[Palestra proferida em julho de 1994, na UNESP]
Eu acho que vai haver aqui, um problema de tempo. Conversa com João Antônio, é sempre conversa pra uma semana, até porque eu tenho tido um estilo elíptico de pensar, pelo menos quando eu expresso, quando eu verbalizo o meu pensamento. Eu queria transformar essa minha conversa com vocês, muito mais em perguntas e respostas, do que exatamente uma dicção linear minha. Me foi aventado um problema do qual eu tenho falar que é a presença de uma poética dentro da minha ficção, da minha prosa de ficção. Eu sou muito interessado nessa coisa de arte poética.
Inicialmente, eu gostaria de transformar essa nossa conversa em duas homenagens: uma a um grande músico, que é um dos grandes músicos brasileiros de todos os tempos, infelizmente muito mal conhecido, porque este país é especialista em desconhecer, e até assassinar culturalmente seus melhores filhos. Eu estou falando do maestro Ascendino Theodoro Nogueira, um dos músicos mais respeitados do Brasil, dentro da classe musical, mas que infelizmente não é conhecido neste país. E em segundo lugar eu queria também prestar uma homenagem a um homem que foi fundamental como peça pioneira, inovadora, revolucionária, dentro deste tema sobre o qual eu pretendo falar alguma e que dizem aí que eu entendo alguma coisa. Trata-se de Antônio Fraga, autor de uma novela chamada Desabrigo, pouco conhecida, muito mal distribuída, foi produzida em 1942, é uma novela curtíssima, mas na época criou uma repercussão enorme, até em homens como, por exemplo, Oswald de Andrade. O Fraga morreu recentemente e eu talvez tenha sido o único jornalista brasileiro a escrever sobre ele.
É uma figura muito curiosa porque é um autodidata, foi expulso de casa logo cedo, filho de pais pobres, nascido no centro do Rio de Janeiro, viveu no Mangue, que era a área de prostituição mais rampeira da cidade, e também mais cosmopolita, que fazia conviver desde marinheiros do mundo inteiro, com mulheres que vinham da Polônia, judias polacas ou polacas judias. Então se formou, inclusive do ponto de vista da linguagem, um elemento muito forte que o Fraga soube aproveitar.
Um indivíduo que formou em plena ditadura de Getúlio, um grupo chamado / inaudível / reunindo artistas, músicos, inclusive matemáticos; ele próprio era um estudioso de matemática. Esse homem talvez seja a maior expressão, no meu pobre entender, de uma literatura feita com altíssimo nível de elaboração estética, uma obra aparentemente popular, mas sofisticadíssima. Ele era autodidaticamente um filólogo e um lexicógrafo, provavelmente tenha sido em língua portuguesa falada no Brasil, o primeiro homem a usar a elisão “né” para “não é”, e também foi quem inaugurou entre nós, a expressão “Rio conflagrado” para o Rio que estão vendo aí. A diferença do Fraga para os outros intérpretes do “lumpem proletariado”, como se chama nas universidades, ou da ralé ou do merdunchado como eu prefiro dizer é que, Fraga tem uma visão de dentro para fora e não de fora para dentro.
Excetuando-se Lasar Segall, o pintor que freqüentou o mangue com um comprometimento muito maior, o restante, inclusive alguns nomes admiráveis, e admiráveis por mim como Oswald de Andrade, que fez Santeiro do Mangue, como o próprio Vinícius de Moraes, que fez a Balada do Mangue e outros que escreveram sobre o Mangue, iam ao Mangue com olhos e com uma visão de turistas, eles não tinham um comprometimento. E os senhores hão de convir, a literatura não é feita nem só de sentimentos, nem só de palavras; a literatura é feita principalmente de sangue, carne, paixão, vida. A literatura é uma expressão da vida, ela é uma conseqüência, ela em si mesma não cria coisíssima alguma, em se tratando de Literatura e Marginalidade.
