sexta-feira, 29 de junho de 2007

Paulinho Perna Torta

João Antônio

“Um valente muito sério

Professor dos desacatos

Que ensinava aos pacatos

O rumo do cemitério”

(Noel Rosa, em

‘Século do Progresso’)

“... quem gosta da gente é a gente. Só.
E apenas o dinheiro interessa. Só ele é positivo.
O resto são frescuras do coração.”


(de acordo com o ensino de Laércio Arrudão)

Que essa cambada das curriolas, que esses ratos da polícia e esses caras dos jornais, gente esperta demais com seus fricotes, máquinas e pé-ré-pé-pés, espalha que espalha mais brasa do que deve.
Sei que deram para gostar ultimamente de encurtar o nome de Paulinho duma Perna Torta.
Paulinho da Perna Torta. Paulinho da Perna Torta. Apenas.
Nos jornais, nas revistas. Também na televisão já vi essas liberdades. Leio e ouço por aí. É assim, São Paulo inteiro acabará me chamando de Perna Torta.
Não gosto.


Moleque de Rua

Dei duro. Enfrentei.
Comecei por baixo, como todo sofredor começa. Servindo para um, mais malandro, ganhar. Como todo infeliz começa.
Já cedinho batucava.
- Vai um brilho, moço?
Repicar na caixa, mandar os olhos nos pés que passavam. Chamar freguês. Depois me mandar no brilho dos sapatos. Fazer um barulhão com o pano, atiçar os braços finos, esperto ali.
Os dedos imundos não tinham sossego. Às vezes, cobiçava os pisantes dos fregueses; então, apurava mais o brilho. O tipo se levantava da cadeira, se arrumava todo; se empinava, me escorregava uma nota. Humilde, meio encolhido, eu recolhia a groja magra. Tudo pixulé, só caraminguás, uma nota de dois ou cinco cruzeiros. Mas eu levantava os olhos e agradecia.
Agüentava frio nas pernas, andava de tênis furado, olhava muito doce que não comia e os safanões que levei no meio das ventas, quando me atrevia a vontades, me ensinaram que o meu negócio era ver e desejar. Parasse aí.
Agüentei muito xingo, fui escorraçado, batido e dormi de pêlo no chão. Levei nome de vagabundo desde cedo. Lá na rua do Triunfo, na Pensão do Triunfo, seu Hilário e dona Catarina.
Aquilo, àquele tempo, já era o casarão descorado dos dias de hoje, já pensão de mulheres. Mas abrigava também, à noite, magros, encardidos, esmoleiros, engraxates, sebosos, aleijados, viradores, cambistas, camelôs, gente de crime miúdo, mas corrida da polícia; safados da barra pesada, que mal e mal amanhecia, seu Hilário mandava andar. Cada um para a sua viração.
A gente caía para a rua. Catava que catava um jeito de se arrumar. Vender pente, vender jornal, lavar carro, ajudar camelôs, passar retrato de santo, gilete, calçadeira... Qualquer bagulho é esperança de grana, quando o sofredor tem a fome. Vontade, jeito? A fome ensina. A gente nas ruas parecia cachorro enfiando a fuça atrás de comida.
Ainda escrevem aí que matei meu pai a tiros por causa de uma herança... Esses tontos dos jornais me botam cabreiro.
Outra coisa errada que em meu nome corre é que comecei na zona. Que zona, que nada... Zona foi vida boa. Foi depois de Laércio Arrudão me apadrinhar e me ensinar o riscado do balcão, pra cima e pra baixo, servindo cachaça, fazendo sanduíche e tapeação nos trocos; misturando água nas bebidas quando, noite alta, as portas do bar desciam, e Laércio ia fazer a feira e eu as marotagens nas garrafas. Sim. Mas antes dessa coisa de zona, me rebentei por aí.
Bem. Engraxando lá nas beiradas da Estação Julio Prestes. Era um na fileira lateral dos caras. Entre velhos fracassados em outras virações e moleques como eu e até melhores, gente que tinha pai e mãe e que chegava lá da Barra Funda, da Luz, do Bom Retiro... Porque isso de engraxar é uma viração muito direitinha. Não é frescura não. A gente vai lá, ao trambique da graxa e do pano, porque anda com a faminta apertando. E é mais sério do que aquilo que os otários com suas vidas mansas, do que os bacanas e os mocorongos com suas prosas moles julgam. Aquela molecada farroupa com quem eu me virava, tirava dali uma casquinha para acudir lá suas casas; e, engraxando, os velhos, sujos e desdentados, escapavam de dormir amarrotados nas ruas, caquerados e de lombo no chão. Como bichos.
A Júlio Prestes dava movimento e éramos explorados por um só. O jornaleiro. Dono da banca dos jornais e das caixas de engraxar, do lugar e do dinheiro, ele só agarrava a grana. Engraxar, não; ele lá com seus jornais.
Eu bem que podia me virar na Estação da Luz. Também rendia lá. Fazia ali muito freguês de subúrbio e até de outras cidades. Franco da Rocha, Perus, Jundiaí... Descidos dos trens, marmiteiros ou trabalhadores do comércio, das lojas, gente do escritório da estrada de ferro, todo esse povo de gravata que ganha mal. Mas que me largava o carvão, o mocó, a gordura, o maldito, o tutu, o pororó, o mango, o vento, a granuncha. A seda, a gaita, a grana, a gaitolina, o capim, o concreto, o abre-caminho. Aquele um de que eu precisava para me agüentar nas pernas sujas, almoçando banana, pastéis, sanduíches. E com que pagava para dormir a um canto com os vagabundos lá nos escuros da Pensão do Triunfo. Onde muita vez eu curti dor-de-dente sozinho, quieto no meu canto, abafando o som da boca, para não perturbar os outros.
Dona Catarina, naquela boca do inferno. Piranha velhusca, professora de achaques, de manha e de lero-lero. Uma dessas veteranas que de gorda já não tem cintura. Arrastando varizes lerdamente, aos resmungos e desbocada, tomava-nos o que podia. Piranha, rápida, no tirar o que é dos outros e sem muita explicação, dona Catarina era dona Catarina. E não sei se eram os meus olhos verdes, como algumas mulheres têm dito ou a cara toda de coitado...
Se eu andava muito branco ou cara inchada de dor, a velha me dava um jeito. E me arrastava para ver. Tinha lá no Largo Coração de Jesus seus conhecidos, um farmacêutico e um dentista.

