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quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Serra no boteco, não dá!

Os botequeiros temos um flagelo: o serrote, o fila. Mal nos vê logo serra um cigarrinho... uma breja... uma birita... O folgado só quer beber e fumar no grátis, no peito, na boa, na faixa, no vasco.
O serrote tá tão entranhado na cultura botequeira nacional que até foi cantado em verso e prosa.
Martinho da Vila faturou uns bons trocados em 1984 quando cantou as nossas mazelas (“Eu compro a cerveja, você pede um copo/ Acendo o cigarro, você pede um”) na composição maneira que Paulo Corrêa, o Paulinho da Aba, fez com Nei Silva e Zé Trambique.
Mas os caipiras paulistas já tinham saído na frente dos sambistas cariocas, na investida musical contra este tormento dos bares. Em 1983 Cacique e Pajé gravaram Mão Fechada, de Moacir dos Santos e Chico Vieira (“... fica lá no boteco serrando a rapaziada/ É o serrote do bairro, não gosta de pagar nada...”)
Em 2004 o jornalista André Luis Mansur lançou o Manual do Serrote (Editora Bruxedo). Estava, então, entronizada na literatura brasileira a serrotagem, ou serrotismo. Com direito a figurar nos dicionários como temível verbo transitivo direto – serrar = obter de graça por meios hábeis.
No longínquo ano de 1825 o velho e bom Honoré de Balzac, na época com 26 anos, já havia lançado o alerta contra a serrotagem no livro Código dos Homens Honestos.

Mas o que eu ia dizer mesmo é por que o Zé Serra não tem vez aqui neste Bar & Lanches Taboão. Agora já tá tarde, e você me faça o favor de voltar uma outra hora.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Réquiem para os campinhos extintos...

Ficava no Jd Beatriz o último campinho de futebol na beira de corredor com grande fluxo de trânsito em Taboão da Serra. Em breve será um posto do INSS. A molecada vai ter de arranjar outro lugar para suas peladas.

Aquele campinho já fora ameaçado de extinção em 1990, quando o ex-prefeito Armando Andrade quis erguer ali a unidade de saúde para a região do Jd Helena. Eu trabalhava na Câmara na época. Me juntei ao meu amigo Daniel Castro, fizemos um fuzuê pelo jornal – mostrando que o terreno estava inadequado para a construção – e o campinho escapou.

Agora, não teve jeito. Se clicar na foto (de Allan dos Reis) você verá que uma das traves resistiu bravamente, e foi a última a tombar antes da construtora instalar o canteiro de obras.

Em honra a estes campinhos esmagados pela ocupação urbana/desumana sirvo no balcão imaginário texto do poeta Robinson Padial, o Binho. Ele soube como poucos botar no papel o pranto da gurizada quando perde seu espaço de sonhos entre uma trave e outra.

"Ainda não sei quem sou, mas o meu nome me chama de Robinson, que diz que quer dizer “filho de Robin”, embora meu pai se chamasse Joaquim.

Meu apelido vem da forma carinhosa dimãenutiva quando ela me chamava do campinho que ficava em frente da nossa casa, o qual era minha primeira casa até a luz do dia fugir inteira.

- Robiiiiiiiiiiiiiinho, mãe chamava, nas horas dela, d’eu vir pra dentro. E eu tardava a retornar, do estádio mais saudoso que o Morumbi não viu. E o eco desse Binho ficou lá, parado no meio daquele chamamento de minha mãe.

Naquele campinho de gols, de gol a gol; quando havia poucos para tratar de bola. Naquele que era o nosso, que os buracos eram nossos, de poças rasas; mas profundas na memória, que quando chovia era uma festa de sujação, mães e mãos bravas nos tanques, por isso era melhor jogar as peladas quase pelados, bolas de capotão. E quem era o capitão? Nem existia isso não, e o jogo era jogado, ganhado ou perdido às regras nossas, fifas nenhumas, muitos chapéus, poucos bonés, nenhum cartola.