Nós usamos na nossa gíria, muitas expressões que sequer brasileiras, são lunfardia ou lunfardo, que é a fala da boca em Buenos Aires. Há expressões na nossa gíria como “mina”, como “grana” que não são como “mango”, que não são expressões nacionais, elas atravessaram as fronteiras e chegaram ao Brasil. Então, a mistura disso tudo pode dar um resultado muito poético...se a linguagem é a expressão do pensamento, há um pensamento poético de certa forma nesse lupensinato ou nessa ralé, inclusive, com algumas sofisticações de linguagem e de sintaxe. Eu vou dar um exemplo claro aqui; é muito comum na malandragem de hoje, se dizer o seguinte – “Está ruim para malandro”, quer dizer, o pronome “até”, aliás o advérbio “até” está oculto, vocês vêem que há uma estranha sofisticação nisto tudo. Quando vocês virem aparecer em fala de malandragem ou de marginalidade a presença de alguns termos jurídicos, por exemplo, “picardia” é tirada da linguagem jurídica, é porque ninguém conhece mais a jurisprudência da vadiagem ou dos costumes ligados à contravenção .
Eu me lembro bem de um dia desses, um sujeito que trabalha para os donos do bicho foi pedir um crédito bancário e, na hora de dizer a profissão ele diz assim: “eu sou comerciante”. “Mas você não é comerciante, você não é estabelecido com nada”. “Então ponha contraventor”, é a mesma coisa. Mas isso aparentemente foi uma gaiatice que ele fez, ele sabe que pode se declarar contraventor porque não existe lei que o incrimine, a contravenção não é um crime, ela é contravenção da nossa lei.
Bom, vocês querem que eu fale um pouco do meu trabalho. A minha formação foi uma formação realmente rueira. Eu sempre tive certa alergia consciente pelos saberes da classe média. Eu não me dou com classe média, quer dizer, hoje eu sou um pingente da classe média, sou carona. Evidentemente que eu me visto como classe média, moro como classe média, vivo de certa forma uma vida econômica de classe média, mas eu não consigo sentir não é, simpatia que esta talvez nunca vá sentir, mas não consigo sequer sentir um pouco de respeito pelos valores da classe média. É um problema meu, eu fui criado assim, com gente assim, não dá para pensar de outra maneira.
Eu realmente me deleito muito mais com música do que com outras artes. Eu fui criado em roda de choro, posteriormente de samba, convivi com músicos que ficavam discutindo na minha frente aos meus oito, dez anos, problemas de harmonia. A presença de Noel Rosa na minha vida é muito forte. Ela chega por volta de 1952/54 através do rádio, aquilo era muito forte. A marcação com que essa gente vincava o meu mundo, vamos dizer, de criação artística, era muito grande; eu sempre tive assim diante da figura do Noel, uma identidade enorme, embora houvesse uma diferença, Noel morreu em 37, eu nasci em 37. Quer dizer, mas havia uma transubstanciação do sentido humano, da força de expressão, da beleza, principalmente de um sentido trágico e irônico da vida que se uniam a mim.
Nós éramos favelados, os meus pais já haviam ido, tangidos pela fome, para São Paulo, porque não conseguiam viver em seus locais de origem. Aquela gente correu da crise de 29 para não morrer de fome, bateu em São Paulo. Então, é uma coisa; aqueles ambientes que eu vi quando criança; eu cheguei a ver cenas de alcoolismo, por exemplo, de brutalidades e espancamento, como eu só viria, depois, no Gorke. Então as manifestações de arte para mim, principalmente o cinema, eram bobagens. O rádio era outra besteira, eu olhava tudo aquilo com sorriso de ironia no canto da boca, porque aquilo não era vida, não era nada, aquilo era uma engabelação, aquilo não tinha nada a ver com nada, aquilo era uma conversa pra boi dormir. Somente a literatura mereceu de mim um respeito como arte. Através de alguns autores que eu tive a grande sorte de conhecer logo cedo, como foi o caso do Graciliano Ramos e Hemingway, que durante algum tempo foi moda no mundo inteiro, pelo menos no mundo ocidental.
