segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Pra começar bem a semana, 3 "causos" de bar

Uma crônica sentimental de Ignácio de Loyola Brandão, e dois contos com o humor cortante de Aldir Blanc, abrem nosso expediente nesta penúltima semana útil de 2007:

O elegante Bar do Pedro, onde nos formamos

Ignácio de Loyola Brandão

Olhando para trás me lembro de uma coisa curiosa. Nunca vi meu pai em um bar. Nunca soube se por religião, princípio, ou porque achava tolice, perda de tempo, ouvir conversa de bêbado. No entanto, anos mais tarde, quando escrevi meu primeiro livro, Depois do Sol, que se passa inteiro à noite, nos bares, ele leu e me chamou para dizer: "Que vida mais interessante a dessa gente da noite. Quer dizer que os bares são mesmo divertidos?" Mas não lamentou, o tempo passado era tempo passado. De qualquer modo, também nunca disse uma palavra de reprimenda na primeira vez que tomei um porre homérico (expressão daquele tempo, dos anos 50) e cheguei em casa, ele abriu a porta, viu meu estado, ocasionado por um litro de gim, o suficiente para me matar, eu que não bebia. Timidamente, ele confessou: "Não sei o que fazer, não posso te ajudar a resolver, não sei, nunca tive uma ressaca." Quem teve ressaca de gim sabe o que é. Sabe que nunca mais vai colocar uma gota dessa bebida na boca. Quando assisti ao filme Uma Aventura na África (The African Queen), passei mal ao ver Humphrey Bogart emborcando litros e litros de gim pelo gargalo, sem sentir o mínimo efeito.
Se a mulher nunca esquece o primeiro sutiã, um homem nunca esquece o primeiro bar. O meu foi o do Pedro, em Araraquara. Que não era do Pedro, era do Hotel Municipal, o Pedro era um homem alto, corpulento, moreno, educadíssimo, o melhor garçom da cidade, sabia tratar o vagabundo e o grã-fino, ainda que o grã-fino seja mais difícil. O bar do Pedro era antigo, austero, elegante, tinha divisões de madeira, saletas onde as pessoas podiam obter privacidade fechando a porta, resquícios de uma época de fausto que a cidade teve com o café, a estrada de ferro e o comércio. Depois, veio a decadência e um delegado corneado mandou pregar as portas que ficaram definitivamente abertas para evitar sacanagens. Dizem que a mulher dele freqüentava a desoras (expressão da época) as saletas, mandando ver. Não existiam motéis naquele tempo e os hotéis legais não aceitavam casais sem certidão de casamento. Vejam que tempo vivemos! Pensar que suportamos e sobrevivemos.
No bar do Pedro minha turma se reuniu por anos e anos, sempre no mesmo canto, juntando duas mesas. A cidade era provinciana, sem divertimentos, sem graça, nos sentíamos sufocados. Os bares fechavam por volta de onze da noite, menos o do Pedro que ficava até o último freguês. Éramos os últimos e os mais abonados do grupo (cito os nomes em homenagem, porque eu vivia na dureza: Hugo Fortes, Gadelha, Padua e José Eduardo de Almeida) acrescentavam algum por fora para aumentar a gorjeta, compensar tanta paciência.
No bar do Pedro destinos foram traçados. Eu, que ia fazer cinema, acabei escritor. O Zé Celso, que não era o maior freqüentador, mas aparecia, sabia que o advogado acabaria no teatro. O Salinas Fortes tinha na cabeça que a filosofia era o seu mundo e acabou traduzindo Sartre. O Faruk fazia odontologia, mas sonhava ser cantor de boleros. Teve consultório e cantou em cabarés e bares noturnos. Marco Antonio Rocha – outro eventual – fez direito, mas foi para o jornalismo, para a economia e a política, para a televisão. Tudo pensado, conversado, discutido, debatido, gritado no bar do Pedro.
Bebíamos cerveja e chope, coisas baratas. Ainda vigorava aquela história de casco escuro, casco claro, este rejeitado. Marcas? Brahma e Antarctica, nada mais. Ou Malzbier, mas quem queria cerveja de mulher? Quando a angústia pegava, juntávamos doses de genebra. Uísque, nem pensar, era caro, caríssimo, só americano. Old Parr e White Horse eram as marcas cobiçadas, nunca tomadas. Rum era deixado para os bailinhos, misturado com Coca-Cola. Para comer havia salame fatiado, mortadela, azeitonas, tremoços, queijo prato em quadradinhos. Cinqüenta anos depois nada mudou. Quando o dinheiro pintava, vinha provolone à milanesa. Adorávamos gorgonzola, ótimo para preparar o paladar para a cerveja, porém era queijo importado, tínhamos de pegar leve. No fim do ano, Pedro, perfeito anfitrião, oferecia por conta dele rodadas de chope e alguns aperitivos.
O bar do Pedro não existe mais. Um dia, provando a modernidade da cidade, ele foi fechado e transformado em agência da Cometa, dali partiram os primeiros ônibus para São Paulo, fazendo concorrência aos trens. A cidade mudava. Vieram lanchonetes de fórmica, padronizadas, feias, sem graça, vendendo hamburguers, toda comida junkie. Mas o bar do Pedro merece uma placa em Araraquara, na esquina da Rua 3 com a Avenida Portugal, porque várias gerações ali beberam e se formaram na matéria, aprendendo a se comportar, a saber freqüentar, a principalmente respeitar essa honorável e necessária instituição.