Aquele campinho que ganhei um prego no pé, e que quase me tetanei. Aquele de correrias, pega-pegas cambalhotas e pipas, poucas pipas muitas bolas. Aquele que mil gols eu fiz sem Romário existir, e que Pelé eu vi, nos braços de minha mãe, mas dentro do Morumbi. Aquele de gandulas; de quem ficava para próximo; em dias mais concorridos ou férias, tínhamos pressa, tempo era gol. Aquele de goleiros frangueiros, posição pouco aceita e despopularizada entre nós, época que a seleção atacava e os artilheiros estavam em alta, ficar no gol era quase uma punição, e poucos se prestavam a agarrar as bolas, a posição era disputada no “dois ou um”, e ser artilheiro nesses casos, era obrigação. Aquele campinho de galinhas e seus pintinhos que ciscavam por ali, e que vez ou outra uma bola perdida depenava um futuro frango. Que no primeiro tempo era uma descida, e no segundo tempo era subida, quando havia tempos.

De traves feitas do que dava, sem redes, de muitos gols duvidáveis mas inexplicáveis, formidáveis, goláveis.

Aquele campinho, onde todos saíram vitoriosos, e que nunca nenhum ser humano amanheceu morto por ali. Tempos que não cuidavam dessas desovas.

Aí vieram o asfalto, os carrinhos de rolimã, carros carros carros, os prédios, todos os bancos, as delegacias, os puteiros e a Casas Bahia. E o campinho também se tranformou. Hoje ele é apenas um desmanche de carros depenados e apreendidos pela 37 DP."


Trecho extraído da crônica Binhografia Inacabada, páginas 84 a 86 do livro Donde Miras - Dois Poetas Um Caminho, de Binho e Serginho Poeta - edição bilíngue. São Paulo: Edições Toró - 2007. e-mail: abcbinho@yahoo.com.br

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Donos da rua

“O motoqueiro buzinou insistente, ultrapassou o táxi, olhou para trás e xingou. O taxista não podia fazer nada, porque o motoqueiro queria, porque queria, eles querem tudo, são donos da rua, um caminho e não havia como ir para a esquerda nem para a direita.
Enfim, ele passou e, por sorte, apenas xingou, em vez de chutar a porta ou quebrar o espelho retrovisor, como costumam fazer. O taxista, sujeito bem-humorado, virou-se para mim:
- Sabe quantos tipos de motoqueiros existem?
- Não!
- Apenas dois.
- Dois?
- Os que já caíram e os que vão cair!
Andamos mais um pouco. (...) O motorista voltou-se para mim:
- Outro dia, aqui na 23 de Maio, vi um caminhão passar em cima de motoqueiro. Olhei e vi o motoqueiro ali caído e sua mentalidade toda esparramada no asfalto.
Imaginei que fosse o cérebro do garoto e a imagem me arrepiou.”

Trecho da crônica de Ignácio de Loyola Brandão,
em O Estado de São Paulo (19.set.2008, pág. D14)

Foto: Acidente na Tailândia (via hotvila)