Eu não estou fazendo um louvaminho ao povo brasileiro não. Mas, eu sempre digo, se o Dom Luis Buñuel, o cineasta espanhol, mais o Goya, o pintor espanhol viessem ao Rio de Janeiro, por exemplo, diria: “Olha”, eu não sei nada, a minha força de expressão acaba aqui, o Dom Luis Buñuel se viesse ao Brasil, ele acabava acreditando em Deus, porque isso aqui é tão realmente surrealista em todos os aspectos, em virtudes e fracassos.
A música popular brasileira, é a mais rica do mundo. A nossa literatura capenga ou não, a verdade é que ela conseguiu ter ao mesmo tempo cinco ou seis grandes poetas de nível internacional na mesma época. Ela teve por exemplo ao mesmo tempo Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Morais, Murilo Mendes, Dante Milano, Cecília Meireles, só aí eu já falei seis. São raríssimos os países tidos e havidos como desenvolvidos, primeiro mundistas, civilizados e tal, que tenham três bons grandes poetas numa época só. Eu não falei todos, eu ainda não falei Jorge de Lima, eu não falei João Cabral. Então veja bem: agora nós não tivemos foi a capacidade de criarmos um público leitor e ledor desses valores, desses produtos culturais.
Eu não gosto muito dessa expressão “produto cultural”, mas é a que uso aqui. Então nós não temos nada que andar de cabeça baixa, diante dos saberes artístico aí do mundo. Porque nós temos um potencial criador muito grande. O que nós não conseguimos ainda, enquanto estado, enquanto governo, foi transformar essa produção toda, em algo que seja realmente democrático, que seja realmente democrático, que seja realmente possível a todos os cidadãos, porque também, segundo Antonio Candido, o maior crítico literário desse país, uma literatura só existe se ela consegue, além de ter produtores culturais, além de ter seus autores, ter um público. É necessário isso, é fundamental; não existe literatura nenhuma que tenha produtores culturais e não tenha público. Nós vivemos aqui, num país colonizado, recolonizado da maneira mais calhorda possível. Nas mãos aí dessa porcaria chamada mass mídia. Essa expressão mídia não se escreve assim, também não se pronuncia muito assim, e não quer dizer nada disso
Eu não tenho desprezo por nenhuma classe trabalhadora. Logo, não poderia ter, pela classe universitária, pelos professores, pelos docentes universitários, ou até pelos teóricos em literatura. Eu sempre tenho dito o seguinte: essa gente nunca me fez mal, essa gente nunca me mordeu, e nem me tirou pedaços, porque houve uma época em que se dizia que eu era contra os intelectuais, eu achava que tudo era elitismo. Eu tenho uma resposta para estas pessoas: eu não sou elitista, eu sou super elitista. Eu só gosto do que é melhor em tudo, desde música, desde pintura até o arroz com feijão. Agora, tem que ser o melhor. Já que uma coisa merece ser feita, há de ser bem feita. Por mais que se trabalhe com gíria, com fala popular, com lupenzinato, tem que haver arte aí, tem que haver um jogo de cintura, tem que haver uma armação, tem que haver texto, elaboração, o texto brasileiro tem a obrigação de ser um belíssimo texto. Os fundadores de nossa literatura, Gregório de Matos Guerra e depois Machado de Assis, ultrapassaram a qualidade do português escrito em Portugal. Eu já dei dois exemplos: Gregório de Matos e Machado de Assis. Quem dera se em Portugal tivesse um prosador do naipe de Machado. Então quem vai escrever nesse país, não pode fugir ao seu passado, nós temos um passado de altíssima qualidade e não podemos fazer produtos mal feitos agora. Essa exigência é útil, até mesmo para a clareza de expressão, para que você faça alguma coisa bem feita, antes de tudo, tem que ser bem clara, ela tem que ficar evidente ou pelo menos, conduzir ao pensamento. O Fraga na sua novela "Desabrigo", não usa pontuação nenhuma. Apenas joga de vez em quando uma maiúscula para indicar que é a abertura de parágrafo. Uma revista idiota de São Paulo chamada Isto é fez uma matéria imbecil sobre o Fraga com o título “Joyce do Mangue”, não tem nada a ver, Antônio Fraga, Antônio Fernandes Fraga com James Joyce, são autores completamente diferentes, com objetivos diferentes, vivendo realidades diferentes.
