Na última segunda-feira, 17 de março, li no Estadão que o compositor Paulo César Pinheiro contraiu dengue.
Mas não foi esta notícia que me deixou na aflição em que me encontro. Os deuses não deixam que gênios da nossa raça sucumbam à incúria das (des)autoridades.
Este sentimento invadiu minha alma porque, naquele mesmo dia, meu amigo Ary Marcos Pero Gonçalves da Motta, do Refúgio do Sambista, me avisou: “Nosso próximo Tributo [os dois anteriores foram para Eduardo Gudin e Candeia] vai ser pro Paulinho César Pinheiro”.
Por isto aqui estou me roendo: com que mão se cumprimenta um deus? Com que palavras ou gestos, certamente insanos, se pode agradecer ao monumental poeta que mais fez letras para a música brasileira? – há proposta de incluí-lo no Guinness Book por suas 900 músicas gravadas, dentre mais de 1.500 compostas e umas 600 esperando a vez.
Para desbaratinar o tormento prévio pelo indelével encontro, resgato alguns depoimentos do Paulinho sobre sua convivência com o Baden. São livres reproduções de uma bela matéria de um jornal do Nordeste, e da colossal entrevista de Luiza Nascimento para A Nova Democracia.
“O Baden Powell era um cara muito doido”, sintetiza Paulo César Pinheiro. Eles se conheceram quando Paulinho tinha 14 anos, e Baden, 26. Ambos moravam em São Cristóvão, no Rio. Todavia, o primeiro encontro deu-se no batizado de uma sobrinha de Baden, no bairro Olaria. “Foi minha primeira noite fora de casa”, lembra o poeta. Naquele fase adolescente Paulo era parceiro do também violonista João de Aquino, primo de Baden.
A amizade se firmou, e Baden, já famoso na época, passou a levar o garoto em suas andanças noturnas. “Ele me buscava em casa. Meu pai achava que música era coisa de vagabundo; só me deixava sair porque era com o Baden Powell”, conta.
Até os 20 e poucos anos Baden só bebia guaraná. Quem o levou para as noitadas etílicas foi Vinícius de Moraes. Agora, ele fazia o mesmo com Paulinho.
O garoto já assombrava pelo talento precoce. Impossível não se espantar com um menino que, com apenas 14 anos, escreveu “Oh, tristeza me desculpe, / Estou de malas prontas, / Hoje a poesia veio ao meu encontro, / Já raiou o dia, vamos viajar! / Vamos indo de carona, / Na garupa leve do vento macio, / Que vem caminhando, / Desde muito longe, lá do fim do mar...” (Viagem, com João de Aquino).
Mais espantoso é que Paulinho era um péssimo aluno de Português até então. Um dia, durante as férias escolares em Angra dos Reis, ele foi acometido do que em Literatura chamamos “estalo de Vieira” (referente ao Padre Antonio Vieira, maior sermonista da nossa língua; o termo aplica-se à compulsão irrefreável por escrever).
Dois anos depois do primeiro encontro, Baden intimou seu amiguinho de boemia: “Tá na hora da gente compor alguma coisa juntos.” Assim. Na lata. O moleque se arrepiou. Baden era parceiro de Vinícius de Moraes!!! “Fiquei com medo, mas o Baden insistiu e eu topei, apesar de todo o peso que senti”, diz Paulinho.
E não é que o garotão de 16 anos incompletos entrou com a mão direita no universo imenso do violão imortal de Baden? Sente só:
Vai, meu lamento, vai contar
Toda tristeza de viver
Ai!, a verdade sempre trai
E às vezes traz um mal a mais.
Ai!, só me fez dilacerar
Ver tanta gente se entregar
Mas não me conformei
Indo contra lei
Sei que não me arrependi
Tenho um pedido só
Último talvez, antes de partir:
Quando eu morrer me enterre na Lapinha,
Calça, culote, paletó almofadinha
“Tudo com o Baden era assim. Ele chegava de repente com suas idéias fervendo na cabeça, e a gente tinha de seguir suas doideiras”, conta Paulinho com um sorriso nostálgico nos lábios.
Feito aquela vez em que o poeta estava sossegado em sua casa, quando um esbaforido Baden Powell irrompe porta adentro:
- Me dá a sua carteira de identidade aí!
- Pra quê? – espantou-se Paulinho.
- Você vai pra França comigo.
- Hãããã!!!
Mas este caso fica pra outra hora...
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