quarta-feira, 23 de abril de 2008

O milagre do copo

Por Marco Pezão
- Quanto mais penso, em dúvida maior fico. Será que sou um, dois em um, ou quantos nessa cabeça do pensar tomam parte? Vai vendo. Eu vendo conversa pra boi não dormir. Muuugi, boi. Muuugi, boi... Que boi se interessa, que boi quer ouvir? Que verdade se pode contar, que fantasia pode fluir?
- Vai narrador de boa memória, desfia tua história.
- Bem, bem..., em campo, no CC Vila Iasi, tarde de domingo ensolarada, e os times do São Francisco e Bangu disputam uma vaga às quartas de finais do concorrido campeonato de Taboão da Serra.
Lamentavelmente desfalcadas, as equipes foram pro jogo sabendo que, no caso de empate, morreriam ambas abraçadas. Os torcedores atraídos, na maioria, chegam de suas sedes no Jd Leme e Pirajuçara. Divididos em distintos blocos, alçam suas bandeiras, espalhando olhares ansiosos por todo alambrado.
Roquinho, franciscano fiel, de coração corintiano, abandonara o prazer de ir aos grandes estádios. Porém, manteve intacto esse misto de alegria e sofrimento pelo futebol varzeano. Compulsivo, não consegue ficar parado a um canto. Também, não é de xingar ninguém. Mães, de árbitros e bandeirinhas, passam ilesas por sua assistência.
O confronto, duro de assistir. A bola, mordida e mascada, não chega aos atacantes. Roquinho coça a cabeça e se dirige ao boteco do Ebrinho:
- Ai, ai, ai, ai, ai! Assim não vai, mas eu vou. Ebrinho, põe aquela que matou o guarda, benta água pra aliviar a tensão. Quebra gelo da minha cerveja. Vê lá!
- Pura ou com limão?
- Cristalina.
Um copo em cada mão e olho no jogo, Roquinho anuncia:
- O primeiro gole é do santo. Vai São Francisco!!! - Dá uma bicada, em seguida outra, e, atento à jogada, vê o meia Mauricio invadir a área pela direita pra arrematar no barbante – Gooool!!! – Roquinho, braços erguidos, agradece - Santa benzida, meu Deus. É gol! O meu santo não falha!
A vitória parcial de 1 a 0 motiva a peleja. O Bangu se lança ao ataque. O São Francisco recua. As divididas trincam mais fortes.
– Esqueceu o cartão em casa? Juiz filho de uma quenga.
Malandramente, as ameaças e empurrões são tolerados:
– Vamos jogar, senhor! - O árbitro controla o clima e encerra a etapa inicial.
- Muuugi, boi. Muuugi, boi. Vê quantos procriadores de gente? Muuugi, boi. Não há pasto que chegue. Segue sua prosa que a bola volta a rolar.
Roquinho está inquieto. O resultado mínimo o deixa aflito.
Toma lugar ao balcão e pede:
- Ebrinho, põe mais uma no capricho. - Segue o ritual, benze o santo. E, ao inchar as bochechas da boca antes de engolir, teve as pupilas saltadas diante do chute certeiro, no canto direito, desferido pelo baixinho Lula. Goool de empate, 1 a 1, vibra a torcida adversária.
- Não! Não! Não! Assim, não! Dá mais uma, Ebrinho, que o santo não entendeu! É pro lado de lá, meu santinho!
E tome Bangu! Forçando no ataque, buscando a virada. E tome a “marvada” goela abaixo, quando a bola em lançamento encontra o avante Ferreira, livre de marcação, frente ao goleiro são franciscano, em prenúncio fatal de gol:
- Meu santo, assim não. Ficou bêbado, é? Entorta o pé do homem, entorta o pé do homem!
Com efeito, o chute saiu com defeito e pra linha de fundo a chance de gol é desperdiçada
- Ô, meu Chico, fica são. Que susto. Não faz assim comigo não! Ô santo milagroso, tá no fim do jogo e o empate nada adianta. Marca um gol pra mim que ao invés de um, eu te dou três golinhos. Benta negociata! Rogério se antecipa à zaga desatenta e na saída do goleiro bate por cobertura. Arrepiante, hilariante, a bola em declive faz chuá na malha da gaiola! Roquinho dobra os joelhos e no peito inflado desfere socos. O grito ensandecido de gol fez saltar a artéria do pescoço e apontando o dedo indicador para o céu profere vibrantes palavras:
- Nosso cavalo não é manco, São Francisco porreta!
Rojões e abraços, o azul celeste celebra a classificação na vitória em 2 a 1. Sapiência, dívida com santo se paga! E essa foi paga com juros. A talagada escorre pela parede e causa indignação alheia:
- Que desperdício é esse? Tá cheio? Dá pra mim que eu tomo!
Mirando o nada, Roquinho engole o restante. Sozinho, caminha na algazarra formada ao longo do portão de saída. O seu rosto estampa um sorriso de quem sabe dos mistérios. Com cerveja, leva a certeza que o milagre do copo acabara de ser concebido.
- Muuugi, boi! Muuugi, boi...