Ele usa ausência de pontuação para que o leitor preste atenção naquilo que ele escreve, para que seja impossível ao leitor fazer a execrável leitura dinâmica. A coisa mais abjeta, a coisa mais lamentável, que ofende mais um escritor de verdade, é que se faça leitura dinâmica de um texto dele, isso é horroroso, tá entendendo? Porque ele não produziu para isso, ele não tá escrevendo bula de remédio, nem texto de propaganda. Eu não tenho nenhum desprezo pelos autores de bulas de remédios, que são trabalhadores iguais aos outros e pelo pessoal da publicidade, que tem gente muito inteligente, fazendo publicidade; mas o texto literário tem outra função, ele pretende, ele intenciona levar à reflexão, inclusive à reflexão estética, ao prazer estético. É por isso, às vezes, na minha frase, no meio da frase, eu procuro de propósito fazer o leitor parar para pensar. Eu de certa forma, quando uso gíria, eu jogo logo em seguida uma sinonímia, para que o leitor possa sentir.
Eu acho que há coisas que não se aprende na escola. O meu tipo de fazer literário não se poderia ser aprendido nem na igreja e muito menos, na escola. Então, eu tive que aprender a fazer isso fazendo as minhas misturações autodidatas, conversando muito e vendo muito. “Malagueta, Perus e Bacanaço”, já estava pronto em 1960, eu era um garoto, um menino.
O Fraga disse uma vez “tudo na vida tem um contingente, tem uma ilação, tem um desdobramento possivelmente literário”. Quem diz literário, diz musical, diz artístico. Eu quero principalmente ao passar essa visão dessa marginalidade, por mais realista que seja entre aspas, eu quero passar um pouco desse sabor que essa gente tem. Não é modéstia minha, nem oportunismo, dizer o seguinte, que se por exemplo, “Dedo-Duro” ou “Guardador”, ou “Malagueta, Perus e Bacanaço”, ou “Zicartola”, se esses são livros brilhantes e traduzidos, filmados e estudados, não sou eu que sou brilhante, brilhantes são os meus personagens. Mas como eles são brilhantes! Acontece que a maioria não vê. Azar da maioria. Eu vejo essa gente com uma sabedoria tremenda, com um senso poético fora do comum. Vocês peguem, por exemplo, Cartola, é absolutamente inexplicável. Não se explica que um crioulo, lavador de carro, ajudante de pedreiro, semi-analfabeto, como Cartola, tenha tal elegância, tal economia e principalmente sabedoria de vida, é impressionante.
Somente um sofrimento muito forte e ao mesmo tempo uma capacidade de resistência pra não morrer, é que pode produzir uma força dessas. Cartola até bem pouco tempo, era um marginal. Nelson Cavaquinho, um marginal a vida inteira, a vida toda; essa gente nunca teve emprego e nem queria...
Uma vez, o Nelson Cavaquinho, arrumou um emprego num jornal de contínuo, ele foi um dia, depois não foi mais. Aí foram procurar o Nelson, “mas Nelson, você não quer o emprego? Você não vai voltar?” Ele disse: “Olha, é tudo muito bom, doutor, vocês me tratam muito bem, mas tem que ir todo dia lá”.
