segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Monogamia para Iniciantes

David P. Barash é doutor em zoologia e professor de psicologia na Universidade de Washington, em Seattle. Escreveu diversos livros e colabora com artigos para publicações como Playboy, Psychology Today e The New York Times.
Judith Eve Lipton é uma destacada psiquiatra especializada em questões femininas.
Eles são casados desde 1977, e têm dois filhos.


Certa vez a antropóloga Margaret Mead sugeriu que a monogamia é o mais difícil de todos os arranjos conjugais humanos. É também um dos mais raros. Mesmo casais fiéis e há muito casados são novatos na monogamia, quer percebam ou não. Ao tentarem manter um vínculo social e sexual que consista exclusivamente em um homem e uma mulher, os aspirantes a monógamos estão contrariando algumas das inclinações evolutivas mais profundas com as quais a biologia desenvolveu a maioria das criaturas, inclusive o Homo sapiens. Como veremos, há fortes evidências de que os seres humanos não são "naturalmente" monógamos, bem como há provas de que muitos animais, que antes acreditávamos serem monógamos, não o são. Certamente, os seres humanos podem ser monógamos (e esta questão é completamente diferente de devem ser), mas não há dúvida: a monogamia é incomum - e difícil.
Como observou certa vez G. K. Chesterton sobre o cristianismo, o ideal de monogamia não foi tão testado para que possa ser considerado insatisfatório; em vez disso, foi considerado difícil e com freqüência não foi sequer tentado. Ou, pelo menos, não por muito tempo.
A culpa - se é que há alguma - está menos na sociedade do que em nós mesmos e em nossa biologia. Assim, a monogamia foi prescrita para a maioria de nós pela sociedade americana e pela tradição ocidental de modo geral; as regras oficialmente declaradas são bem claras. Devemos conduzir nossa vida romântica e sexual em pares exclusivos, no campo matrimonial designado. Mas, como no futebol, algumas pessoas saem dos limites. E não é incomum que se marque um pênalti se um juiz detecta uma violação. Para muitas pessoas, monogamia e moralidade são sinônimos. O casamento é a sanção definitiva e desviar-se da monogamia conjugal é o pecado interpessoal definitivo.1 Nas palavras ácidas de George Bernard Shaw: "A moralidade consiste em suspeitar de quem não é legalmente casado."
Ironicamente, porém, a monogamia em si não é nem de longe tão desagradável quanto as conseqüências de se afastar dela, mesmo que, em muitos casos, ninguém descubra. Deixando de lado os escrúpulos religiosos, a angústia da transgressão pessoal pode ser intensa (pelo menos em grande parte do mundo ocidental), e aqueles especialmente imbuídos do mito da monogamia em geral se vêem tomados de culpa, condenados, como os personagens de um conto moral puritano, a mourejar eterna e inutilmente com suas almas maculadas de adultério, com freqüência acreditando que sua transgressão não só é imperdoável como também não é natural. Para muitos outros - provavelmente a maioria - há muito arrependimento e culpa em simplesmente sentir desejo sexual por alguém que não seja o cônjuge, mesmo que esses sentimentos nunca sejam postos em prática. Quando Jesus notoriamente observou que sentir desejo sexual pelo outro é cometer adultério no coração, ele ecoou e reforçou o mito da monogamia - a alegação em geral tácita de que mesmo o desejo à distância não só é errado como é também um pecado unicamente humano.
Se essas inclinações são equivocadas é uma questão difícil e talvez impossível de se responder. Mas, como veremos, graças aos recentes desenvolvimentos na biologia da evolução, combinados com a mais recente tecnologia, simplesmente não há nenhuma dúvida de que o desejo sexual por múltiplos parceiros é "natural". Ele é. Da mesma forma, simplesmente não há nenhuma dúvida de que a monogamia é "natural". Ela não é.
Os conservadores sociais preferem assinalar o que vêem como uma ameaça crescente aos "valores familiares". Mas eles não têm a mais vaga idéia de como essa ameaça é realmente grande ou de onde ela vem. A família monógama está definitivamente sitiada, e não pelo governo nem pelo declínio da fibra moral, e certamente não por uma ampla campanha homossexual... mas pelos ditames da própria biologia. Os infantes têm a sua infância. E os adultos? O adultério.
Se, como certa vez observou Ezra Pound (de certo modo em causa própria), os artistas são a "antena da raça", essas antenas há muito vêm se crispando com os casos extraconjugais. Se a literatura é um reflexo das preocupações humanas, então a infidelidade tem sido uma das preocupações mais compulsórias da humanidade, muito antes de os biólogos terem alguma coisa a dizer a respeito disso. A primeira grande obra da literatura ocidental, a Ilíada, de Homero, conta as conseqüências do adultério: a face de Helena lançou mil barcos e mudou o rumo da história somente depois de ter se iniciado um caso entre Helena, uma mulher casada e rainha grega, e Páris, filho do rei Príamo de Tróia. Helena em seguida deixou o marido Menelau, precipitando assim a guerra de Tróia. E na Odisséia tomamos conhecimento da volta de Ulisses daquela guerra, na qual ele matou praticamente um exército de pretendentes, cada um deles tentando seduzir sua fiel esposa, Penélope. (Aliás, o próprio Ulisses tinha se divertido com Circe, a feiticeira, mas nem por isso foi considerado adúltero. O padrão duplo é antigo e, por definição, injusto; e, no entanto, também tem sua base na biologia.)