segunda-feira, 17 de março de 2008

Poeta é preso em flagrante sorriso

Por Sérgio Vaz

Direto da Folha da Amargura on-line

Neste sábado pela manhã, a tropa de elite do mal-humor, fortemente armada, conseguiu prender o Poeta Augusto, 44, que estava sorrindo, sem autorização, deliberadamente em mais uma manhã terrivelmente ensolarada.
Acusado de Idiota, o poeta foi enquadrado na lei nº777, denominada "Tristeza não tem fim" e imediatamente levado ao Departamento das Caras Amarradas, no Centro das Mágoas, em São Paulo.
O Poeta Augusto tinha acabado de acordar e saiu para uma pequena caminhada, cheio de alegria, conforme testemunhas, e começou a sorrir para todos que estavam em sentido contrário, literalmente. Foi aí que foi abordado por uma viatura que fazia ronda no local.
Antes de fugir trocou olhares sem maldades com a tropa do mal-humor e saiu em disparada pela Rua Esperança. Depois da perseguição com troca de insultos, não por parte do poeta, ele foi preso em flagrante, ainda com duas ou três risadas que iria usar mais tarde.
Ao ser interrogado, Augusto não entregou quem lhe havia fornecido a alegria, e ainda revelou, de forma risonha e irônica, que ele era o dono da boca.
O mal-humor confirmou sua prisão temporária por 30 dias, e que no final da tarde o poeta será transferido para o Presídio de Solidão Máxima, enquanto aguarda o julgamento.
O Secretário Geral das Mesquinharias, Coronel José Bicudo Guerra, 98, informou em entrevista coletiva que o governo vai investir pesado na luta contra o bom-humor, e que dentro de dois ou três anos vai erradicar a alegria do país.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Sempre no meu coração



