domingo, 30 de setembro de 2007

Poemas brotados no inferno de Guantánamo

Para un hombre llamado Rodrigues

Semanas atrás, noite alta tomávamos, um amigo e eu, a saideira no boteco fecha-nunca do Largo do Campo Limpo. A uma pergunta minha, sua resposta abalroou-me em cheio: “Que se foda. Ele faz oposição de direita!”.
A pergunta foi se ele, que participa de saraus poéticos na área Campo Limpo/Taboão, não diria nada em favor do poeta Ernesto Cardenal, perseguido pelo govêrno da Nicarágua por ter ser nome cogitado para o Nobel de Literatura.
Cardenal, que é padre, aderiu à guerrilha na década de 1970 contra o ditador Anastasio Somoza. Percorreu países de todos os continentes, colhendo apoio político e material para os revolucionários. Era chamado “Embaixador da Frente Sandinista de Libertação Nacional”. Hoje no poder, o sandinista Daniel Ortega e sua esposa promovem uma campanha difamatória contra o poeta e aqueles que defendem seu nome para o prêmio Nobel. A indisposição entre os ex-aliados se deve às críticas que Ernesto Cardenal faz ao comportamento político do atual presidente – algo semelhante ao ocorrido entre o presidente lula e seu ex-conselheiro Frei Betto.
Talvez um dia, antes de lavar as mãos quanto ao destino de um poeta, balizado em imprecisas impressões ideológicas, meu colega de copo e de cruz lembre-se do ensinamento de Carlos Drummond de Andrade: “O poeta não se situa em nenhuma república. O poeta se situa na poesia”.
Escrevo estas coisas, para comentar o lançamento de um livro com poemas escritos por prisioneiros da base militar dos EUA em Guantánamo, na ilha de Cuba. De 2001 a 2005, a CIA realizou 1.245 vôos secretos ao Oriente Médio, para seqüestrar quem ela acusa de envolvimento com a Al Qaeda. Os acusados são jogados nas jaulas de Guantánamo, e os militares norte-americanos têm autorização do seu Congresso Nacional para torturar, e mantê-los sem julgamento.
A quantidade de exemplares da coletânea poética é ínfimo. O volume, impresso na pequena gráfica da University Iowa Press, não passa de 21 modestos poemas, escritos por pessoas que a Humanidade talvez jamais conheça.
As poesias foram escritas com sacrifício extremado – gravadas com pedra em copos de plástico, ou escritas com pasta-de-dente em embalagens descartáveis, ou simplesmente reproduzidas por sussurros entre as grades.
O livro foi editado por Mark Falcoff, um dos advogados americanos que defende os cativos. Seu primeiro desafio para trazer os versos à luz, foi o temor dos presos. Depois teve de esgueirar-se entre as censuras do Pentágono. Apenas as poucas estrofes do livro foram liberadas, em meio a milhares de outras confiscadas ou destruídas. O argumento do governo de George W. Bush é que tais poemas poderiam conter mensagens codificadas da Al Qaeda.
O que une os autores é sua simples condição de poetas. Eles não estão divididos conforme suas qualidades literárias ou convicções pessoais. Alguns poetas versejam a disposição de lutar até a morte contra o Ocidente opressor. Outros expressam o simples desejo de beijar um filho, a mulher ou a mãe que adoece e morre a milhares de quilômetros de distância. Certos poemas exaltam a misericórdia infinita de Allah; outros cantam quão linda é a lua sob o céu crepuscular. Uns municiam suas palavras com o fanatismo político-religioso; outros falam do mar que ouvem de perto, mas a muralha os impede de ver.
A consistência do livro está na condição humana que nos é dada pela palavra escrita. Prova o poder do poema sobre aqueles que, para defender seu poder político, perseguem e encarceram pessoas a torto e a direito. Ou melhor: à direita e à esquerda.

Poema da Morte

de Jumah al Dossari
(preso em Guantánamo há 5 anos, sem direito a defender-se perante um Tribunal)


Leve meu sangue.
Leve minha mortalha.
Leve meus restos.
Fotografe meu cadáver solitário em sua tumba.
Mande tudo para o mundo.
Para os juízes,
Para aqueles conscientes,
Mande tudo para os homens justos e de princípios.
Faça com que apresentem o peso da culpa para o mundo.
Esta alma era inocente.
Faça com que carreguem o peso perante seus filhos, perante a História.
Esta alma sem pecados, estraçalhada.
Esta alma sofreu nas mãos dos “protetores da paz”.

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