Olha, aparentemente, é um vagabundo, aparentemente é um preguiçoso, mas ele tem uma outra visão de mundo, ele foi criado de outra maneira, de certa forma ele foi excluído e se excluiu do sistema muito cedo. Quer dizer, a coisa dele era música, era violão, era samba, esse era o tipo de expressão. Então, essas coisas que eu vejo, principalmente do lado da música popular, onde eu vi coisas realmente de arrepiar, de dar dó. E o que é pior: não só via, como também ouvia notícias, por exemplo, Noel é um homem que morreu aos 25 anos e 6 meses de idade, tuberculoso. Não há dúvida nenhuma que não há expressão maior na poética do samba do que Noel Rosa, até hoje. Chico Buarque, com todo o respeito é um filho-neto de Noel, mal comparando, é claro, são duas formações culturais completamente diferentes. Mas, esse artista morre tuberculoso, quer dizer, esse país não podia deixar um homem desses morrer de forma nenhuma, como Glauber no cinema, aquilo foi, não quero usar uma expressão, uma linguagem aqui, dessa esquerdinha imbecil, é outra também primária e intelectualóide, mas a verdade é que houve um assassinato cultural. Quer dizer, o estado não podia deixar um homem desse abandonado ou sujeito até aos seus próprios vícios. O estado tem uma responsabilidade com esses criadores ou deveria ter.
Em se tratando de literatura brasileira, o sujeito que achar que sabe alguma coisa, ou que acreditar na glória literária, é um puro e simples idiota, é um otário, como diriam os meus personagens, absolutamente desavisado. A realidade brasileira é muito superior ao que a arte brasileira já fez; nós ainda não temos uma literatura à altura da multiplicidade de realidades brasileiras e da grandiosidade dessas realidades. Por exemplo: nós não temos uma boa literatura sobre futebol, nós não temos uma boa literatura sobre favela, nós não temos uma boa literatura sobre samba, nós não temos uma boa literatura sobre êxodo rural; nós não temos obras tópicas, por exemplo, as coisas de Graciliano Ramos, Lima Barreto, e outros exemplos bons.
A realidade brasileira é muito dinâmica e muito variada. Nós temos Estados no Brasil, como São Paulo, Minas ou o próprio Rio que tem três ou quatro realidades regionais completamente diferentes, desde o clima, até a forma de pensar, sotaque e inflexão. Então, o sujeito que é escritor no Brasil e ficar com empáfia do tipo: “eu sou absoluto, eu tenho que falar e vocês têm que ouvir”. Esse sujeito não sabe é nada; é um belo de um imbecil que está tentando enganar a si mesmo. Na literatura, o autor sempre está em construção, é sempre possível construir alguma coisa, não só como obra, como conteúdo, mas até como elemento estético, porque as coisas aqui são muito mutáveis, e justamente por isso, é permanentemente um seleiro para novas experiências e para novas obras.
Agora, realmente, o que o artista tem que fazer, e que é muito difícil, é conseguir ser universal no particular, porque senão ele acabará fazendo uma obra de registro, de realidades, que, sem nenhum desdouro desse trabalho jornalístico, não vai passar de uma reportagem. E a reportagem morre logo. Ela não tem elementos, ela é, em geral, circunstanciada a algum fato. Então, ele tem que trabalhar sobre o particular, aquilo que o particular tem de universal, cujo epicentro seja o homem, seja o sentimento do homem, as condições do homem, as coisas básicas do homem, e que possa ser entendido em qualquer parte do mundo, em Macau ou Amsterdã. Se não houver essa densidade, então não adianta também fazer registro de realidade, porque aí não passa de uma fotografia, sem desdouro nenhum para com os fotógrafos. A verdade é essa; o artista tem que trabalhar num sentido de elaboração.