Por Marco Pezão


Cotidianamente fico ao fundo do balcão, na mercearia à moda antiga perto de casa. Ela resiste ao tempo. Conserva aparência de sua inauguração, creio que já se vai uns quarenta e tantos anos. Sob o tampo de fórmica parecendo granito, a geladeira não comportava a demanda de gelar a cerveja como gosta a clientela. E, então, por reclamação unânime, um freezer vertical foi colocado ao lado dos velhos recipientes contendo milho, feijão, farinha de mandioca grossa e fina...
A novidade, além dessa, é o dono. Um rapaz jovem, brasileiro, casado com uma moça bacana, que conseguiu obter confiança do proprietário. Um japonês desconfiado, cuja exigência ao arrendar o estabelecimento é que nada fosse mudado. No que ele tem razão. Pois quando precisamos de miudezas, uma lata de óleo, um papel higiênico, um sabonete, um envelope de carta, mortadela, uma lâmpada, do necessário quase tudo um pouco exposto na prateleira, onde tantas vezes fui servido. Enfim, o japonês ganhou a vida assim, e nós torcemos para que a mercearia assim continue.
Embora conheça a todos, sou daqueles que prefere ficar a um canto bebericando, pensando na vida. Pensando, porém, de ouvidos atentos. Um dia me chamaram de coruja, como quem diz: não fala nada, mas presta uma atenção... Fiquei na minha, não respondi. Melhor não dar trela. Escutar é sabedoria. Falar demais, dá-se língua à queimadura.
O segundo copo de cerveja pedia reposição enquanto o noticiário da tv comentava a renúncia de Fidel Castro, após 49 anos no comando de Cuba. No bar todos falavam ao mesmo tempo, mas pude ouvir o Alberto Careca, santista roxo, declarar: “Já está na hora de morrer. Só assim pros cubanos conhecerem o que é liberdade”.
Sentado no saco de batatas, o Bereta, um sujeito atarracado, gordo, de cara enorme, com idade acima de 60 anos, respirou fundo antes de se levantar e responder: “Que sabe você de liberdade, santista?”
- Liberdade, Bereta, é poder fazer o que a gente quiser. Vê se aquele povo faz churrasco, anda a vontade que nem nós, usa tênis de marca? Nem telefone os caras têm, quanto mais celular? Aquilo é um atraso. Ainda bem que agora acaba essa bosta de comunismo...
Da maneira que o Alberto fez a colocação, senti que a coisa ia feder.
- Eu acho que isso merece uma resposta. Você sabe que eu sou corinthiano e mais, sou comunista! E você, pra falar do Fidel, na minha presença, tem que lavar a boca. Fidel é único. Só ele teve coragem de enfrentar a corja dos americanos, esses imperialistas que se acham donos do mundo. Eles, sim, subtraíram a liberdade daquele povo. Impuseram um boicote covarde que já dura 46 anos, e os cubanos sobreviveram com dignidade. Vê a taxa de mortalidade infantil deles. Vê o grau de educação deles. Pra você ficar sabendo, santista, a medicina de Cuba está entre as primeiras do mundo. E tem mais, esse seu presidentezinho, esse tal de Da Silva, tem que ir comprar vacina fabricada lá!
Nesse teor, o Alberto Careca, de peitinho estufado, quis tomar a palavra, mas, Bareta, antecipou:
- Você é pelezista. Virou torcedor do Santos por causa do Pelé. E, pela sua idade, viu o negão em fim de carreira. Eu vi o Santos de Pagão, Del Vechio, Formiga. Nem Gilmar dos Santos Neves e Zito você viu jogar. Quer o quê? Não sabe nem fumar, quer falar do Fidel? Não vou admitir que você rale quem vive sempre no meu coração...
Acendeu o cigarro e soprou a fumaça pro ar. Agora, todas as atenções estavam voltadas para os dois. Alberto Careca ouviu:
- Há algo mais belo do que um homem, comandante, revolucionário, depois de tudo que viveu e fez, aos 81 anos, se declarar um soldado das palavras? Quantos livros você já leu, Careca? No máximo ouve essa imprensa corroída, mentirosa, a serviço do capitalismo. Que justifica invasões e massacres no Afeganistão, no Iraque, em qualquer parte do mundo, para impor uma democracia bandida. Mas em Cuba é diferente, Cuba é livre. É pátria ou morte!
Eufórico, Bareta, deu um tapa no balcão e conclamou:
- “A grandeza de Cuba se confunde com a dimensão de Fidel, que traçou uma linha a ser seguida. Os princípios não se negociam nem perante o mais gigantesco e agressivo adversário".
Com o braço em riste apontando a tv, Bareta limpou o pigarro e, com lágrimas nos olhos, relembrou a fala do seu grande líder:
- “É isso que eles não podem nos perdoar, que estejamos aqui, sob seus olhares, e que tenhamos feito uma revolução socialista debaixo dos narizes dos Estados Unidos. Esta é a revolução socialista e democrática dos humildes, com os humildes e para os humildes!"
Todos, sem exceção, levantaram seus copos e saudaram:
- Corinthians, Corinthians, Corinthians...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Você sabe onde anda o Coceira?

