sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Solo de cavaquinho para Hammurabi

“... se eu contar o que é que pode o cavaquinho

Os hômi não vai crer...”

(Aldir Blanc/João Bosco)

Na noite do sábado passado, na padaria fecha-nunca perto do Largo São José do Belém, não havia cavaquinho na mesa em torno da qual nos aboletamos. Nem ninguém chamado Hammurabi – nome do rei da Babilônia que mandava matar quem falsificasse ou vendesse mais caro a cerveja 1.700 anos antes de Cristo.

Mas havia conosco um cavaquinista, e a cerveja brotou das garrafas em volume oceânico. Nos copos, as digitais de Ary Marcos (legítimo e único criador do Projeto Refúgio do Sambista), Luciano Martins (um dos cavacos do Núcleo de Samba Jequiti), Rodrigo (ritmista do mesmo núcleo), e Maíra. Não a Maíra minha filha. Outra Maíra; a Maíra Oltra – na verdade, Maíra B. Oltra (que será aquele “b” abreviado? Barbosa? Benevides? Bernardes? Não importa: é “b” de bonita).

Maíra Oltra é a guardiã do patrimônio histórico e editora do blog do Nucleo de Samba Jequitibá. Foi ela quem me ajudou a rascunhar este mini-esboço biográfico do cavaquinista Luciano Martins; é projeto-piloto para se escrever o perfil de todos os componentes do Jequitibá. Logicamente Maíra não começará a série de perfis com o Luciano, para não caracterizar “coisa de casal”.

Mas, já que a noite corria mansa e suave sob o céu do Belém-Belenzinho, não nos custou nada deslizar a caneta sobre o sacerdócio a que Luciano se devota, mantendo vivo no seu cavaco o Samba mais verdadeiro.


“Tinha eu 14 anos de idade...”

O verso de Paulinho de Viola não está de bobeira no sub-título. Foi um Samba dele (Amor Proibido) que botou Luciano Martins na trilha tracejada por Tia Ciata. Aos 14 anos, Luciano ganhou uma grana do pai para comprar seu primeiro instrumento. Bateu perna pela Rua São Bento, e comparou preços até decidir nas cordas de qual cavaquinho derramaria sua paixão.

Antes de chegar ao cavaco, Luciano vadiou pelas seis cordas de um violão, tentando extrair o ouro de tolo das melodias de Raulzito. Ainda antes disto, quis domar as cordas duplas que o pai fazia gemer no “modão de viola”.

O batismo de fogo de Luciano com seu cavaquinho foi numa função musical coordenada por seu pai. O cavaquinista do grupo faltou; Luciano foi sacado do banco de reservas. Horas depois, o cavaco jazia em cacos. Luciano tocou péssimo, e o gesto de reprovação “do velho” foi jogar no chão o instrumento.

Luciano não se abalou. Um ano depois, comprou de segunda mão seu segundo cavaco, do amigo Vítor. Se o primeiro cavaco viera por influência de Du, amigo do Fábio irmão de Luciano, este segundo já foi tocado na linha direta do legendário Manacéia.


De amor permitido e epifanias

Luciano e seu cavaquinho não se apartam nos sambas de terreiro, nem nos terreiros dos orixás.

Com apenas 29 anos de idade, ele já incorporou a serenidade dos “nêgos véios” que tanto admira. Quem o ouve cantar, constata que pela sua garganta sobem sons herdados lá do outro lado do Atlântico.

Os modos contidos dos velhos bambas também já são parte de Luciano no trato com outros devotos do Samba. Ao citarmos um site de letras de Samba, Luciano disse que uma delas está errada. Mas não vai alertar nos comentários do blog, nem mandar e-mail ao dono da página. “Quando eu me encontrar com ele, vou dizer diretamente no ouvido dele onde está o erro a consertar”, diz.

A religiosidade afro de Luciano o segue até nos aperreios típicos do subúrbio paulistano violento. Certa feita, vindo de Juquitiba com amigos, foi abordado no Embu pela PM. Ao ver uma guia de orixá no pescoço de Luciano, contraditoriamente o único soldado negro da guarnição o agrediu: “O que é isto aí?”, perguntou o miliciano, e puxou com violência o colar. Que não arrebentou. No segundo safanão do meganha, a guia também não estourou. Mas um vidro lateral da “barca” espatifou inteiro. Quem não acredita em nada (eu incluso) vai dizer que o vidro detonou pela pressão da borracha mal colocada, ou outra explicação materialista. Os que acreditam em alguma coisa (eu também incluso) podem crer que houve intervenção da entidade que o jovem sambista cultua.

Luciano, seu cavaco, sua musa e suas cervas

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