me passando o açucaonstandoando o fuoguete, um estrepe para eu segurar. pam. a-nos o que podia. uas, caquerados e de lomboTambém me rendia a viração na Estação da Luz. Ganhava. Mas as porradas me foram sapecando olho vivo. E já não era tão trouxa. De quando em quando, se animava e explodia lá onde é hoje a Boca do Lixo, pegava a Luz, um tenderepá qualquer e na quentura do batefundo, corria gente para todos os cantos que, à chegada da polícia, as ruas ficavam azoadas, os otários botavam a língua no mundo e até os mais malandros perdiam suas bossas. Que o castigo vinha a galope. E nessas umas e outras, os pequenos se estrepam. Aprendi desde moleque. Pois. Nos esporros lá da boca, sobrava sempre um rabo-de-foguete, um estrepe para eu segurar. Um vadio ou uma vadia, terminando o fuá, vinham se chegando à minha caixa, se encostando, me passando o açúcar. Charlavam que era emprestado. Sim. Que depois me devolveriam. Sim. Que eu era faixa deles e eles, meus do peito. Sim. E o jeito que a cambada tem para tomar... Eu, morto, entregava depressinha. Muita vez, na arrumação me furtavam o dinheirinho suado, arranjado no brilho dos sapatos. A devolução? Cobrasse e levaria safanão e deboche.
Lixão. Naquele tempo, essas ruas aí às beiras das estações de ferro não expunham estes bordéis todos (...)
(...)
É que na cidade havia zona. E a concentração maior da bagunça, da safadeza e de todas as picardias de malandragem e virações ficava lá longe. No Bom Retiro. Aquilo era um formigueiro na rua Itaboca e dos Aimorés. Até gente morria. Tiro, facada, navalhada, ferrada e todo o resto do acompanhamento. Mas era um braseiro isolado e não bulia com ninguém fora dali.
(...)
Bem. Na Estação da Luz me tomavam o dinheiro. Com o tempo me apavorei, achei que não estava no tom daquela malandragem correndo para cima de mim e me mandei. Entendi. Parei de estalo. Desguiei, me espiantei, me esquinizei e, deslizando dos malandros, bati perna, acabei me escorando lá na Estação Júlio Prestes. Sondei. Pedi, peguei um lugar ali nas caixas do saguão. O jornaleiro era dono. Um bicho gordo, vermelho, com o cigarro que não saía do bico.
- Você dá no couro?
Dei no couro, sabia muito bem o que estava fazendo no brilho de um sapato. Mas me dei mal, desacostumado com aquilo de pagar ao dono das caixas. O homem me tomava a metade... Meu capitalzinho se esfacelava às oito da noite, à hora da divisão.
Para a Pensão do Triunfo voltava murcho, encabulado. Ô espeto! O dinheirinho dava mal e mal para um prato feito, um sortido muito, muito sem vergonha lá no Bar do Porco, na rua dos Gusmões.
(...)
Eu era um trouxinha. Moleque escorraçado, debaixo de um quieto rebaixado, mas me roendo por dentro, recolhia calado os pixulés que me sobravam da exploração do jornaleiro.
(...)
O dinheiro do cara era gordo, era um tufo. Com aquilo eu faria gato e sapato, mil e uma presepadas, me arrumaria na vida. Ferveria.
(...)
Mandei a mão na maçaroca de grana. O sujeito me pilhou com os dedos na coisa e me plantou a mão na cara. O bofete quase me cata a orelha em cheio, aqui de lado, abaixo da costeleta. Doeu, estalou.
Ele estava à minha frente e eu meio agachado, pelo vão das pernas podia ver os outros engraxates. Cada um no seu lugar, olhando parado, não se dizia nada. Ninguém se mexia.

[Continua...]

AVISO: quando eu publicar a continuação deste conto, este trecho já postado será removido para meu arquivo pessoal, e estará à disposição apenas para divulgação e preservação da obra deste gigante do jornalismo literário brasileiro.

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