(3ª-feira, 19 de fevereiro, 22h40 - Largo do Campo Limpo)

O balconista encheu a caneca dágua pra jogar na vira-lata que fuçava o cestinho de lixo. O freguês se abespinhou: “Não tá vendo que ela tá amamentando?”, apontou para as tetas protuberantes do animal. Comprou uma salsicha empanada, a cadela comeu e lançou pro garçon um olhar do tipo: “Tá vendo aí, ô filhodaputa?”, e saiu abanando o rabo lá para as bandas do Jd Rosana.
Enquanto esperava minha porção de frango-com-quiabo, a conversa de outro homem com o benfeitor do bicho chegou até mim: “E neste livro, tem uma cachorra inteligente, entende tudo o que os donos falam, acho que ela até pensava feito gente, e o dono mais a mulher, com dois meninos, o papagaio e ela, a cachorra, ia embora debaixo do solzão danado.”
“Vidas Secas!”, exultei no meu canto do balcão. “Os economistas, os militares, os ministros da Justiça e os bandidos diplomados pelo TRE não conseguiram acabar com o País. O Brasil vai existir enquanto, em pé frente ao balcão, com seu copo de pinga com limão, um cidadão contar pro parceiro de boteco a história de Vidas Secas.”
“Vidas Secas”, ecoou o homem, como se ouvisse meu pensamento. “Do Graciliano Ramos”, continuou, “só não lembro o nome da cachorra.”
“É Baleia”, foi minha deixa; e a conversa sobre a fantástica personagem do escritor alagoano rendeu mais uns tantos goles. O protetor da cadela sem dono disse que até o fim da vida vai ajudar cães de rua, depois da ajuda que recebeu de um deles quando foi levar a filha no pronto-socorro. A mini-conferência-etílico-canina prometia outras rodadas, e resolvemos apresentar-nos. O homem que evocou Vidas Secas, a quem, por motivo óbvio, vou chamar de Fabiano, recusou o formalismo: “Não tem nada que falar o nome, não!”. Já Antonio Carlos (“aqui no boteco me chamam de Pingo”), morador do Jd Record, em Taboão da Serra, e eu, cumprimos o ritual. E seguiu-se esta magnifíca história de um cachorro que perambula pelas ruas da minha Taboão da Serra.
“Minha filha tava muito mal do estômago, e saí com ela pro Antena”, começou Antonio, referindo-se ao Pronto-Socorro Municipal de Taboão da Serra que, construído ao lado da antiga antena da Rádio Capital, será sempre chamado pelo povo pelo nome da ilustre vizinha.
Enquanto a garota era medicada, o pai foi ao bar, e na volta procurou onde sentar-se. “Eu vi aquele cachorrão deitado embaixo do banco, e pensei: ‘alí não dá pé!’, mas a canseira foi maior, e me aprumei num pedacinho da beirada”.
Perturbado pela incômoda companhia, o cachorro mandou um olhar malevolente para Antonio. “Meu!, achei que ele ia avançar, era vira-lata mas era grande, parecendo um capa-preta, cor de pastor-alemão, preto em cima e caramelo em baixo”, segue Pingo. Como toda pessoa que não consegue boa acolhida no serviço público, ele apelou para o suborno. “Comprei uma coxinha e joguei pra ele”. O cão deu uma fungada estremunhada no salgado; todavia, a lei da rua diz: “De graça, até...” As fortes mandíbulas herdadas da parte nobre da sua mistura de cão sem raça engoliram o petisco numa só bocada. Após um bocejo de espremer lágrimas, o cão espichou-se no seu canto catinguento. Bonito na sua miséria. Folgado, atento, cachorro. Mas, voltaram a infernizar-lhe as malditas passageiras. O cão toca violentamente o cavaquinho, escarafunchando o couro para livrar-se das parasitas.
Mais íntimo, o homem sacaneia: “Tá brava a coisa aí, hein? Vou te chamar de Coceira!”
Quando a criança foi liberada, Antonio viu que o cão o seguiu. Frente ao portão do serviço de resgate, o cachorrão vacilou. O homem achou que ele ia desistir. O que Antonio, ou Pingo, não sabia, é que perambulando por ali Coceira quase foi esmagado por uma ambulância espavorida. Mas agora as ambulâncias estavam dormindo, e ele seguiu sua marcha.
“A garoa caia forte, mas o cachorro não deixou de me seguir até chegar em casa”, lembra Pingo, que mora na rua Virgílio Bento de Queirós, a mais de um quilômetro do pronto-socorro.. Após aninhar a filha na quentura da cama, o homem foi fuçar o quintal, atrás de uma caixa de papelão. “O que é que há?”, disse a mulher. “O cachorro me acompanhou desde o pronto-socorro, tá o maior escurão na rua, chovendo, ele veio, parece até que sabe o que é uma escolta”.
A mulher achou que seu homem estava doido. Nem sombra do Coceira no quintal, nem na rua. “Se for verdade mesmo que você vai colocar isto na internet, pode ser que uma pessoa que conheça o cachorro me diga onde ele está”, espera Pingo.
Mas com tanta rua pra vadiar, tanta sarjeta pra se espojar, não sei não... “Mesmo que ele não queira ir morar lá em casa, eu quero ver como ele está, dar um rango pra ele”, se prontifica Antonio Pingo, vendedor de uma casa comercial na Estrada do Campo Limpo.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Íntimas e Bêbadas (midraxe hagadá)