Camões naufragou no Adônis

Aldir Blanc

Nas tardes de verão, o Adônis enfrentava calmarias parecidas com as que jogaram Cabral em nossas praias. Um dos donos, o Sr. Arnaldo, saboreava um chope na companhia do Sr. Reis, proprietário da farmácia próxima, que também ficava a ver navios no mar da Zona Norte. Ambos eram portugueses e trocavam, igual figura carimbada, saudades da Terrinha. O Sr. Arnaldo, calmo e bonachão, ria-se muito, ao passo que o Sr. Reis emocionava-se violentamente com as conquistas ultramarinas, com as aventuras e feitos em África, às vezes até ferindo-se com os palitos do queijinho, como se flechas ou lanças o tivessem atingido traiçoeiramente.
Num desses amenos entardeceres cariocas, entre o estridular das cigarras e o bamboleio das suadas morenas regressando ao lar, o Sr. Reis deu um súbito e vigoroso soco na mesa.
- E na literatura, nós, os portugueses, temos o maior de todos! O Maior de Todos!
O Sr. José, garçom do estabelecimento, também lusitano, para profunda contrariedade do Sr. Arnaldo, estranhou:
- Tás a falar de quem, ó pá?
O Sr. Reis tornou-se arroxeado, sugerindo apoplexia a bombordo. Preocupado com a saúde do amigo e sabendo que o que mais dói na alma dos Vates é o esquecimento, o Sr. Arnaldo teve uma idéia que julgou salvadora. Improvisou com uma das mãos um tapa-olho, enquanto com a vista restante piscava para o garçom.
O Sr. José, de início, não compreendeu:
- É cisco? Pisca três vezes e reza uma Ave-Maria pra Santa Luzia.
A essa altura, os instrumentos de bordo prenunciavam tempestade da grossa. O Sr. Reis, sufocado, parecia um crepúsculo nos trópicos, tingido todo de violetas, púrpuras e lilases. Mas graças à Virgem de Fátima, o Sr. José abriu um vasto sorriso:
- Ah, entendi! Tapa-olho! É o Rum Montila!
O Sr. Reis caiu desmaiado.
Diante dos sonoros palavrões do Sr. Arnaldo, o Aureliano, natural de Feira de Santana, que guardava a caixa-registradora, balançou a cabeça:
- Seu Zé acertou de pura cagada, né? Com ele é assim: chuta e vai no alvo! Nem Vavá...


Ajuste Fiscal

Aldir Blanc

Baiano, nosso ministro sem pasta pra sacanagem, deu o alerta:
- Frozô vai aparecer com material novo no pedaço.
Frozô, grande vascaíno e boêmio, cultivava o curioso hábito de exibir mulheres monumentais no buteco onde biritávamos, talvez pelo prazer sádico de nos deixar com água na boca. No mesmo buteco, fazia ponto o Come Quieto, um inimigo mortal do Frozô. Jamais entenderemos porque as mulheres dão pra certos caras!
Come Quieto tocava violão e cantava sambas com bastante sutileza, mas era baixinho, feio e sonso. Quando uma das mulheres do Frozô pedia “Toca alguma coisa pra gente”, Come Quieto era todo modéstia:
- Mais tarde... mais tarde... aqui só tem cobra criada...
Frozô também odiava o fato de Come Quieto ter vários Palitos de Ouro, não se sabe se ganhos honestamente em campeonatos de purrinha ou mandados fazer de vigarice.
E um dia, Frozô apareceu com uma criatura da gente se atirar aos pés dela pra beijar as sandálias douradas. O inusitado é que Come Quieto, escroto como já dissemos, não a olhou uma única vez. Na hora de ir pra outro programa, Frozô contornou a mesa e tacou a mão no focinho do Come Quieto com tanta força que o cara ficou desacordado. Diante da revolta geral, Frozô, com a tetéia recostada em seu amplo colo, justificou o corretivo:
- Pato muito quieto em lagoa, tá a fim do cu da gansa.

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