Parece que toda grande tradição literária, pelo menos no mundo ocidental, acha especialmente fascinante explorar os fracassos da monogamia: Anna Karenina, de Tolstoi, Madame Bovary, de Flaubert, O amante de Lady Chatterley, de Lawrence, A letra escarlate, de Hawthorne, A taça dourada, de Henry James. Mais recentemente, os romances de casamento de John Updike - para não falar de montes de novelas de TV e filmes - descrevem uma sucessão de casos suburbanos de classe média. Este livro, ao contrário, não é de ficção. E não está preocupado com os casos em si, mas com os sustentáculos biológicos dos casos, em seres humanos e em outros animais. Mais precisamente, trata do que os estudos mais recentes têm revelado sobre as bases biológicas surpreendentemente fracas da monogamia.
Nossa abordagem será biológica, porque, independentemente do que possamos ser, nós, seres humanos, somos criaturas absolutamente biológicas. Comemos, dormimos, sentimos emoções, envolvemo-nos em sexo e, embora sejamos únicos em determinados aspectos, as criaturas vivas também o são! Rinocerontes e cobras são unicamente rinocerontes e cobras em sua história evolutiva, sua fisiologia, sua anatomia, seu comportamento, assim como os seres humanos são unicamente humanos. Mas somos - podemos ser - mais únicos do que outras criaturas? Além disso, deve ficar rapidamente evidente aqui que, apesar da contraditória "singularidade compartilhada" de todos os seres vivos, há também autênticos padrões em comum, especialmente - para nossos propósitos - uma suscetibilidade a certas tendências básicas de comportamento. Toma-se como certo que aprendemos sobre a digestão, a respiração ou o metabolismo humanos estudando estes processos em outros animais, fazendo os devidos descontos, é claro, para algumas diferenças inevitáveis entre espécies distintas. O mesmo é válido para grande parte do comportamento, embora certamente não todo ele.
Neste livro, nos preocuparemos com um leque de seres vivos, em parte porque cada um deles é digno de compreensão e também devido à luz que eles podem lançar sobre nós mesmos. Não nos entenda mal: não se argumentará que os marsupiais de focinho peludo mostram um determinado padrão sexual que as pessoas também demonstram. Argumentos desse tipo são absurdamente ingênuos, no mínimo porque há uma extraordinária variedade no mundo animal. Entre as chamadas espécies de aves que utilizam leks (arenas de reprodução), por exemplo, os machos reúnem-se em um trecho cerimonial do chão, e cada macho defende um pequeno território; em seguida, muitas fêmeas diferentes se acasalam preferencialmente com um daqueles machos, em geral o que ocupa o lek mais central e cujas exibições são especialmente intensas. (Aqui não há ligação de par.) E existem os chimpanzés pigmeus, também conhecidos como bonobos, que se envolvem no que parece ser uma maratona sexual liberada a todos. Novamente, não se vê nada semelhante à monogamia... e esses são nossos parentes animais mais próximos.
Por outro lado, há casos de parceria social e sexual de toda uma vida que poderiam fazer vacilar os defensores mais ferrenhos do vínculo macho-fêmea íntimo, intenso e totalmente fiel: não são muitos os seres vivos que participam, por exemplo, da monogamia extrema demonstrada pelo verme Diplozoon paradoxum, um parasita de peixes cujos parceiros se encontram enquanto são larvas adolescentes virgens, momento em que literalmente se fundem pelo meio do corpo e em seguida tornam-se sexualmente maduros; eles então permanecem "juntos" (em qualquer sentido da palavra) até que a morte os separe - em alguns casos, anos depois disso.2 Os exemplos citados vão de aves a mamíferos e invertebrados. E, no entanto, não está totalmente claro o que é mais "relevante" para os seres humanos. Se por relevante quisermos dizer que proporciona um modelo ou - pior ainda - um conjunto de regras ou algum tipo de premonição evolutiva para nosso "eu mais profundo", a resposta deve ser uma só: nenhum. Mas, ao mesmo tempo, cada um deles é relevante a sua própria maneira. Não só toda espécie animal lança sua luz singular sobre as possibilidades da vida, como cada uma delas também ajuda a iluminar um aspecto de nós mesmos.
Para a maioria dos leigos, há um viés compreensível em relação aos mamíferos, em especial os primatas. Mas embora a vida de chimpanzés, gorilas, gibões e orangotangos seja fascinante e pitoresca (especialmente os bonobos altamente sexuados, sobre os quais falaremos mais adiante), a verdade é que, quando se trata de semelhança entre a vida dos animais e dos seres humanos, estes incríveis macacos antropomorfos não são assim tão incríveis. As aves - pelo menos algumas espécies - nos informam muito mais.