Por Marco Pezão

Paula e Andressa cursaram juntas o colegial. Amizade intensa brotou em comunhão. Embora tenham escolhido faculdades diferentes, ambas prestaram o cursinho e optaram pela mesma universidade. Desde essa época tornaram-se cúmplices quanto aos direitos feminis e politicamente exerciam pensamentos esquerdistas, sempre almejando uma revolução; a tomada do poder em prol dos menos favorecidos.
Terminados os estudos, Paula formou-se em Sociologia e Andressa diplomou-se em Direito Criminal. Devido às dificuldades de emprego imediato resolveram lecionar, conseguindo algumas aulas em uma escola na zona leste da capital paulista.
Um dia, num barzinho de classe média, em Pinheiros, conheceram dois amigos também professores. O relacionamento entre os casais acalentou enorme paixão. Depois de certo tempo, noite de sábado, quando reunidos na mesma curtição, como normalmente faziam, o duplo pedido de casamento fez crescer ainda mais o sentimento mútuo.
O consentimento veio selado por beijos apaixonados, porém, uma ressalva ficou esclarecida. Elas exigiam que, ao menos uma vez por mês, teriam liberdade de encontrarem-se sozinhas, resguardando, assim, o direito de mulheres livres e independentes.
O dúplice matrimônio não demorou acontecer, sem pompas maiores. Após a viagem de lua de mel, o prosseguimento das atividades e o bom relacionamento constante davam mostras de planejamento familiar. Os filhos viriam quando a situação econômica estivesse mais sólida.
Passado um ano de feliz convivência e respeito, Paula e Andressa mantiveram o combinado. Com regularidade percorriam a cidade paulistana indo a bairros longínquos, sempre com atenção voltada ao desenvolvimento.
Em certas ocasiões, porém, o empobrecimento que tomou conta da periferia as deprimia. Então, em algum bar distante, desabafavam toda sorte de críticas à sociedade dominante e à política de globalização.
Mas, na maioria das vezes, bebiam pela alegria de viver, e pela felicidade encontrada cada qual em seu marido, que, até então, respeitavam o pacto adquirido. Não sem sentirem uma ponta de ciúmes, pois, claro, tratava-se de duas belas e fogosas mulheres.
Definitivamente, não havia sombra de leviandades nas atitudes. Elas empunhavam a bandeira feminista, sem deixar de serem femininas, e, com certeza, adoravam tomar casualmente um pileque. Um dia, a trajetória às levou para as bandas da Vila Formosa. Por prazer ou depressão, não se sabe, o fato é que as duas exageraram nas cervejas e caipirinhas. As horas passaram e ao se darem conta, os ponteiros do relógio marcavam meia-noite.
Andressa, se dizendo mais sóbria, assumiu o volante do carro. Dez minutos depois, a irresistível vontade de urinar às incomodou em desespero. Decidiram estacionar e aí perceberam que estavam à frente do maior cemitério de São Paulo.
Íntimas e bêbadas caminharam até um portão, ocasionalmente entreaberto. Na escuridão plena, ao lado de um túmulo, desaguaram. Andressa, ao terminar, usou a própria calcinha para se enxugar e limpar os respingos que atingiram as coxas.
Paula, de cócoras, demorou mais no ato e viu a amiga jogar fora a calcinha usada. Sorriu zonza olhando a própria lingerie, lembrando que o esposo adorava essa peça, presenteada por ele.
Então, sobre o mausoléu, pegou uma fita da coroa de flores e secou-se. Abraçadas e desajeitadas foram embora...
No desenrole aconteceu o seguinte. Cedo, por volta das 8 horas, os maridos, enlouquecidos, conversaram ao telefone:
- Alô, Agenor! Pô, acabei! Pô, acabou meu casamento! Andressa chegou em casa de madrugada, embriagada e sem calcinha!
- E eu Carlão, e eu Carlão? A Paula me aparece às duas horas da manhã, com uma faixa presa na bunda escrita assim: Jamais te esqueceremos. João, Paulo, Lucas e toda a turma da faculdade! Cara, não deu pra segurar, quebrei ela de porrada!