Eu acho que o responsável, vamos dizer assim, pela minha entrada no gosto literário, foi o Café-Jardim, quando era garoto; isso deve ser quarenta e cinco, quarenta e seis, logo depois do término da guerra. Os pacotes de café, de ½ quilo, traziam umas figurinhas e depois a gente enchia com aquelas figurinhas, um álbum. E o álbum, me lembro, era feito pelo Monteiro Lobato, chamava-se O homem das cavernas, e nada mais era do que uma iniciação a pré-história. Naquela época, também era meio que moda ler os livros de Graciliano Ramos. E eu lia em voz alta; comecei a aprender a escrever sem saber que estava aprendendo. Porque comecei a perceber que aquilo tinha um ritmo, tinha uma música interna extraordinária, principalmente os três últimos capítulos de "Caetés" e de "São Bernardo". Vocês vêem que chega a ser até um trabalho poético, aqueles três capítulos finais. Claro, que poético nas dimensões do Graciliano, um poeta sem metáforas, extremamente econômico, a ponto de ser quase seco, na procura do verbo ou da palavra certa.
Mas com quem ele tinha aprendido aquilo? Ele aprendeu com alguém. Ninguém nasce sabendo nada. Isso já é uma psicologia do jogador de sinuca. Aí eu comecei a ler nas revistas, principalmente no Cruzeiro, coisas sobre o Graciliano, que aparecia muito lá, especialmente numa página chamada "Arquivos implacáveis" de João Condé. Eu comecei a ver que ele tinha uma firme formação com os clássicos portugueses. Aí eu procurei ler esses clássicos: Antônio Vieira, Manuel Bernardes, Flávio de Almeida, e o brasileiro Machado de Assis.
Brasil era outro país, havia uma atmosfera cultural. O cinema que se via era muito melhor. Os mestres italianos, o cinema japonês, eu vi com 17 anos, o Akira Kurosawa; e aquilo me ensinou a compor.
Em mil novecentos e cinqüenta e sete ou oito, eu mandei um conto para um concurso permanente na revista A cigarra, cuja comissão julgadora, era integrada por dois nomões: o Aurélio Buarque de Holanda, o autor do dicionário, e o Paulo Rónoi, que se escreve Rónai, mas como é húngaro, eu pronuncio certo: é “Ronói”; eu aprendi húngaro quando era garoto em Vila Anastácio, porque ali tinha muito húngaro, que a gente chamava de “hungareses”. Então, esses dois mestres: o Paulo Rónai e o Aurélio Buarque de Holanda pegaram um conto meu, que se chama “Fujie”, uma história de adultério, então, me compararam ao Mário de Andrade. Eu nunca tinha lido Mário de Andrade.
Ele morava na Rua Lopes Chaves, na Barra Funda, e ali perto tem um lugar que era incrível, porque eu conheci quando era garoto, ali por volta de quarenta e três, quarenta e quatro; nós morávamos no Beco da Onça que era uma favela na horizontal, atrás do campo do Palmeiras, em São Paulo, a gente ia visitar os avós, pegando o trem. Saía de Vila Pompéia, a pé, até a Barra Funda . No percurso passávamos pelo famoso “Largo da Banana”, e depois subia a Alameda Olga, célebre por suas crioulas, dando aqueles nós nas cadeiras...como é que esse mundo, com essa vida, com esse sabor, com essa, vamos dizer, sensualidade, como é que o Mário nunca viu isso, ele morava ali encostado. Veja bem, então essas coisas que me deixam muito com a pulga atrás da orelha, como se diz, meio desconfiado, de que essas pessoas não foram tão ativas, tão solertes, tão acordadas, quanto às vezes a gente pensa.
Eu tenho uma tendência de sacrificar o próprio interesse da história pelo interesse da palavra, isso é típico dos poetas. O poeta olha para dentro da palavra; a poesia, em grego, é criação. Então ele olha para dentro da palavra. Acontece que o prosador não é bem assim, ele tem que ter um enredo, ele tem que ter uma história, a história é um fio condutor. Minha atividade literária é antes de tudo, uma atividade lúdica... Eu me divirto escrevendo. Eu tenho uma relação absolutamente sensual com as palavras. Há certas palavras que eu não uso jamais, e há outras que eu procuro usar quase sempre. Eu procuro embutir no texto palavras que não estão dicionarizadas, gírias ou coisas que eu criei, por exemplo, alguns jogos que eu faço com verbos pra fazer o leitor parar no meio da frase. Isso é de propósito. Êh, pro cê não ir adiante, ter que voltar e reler, pra entender.