Isto porque não estamos procurando antecedentes históricos diretos, mas semelhanças baseadas em circunstâncias similares. Em quase todos os mamíferos, inclusive na maioria dos primatas, não aparede a monogamia. Nem os cuidados masculinos com os jovens. Já as aves, embora nem de longe tão monógamas como se pensava antigamente, pelo menos tendem a esse sentido. (Podemos dizer o mesmo dos seres humanos.) E não apenas isso, mas a monogamia social - ao contrário da monogamia genética - tem uma forte correlação com o envolvimento dos pais e das mães na criação dos filhos, uma situação que é comum em aves e muito incomum entre mamíferos, a não ser pelo primata mais semelhante às aves, o Homo sapiens.
Neste livro, não vamos nos concentrar especialmente nos mamíferos (a não ser em nós mesmos). Quando se trata de dispersar o mito da monogamia, a maior parte das descobertas realmente úteis nos últimos anos vem da pesquisa feita por ornitólogos, que, é interessante observar, têm voltado grande parte de sua atenção para as espécies "políginas" (nas quais o arranjo de acasalamento típico acontece entre um macho e muitas fêmeas) ou "poliândricas" (uma fêmea e muitos machos). Só recentemente eles voltaram a atenção para a monogamia, descobrindo que ela é mais um mito do que uma realidade.
Também nos deteremos por algum tempo nos invertebrados, porque eles incluem muitas espécies diferentes, sendo cada uma delas, de certa forma, um experimento zoológico distinto, cujos resultados só agora estamos começando a decifrar.
Alguns insetos têm representado um papel histórico importante ao nos ajudarem a avaliar o caráter raro da monogamia. Assim, há algum tempo os ambientalistas tiveram forte esperança em uma nova técnica que prometia erradicar as pragas de insetos. A idéia era liberar um grande número de machos estéreis, que acasalariam com as fêmeas, que, portanto, deixariam de se reproduzir. No final, não haveria mais pragas... nem pesticidas. Mas o sucesso desse procedimento nunca foi além de uma espécie, a mosca-varejeira Cochliomyia hominivorax.
O que aconteceu foi o que se segue. Durante a década de 1930, E. F. Knipling, um entomologista do Departamento de Agricultura dos EUA com idéias de vanguarda, pode ter sentido que os meios "naturais" (isto é, sem inseticidas) de controle de insetos indesejados seriam superiores ao uso disseminado de venenos. De qualquer forma, ele começou a explorar uma técnica promissora: introduzir na natureza machos estéreis de mosca-varejeira, poderiam acasalar com fêmeas selvagens da mosca, cuja descendência não iria se materializar. Funcionou, tornando-se por algum tempo uma das maiores histórias de sucesso do ambientalismo pós-Rachel Carson. Na década de 1960, os machos de mosca-varejeira foram expostos a cobalto radiativo em tanques, e depois disso os insetos eunucos foram lançados pelo ar em uma ampla região junto à fronteira do México com os Estados Unidos. Esta técnica conseguiu eliminar o flagelo da mosca-varejeira C. hominivorax. Porém, o resultado nunca foi reproduzido. Revelou-se que a opção de Knipling por uma espécie-alvo foi feliz (ou cientificamente inspirada): as moscas-varejeiras fêmeas são estritamente monógamas. Ao contrário, sabemos agora que, para quase todos os insetos, uma transa não é suficiente: as fêmeas em geral acasalam-se com mais de um macho, assim, mesmo quando são inundadas por uma tempestade de machos estéreis, é preciso apenas um pequeno número de insetos intatos para que a reprodução prossiga normalmente. E assim a "técnica do macho estéril", apesar de todo o seu apelo ecológico e antipesticidas, não chegou a lugar nenhum.



Ao mesmo tempo, as portas estavam abertas para um insight surpreendente - de que o acasalamento múltiplo é comum na natureza. E aqui está a questão essencial: o acasalamento múltiplo não se refere apenas à conhecida tendência dos machos de procurar várias parceiras sexuais, mas também às fêmeas. Provavelmente o primeiro biólogo moderno a chamar a atenção para esse fenômeno e a reconhecer sua importância foi o britânico ecologista do comportamento Geoffrey A. Parker. Em 1970, no que pode ser verdadeiramente chamado de artigo seminal, Parker escreveu sobre a "Competição Espermática e Suas Conseqüências Evolutivas nos Insetos".3 De um só golpe, uma nova idéia havia nascido (ou, pelo menos, fora reconhecida). Trata-se de um conceito realmente simples, na verdade um resultado direto do acasalamento múltiplo: em geral os espermatozóides de mais de um macho competirão para fertilizar os ovos de uma fêmea. A competição espermática não se limita, de maneira alguma, aos insetos; encontraram-se exemplos em quase todos os grupos animais... inclusive entre os seres humanos.

Nenhum comentário: