Por David da Silva
Therezinha Pires Pazini fotografada por Rogério Gonzaga |
Ela tem o mesmo nome da santa padroeira da cidade. Mas
não ia à igreja atrás de beatitudes. “Eu gostava de ir lá por causa do grupo de
teatro”, conta Therezinha Pires Pazini, que fez o papel de Virgem Maria na
primeira montagem da Paixão de Cristo de Taboão da Serra em 1956. Nascida aqui
no município, Therezinha tinha 21 anos quando entrou pela primeira vez na
Igreja (hoje Santuário) Santa Terezinha, levada pela insistência da irmã Izabel.
Lá conheceu Mário Pazini, com quem se casaria anos depois. Nos seis primeiros
anos deste espetáculo, Mário e Therezinha dividiram o palco – ele no papel de
Jesus. O personagem foi transmitido ao filho Mário Pazini Junior, de quem
Therezinha estava grávida de um mês em abril de 1962, quando interpretou Maria
pela última vez. Hoje, aos 81 anos, ela
se dedica ao artesanato; expõe há 36 anos na feira dos artistas em Embu das
Artes.
Mário Pazini Junior, que repetiu a marca do pai e interpretou
Cristo também por seis anos (em 2000, 2002, 2003, 2004, 2005 e 2006), faleceu
em março de 2012 aos 51 anos de idade. Ele será o homenageado da Paixão de
Cristo/2017, data da 61ª apresentação ininterrupta deste evento criado por
Manoel da Nova.
Paixão pelo teatro
Com sinceridade típica, dona Therezinha revela: “Na
verdade [quando adolescente] eu não gostava de nada aqui no Taboão. Passava
reto (risos). Minha irmã pertencia ao teatrinho da igreja. Pra agradar ela, fui
lá ver. Foi quando conheci o Mário [Pazini, pai] que fazia parte deste grupo”,
relata Therezinha enquanto acaricia o gatinho deitado em sua coxa esquerda.
Na parte dos fundos da igreja havia um salão onde Manoel
da Nova montava pequenas peças de teatro. “Neste salão tinha o barzinho e o
palco. Era sempre o mesmo grupinho [de atores amadores], mas a cada domingo,
uma peça diferente”. Foi deste pequeno núcleo que Manoel da Nova germinou a
ideia de montar a Paixão de Cristo.
A apresentação se dava totalmente dentro do galpão. “Até
a Ressurreição era tudo no próprio salão. Abria o [chão do] palco e o Cristo
subia”, relembra com gestos largos. Um ano depois da estreia, o espetáculo
passou a ter a Via Crúcis, que se deslocava até o Morro do Cristo, a centenas
de metros da igreja. A ideia foi um sucesso, e este grupo inicial chegou a se
apresentar em Franco da Rocha, município da Grande São Paulo.
Fatos pitorescos
da Paixão
Manoel da Nova, que já tinha experiência em artes
cênicas, sempre foi exigente com a qualidade da Paixão de Cristo encenada em
Taboão da Serra.
Therezinha relata um fato pitoresco de uma das
apresentações pioneiras. “Certa vez o Manoel da Nova estava descontente com o
ator que fazia o papel de Pilatos. Estava fazendo tudo errado, e o Manoel
falou: ‘Vou dar com o martelo na tua
cabeça!’ (risos). Só que isto que o Manoel falou saiu no microfone, e todo
mundo na platéia ouviu a bronca que ele estava dando no ator (mais risos)”.
As encenações de primeira viagem também tiveram seus instantes
de pânico. “Teve a vez em que o rapaz que interpretava Judas quase se enforcou
de verdade. Ele queria fazer tudo tão perfeito, que quase morreu pendurado na
corda”.
Um momento de tragicomédia envolveu Mário Pazini, pai, no
papel de Cristo. Fala Therezinha: “O Manoel da Nova trouxe sangue cenográfico
para a cena em que o soldado romano lanceta Jesus. Mas fizeram uma maquiagem
tão perfeita, tão resistente, que na primeira estocada a bolsinha com sangue
artístico não estourou. Daí o ator que fazia o soldado romano deu uma espetada
mais forte, e o ‘sangue’ jorrou. Meu cunhado Nelson que também atuava na peça
pensou que o ferimento foi de verdade, que meu marido teve realmente a carne
furada pela lança. E foi pra cima querendo bater no ator que interpretava o
soldado” (risos).
Telma Pazini - Foto: Rogério Gonzaga |
Paixão em família
Telma, irmã de Mário Junior, descreve em cores vivas como
a Paixão de Cristo em Taboão da Serra permeia a vida da família Pazini. “A
história de Cristo para a gente é como se fosse uma coisa da família. Como se
pertencesse a nós. Crescemos ouvindo o pai e a mãe sempre falando da Encenação.
Este é um legado que sempre procuramos passar para as novas gerações. Não dá
para desvincular a história da Paixão de Cristo da história da nossa família”,
diz Telma. “Até quando assistimos filmes ou peças de teatro sobre Jesus, é
sempre com um olhar crítico, porque conhecemos o assunto a fundo”, diz Telma
recostada à estante onde o retrato de seu irmão está na prateleira mais alta.
Dona Therezinha passeia o olhar pela sala como se o
ambiente estivesse lotado de parentes. “Vinha todo mundo aqui pra casa. Dois
meses antes do espetáculo era aquele sufoco. Nós do grupo de teatro da igreja é
quem fazíamos de tudo. Vestimenta dos personagens, aquelas roupas vistosas dos
guardas, das mulheres. Até o cenário era a gente quem montava. Tudo”, relembra
acrescentando que membros da família que moravam longe vinham todos para a sua
casa, para seguirem juntos ao local da Encenação. “O espetáculo da Paixão de
Cristo sempre foi uma festa aqui em casa”, arremata Telma.
A apresentação de 1962 misturou o relato bíblico à
própria história de vida de Therezinha. “Cada vez que eu fazia a Virgem Maria
era sempre uma nova emoção”. Mas foi especial quando, antes mesmo de nascer,
Mario Pazini Junior já estava no palco, na barriga da mãe, como o Menino Jesus.
Paixão de pai para
filho
Telma conta que por certo período Manoel da Nova ficou
afastado da Paixão de Cristo em Taboão. Outras pessoas tocaram o espetáculo.
Tempos depois, Da Nova retomou a atividade e convidou Mário Pazini Junior, o
Marinho, para integrar-se ao elenco. “Mas o Marinho recusou, talvez por não se
sentir preparado para aquele desafio”, lembra a irmã.
O espetáculo foi comandado por Manoel da Nova até 1993. A
morte da esposa abalou o veterano amante do teatro. E ele passou o fardo da
Paixão de Cristo para Amaral Alves, que por sua vez legou a tarefa a um grupo
teatral coordenado por Zé Maria de Lucena que já fazia trabalho semelhante
desde 1979 numa comunidade católica na região do Pirajuçara. Por esta época, o
espetáculo já era apresentado na escadaria do Cemur (um mix de centro de
recreação com espaço para Cultura).
Quando enfim se sentiu pronto a assumir o lugar do pai na
cruz, Marinho fez questão de ir ao palco com os mesmos adereços usados por
Mário Pazini, pai.
“O Marinho passou a utilizar a mesma coroa de espinhos
que meu marido usava”, diz Therezinha. “A coroa estava guardada com o Manoel da
Nova, e ele entregou para o Marinho. Hoje esta coroa de espinhos deve estar no
Teatro Clariô que ele fundou”.
Para a cena da crucificação, Marinho também quis ficar da
mesma forma que o pai, sustentado pelos dedos enfiados em uma argola pregada na
cruz. “Ele usou o mesmo simulacro de prego cravado na palma da mão, que dava um
realismo muito grande”, enfatiza Therezinha.
Na sua primeira apresentação como Cristo, Mário Pazini
Junior desceu da cruz com câimbras. “Fazia muito frio, e o sermão do padre no
intervalo do espetáculo foi muito demorado”, relata Telma. A irmã observa que Marinho
queria fazer tudo exatamente como o pai. “Só que ele não atentou para o fato de
que não tinha o mesmo preparo físico do meu pai, que era caminhoneiro”, diz
Telma. “O padre deveria ser mais breve, e entender que enquanto ele falava
tinha uma pessoa pendurada pelos dedos na cruz”, critica a mãe.
A paixão de Mário Pazini Junior pelas artes sempre foi visceral.
“Ele chegou a repetir de ano no colegial por causa dessas coisas de montar
eventos culturais na Escola Estadual Wandick de Freitas”, diz Therezinha
referindo-se ao colégio onde Marinho cursou o segundo grau.
Telma lembra com orgulho indisfarçado um grande feito do
irmão. “O Marinho organizou um festival de música na escola, e este festival
cresceu tanto com a participação de alunos de outras unidades de ensino que a
finalíssima do concurso teve de ser feita no Cemur lotado”, relata Telma.
A opção definitiva pelo palco se deu quando, aos 16 anos,
Mário Pazini Junior ingressou no Teatro Tesol, no curso de palhaço. Começava
ali a carreira que o consagraria como o ator e diretor teatral mais emblemático
da história de Taboão da Serra, com vários prêmios como os da Cia Paulista de
Teatro, Prêmio Myriam Muniz, entre outros. No ano anterior à morte de Marinho,
o Grupo Clariô, fundado por ele e sua mulher Naruna Costa, ganhou o Prêmio
Governador do Estado.
Paixão pela Cultura popular
Como bom descendente de italianos, Mário Pazini Junior criou
uma metáfora culinária que hoje serve de paradigma aos seus colegas de palco e
de cruz na defesa da Cultura. Usei esta frase no diploma de honra ao mérito que
será entregue a dona Therezinha nesta Sexta-feira da Paixão:
“Se somos ‘massa’, nosso fermento é bom e, um dia, a borda desta ‘pizza’ vai crescer tanto, que deixará de ser margem e o centro estará em toda parte”
É no clima desta frase profética que artistas e público
da Paixão de Cristo renderão um tributo à memória de Marinho.
2 comentários:
obrigada pela homenagem
obrigada pela homenagem
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