim, tocando... Tem um samba novo do Aldir comigo nesse disco chamado “Sonho de Caramujo”...

EG: Tá pronto?

JB: Pronto!

EG: Mostra aí!

João pega o violão, afina, começa a cantar “Sonho de Caramujo”, a mais nova parceria com Aldir Blanc.

JB: Ele sonhou comigo... “Sonho de Caramujo”... E eu morava dentro do violão... Eu musiquei o sonho dele... E o tom desse samba remete aos puxadores da antiga, né? Tá sempre no limite... (canta de novo)... Porra... “caramujo musical”...

EG: Pô, João... você falou dos puxadores da antiga... Um dos sambas seus que eu mais gosto é “Da África à Sapucaí”...

João canta. Todo mundo aplaude, o e o bar, a essa altura, já se vira pra nossa mesa.

JB: Eu adoro esse samba também! E esse, que eu não paro mais de cantar!

João canta “Tudo se Transformou”, de Paulinho da Viola. Visivelmente à vontade, canta “Ingenuidade”, sucesso na voz do imperiano e saudoso Roberto Ribeiro.

JB: É lindo esse samba, né? Foi gravado também pela Clementina em 77...

S: O Edu outro dia tentou me ligar de São Paulo pra que eu cantasse “Boca do Sapo”...

João canta. Eu ligo pro Szegeri, que estava comigo quando liguei de São Paulo pro Simas, e ele ouve o samba ao vivo, pelo celular!

S: Maravilha! Agora, cá pra nós, heim! O Aldir aí dá uma lição de um trabalho... (e ri)

JB: E eu recentemente mudei a introdução... (e cantarola, rindo muito)

LB: Toca um Noel Rosa aí...

João canta “Pra quê Mentir?”.

JB: Escuta esse samba!

Canta “O Filho do Alfaiate”, de Noel Rosa. Emenda com “Amigos Novos e Antigos”, parceria com Aldir Blanc.

JB: Pô... nossa conversa então já foi pro caralho, né?

(todo mundo ri muito)
RF: Mas foi ótima!

EG: Digão, então fecha oficialmente!

RF: Fecha você!

(todo mundo ri)

S: Eu fecho! Eu fecho! Em nome de Eduardo Goldenberg e de Rodrigo Ferrari, dois flamenguistas, nós encerramos aqui essa entrevista maravilhosa, com João Bosco, no dia 17 de janeiro de 2007, estamos no Bar do Pires, oficialmente chamado “Rainha do Mar”, com o João Bosco no violão, com Rodrigo Ferrari, grande Eduardo Goldenberg, Leonardo Boechat, já emocionado, totalmente alcoolizado, absolutamente alcoolizado (ri), estamos juntos aqui. É isso aí...

Um comentário:

Stocker Gaucho disse...

é tomando conhecimento dessas ricas histórias simples, que entendemos a facilidade com que se dava o aparecimento de grandes artistas: as pessoas eram acessíveis e receptivas, independente se eram famosas ou não. Aliás, muito interessante quando ele fala que mesmo com toda tecnologia da informação as pessoas são solitárias. Não será porque as pessoas se preocupam em querer viver 100 anos?
Abs David!