Essa história de literatura, é algo complicado, conversa pra duas semanas, depois mais duas, e nunca vai ter solução e vai ter multiplicação, desdobramento, é o que, popularmente, se chama barato. É uma viagem sem fim, absolutamente encantatória, e por isso mesmo, muito difícil. Porque esse encantamento todo não é onírico, não é um negócio de sonho. No meu caso, parte de uma realidade que está aí. E é também uma atitude intelectiva diante da vida, é uma atividade que não dá sossego; se vocês me perguntarem quantas horas eu escrevo por dia, eu digo 24. Eu acho que eu escrevo até quando eu estou sonhando; eu só gosto de escrever, eu não gosto de mais nada. Eu só gosto de escrever. Eu sinto que não resta muito tempo. Um dia desses sonhei que havia morrido e só encontraram meu corpo uma semana depois.
As pessoas começam a falar comigo, eu fico olhando assim pra pessoa... É por isso que os meus sobrinhos me chamam de louco, maluquinho. Os sobrinhos perguntam pra minha mãe quando eu vou visitá-la: “Me diga uma coisa vovó, o tio João Antônio sempre foi maluquinho desse jeito?”. Porque, às vezes, a pessoa está falando comigo, eu não estou prestando a atenção no que ela está falando. Eu quero saber das palavras, o trabalho com a linguagem, esse negócio tem uma música. Eu digo: “Repete, por favor!” A pessoa fala, e eu... Que interessante, isso tem uma música, isso tem um ritmo...
Então aquela tal sapiência que certos autores parecem ter, de que eles dominam tudo, é mentira. Eles não dominam coisa nenhuma. A obra é muito mais forte do que o artista, ela usa o artista. Eu não acredito em escritor que diz que ele conduz a obra.
Isso é fundamental: que o escritor não se esqueça, por favor, que a literatura não existe assim como a arte não existe, nem a política. O que existe é a vida. De que a arte, a literatura e a política se alimentam.
E a coisa em si vai resolvendo, eu vejo assim, eu sinto assim, a coisa pula. Eu digo: eu nunca elegi um tema na minha vida, eu nunca escolhi escrever sobre nada, eu fui escolhido, eu fui de repente envolvido por aquilo de uma maneira estranha. Então aquela tal sapiência que certos autores parecem ter, de que eles dominam tudo, é mentira.
Eles não dominam coisa nenhuma. Ou então não são autênticos, porque a coisa é muito mais forte do que eles. A obra é muito mais forte do que o artista, ela usa o artista. Eu não acredito em escritor que diz que ele conduz a obra. Às vezes você tem um quadro de personagens e tem lá um personagem pequeno. E de repente, no desenvolvimento aquele personagem começa a aparecer, e começa a ganhar uma outra proporção, então você diz assim, o que é que esse mequetrefe quer aqui? O que esse intrometido quer aqui? Sabe o que ele quer? Ele quer se transformar em personagem principal e já se transformou. Ele vai ser o centro das coisas e você ainda não sabe. Eu não quero entrar aí em preocupações teológicas, nem mediúnicas, mas o Guimarães Rosa admitia isso, o João Guimarães Rosa admitia que havia um processo de passagem que ele não explicava muito bem. Então, sem esse encantamento pela literatura e ao mesmo tempo essa humildade de entender que o autor também é uma espécie de cavalo, de guia, de recebedor das coisas, não dá pra realizar uma obra realmente espontânea, realmente digna, realmente humanística, realmente sincera.
Eu não levanto personagens pitorescos, engraçados, anedóticos e nem minhas histórias são amenas, humorísticas de mero entretenimento. Minha gente é típica, mas nada caricatural. É universal, vincada de realismo e verdade, possui a sua própria valência, o seu peso específico...
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