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Pra começar bem a semana, 3 "causos" de bar

Uma crônica sentimental de Ignácio de Loyola Brandão, e dois contos com o humor cortante de Aldir Blanc, abrem nosso expediente nesta penúltima semana útil de 2007:

O elegante Bar do Pedro, onde nos formamos

Ignácio de Loyola Brandão

Olhando para trás me lembro de uma coisa curiosa. Nunca vi meu pai em um bar. Nunca soube se por religião, princípio, ou porque achava tolice, perda de tempo, ouvir conversa de bêbado. No entanto, anos mais tarde, quando escrevi meu primeiro livro, Depois do Sol, que se passa inteiro à noite, nos bares, ele leu e me chamou para dizer: "Que vida mais interessante a dessa gente da noite. Quer dizer que os bares são mesmo divertidos?" Mas não lamentou, o tempo passado era tempo passado. De qualquer modo, também nunca disse uma palavra de reprimenda na primeira vez que tomei um porre homérico (expressão daquele tempo, dos anos 50) e cheguei em casa, ele abriu a porta, viu meu estado, ocasionado por um litro de gim, o suficiente para me matar, eu que não bebia. Timidamente, ele confessou: "Não sei o que fazer, não posso te ajudar a resolver, não sei, nunca tive uma ressaca." Quem teve ressaca de gim sabe o que é. Sabe que nunca mais vai colocar uma gota dessa bebida na boca. Quando assisti ao filme Uma Aventura na África (The African Queen), passei mal ao ver Humphrey Bogart emborcando litros e litros de gim pelo gargalo, sem sentir o mínimo efeito.
Se a mulher nunca esquece o primeiro sutiã, um homem nunca esquece o primeiro bar. O meu foi o do Pedro, em Araraquara. Que não era do Pedro, era do Hotel Municipal, o Pedro era um homem alto, corpulento, moreno, educadíssimo, o melhor garçom da cidade, sabia tratar o vagabundo e o grã-fino, ainda que o grã-fino seja mais difícil. O bar do Pedro era antigo, austero, elegante, tinha divisões de madeira, saletas onde as pessoas podiam obter privacidade fechando a porta, resquícios de uma época de fausto que a cidade teve com o café, a estrada de ferro e o comércio. Depois, veio a decadência e um delegado corneado mandou pregar as portas que ficaram definitivamente abertas para evitar sacanagens. Dizem que a mulher dele freqüentava a desoras (expressão da época) as saletas, mandando ver. Não existiam motéis naquele tempo e os hotéis legais não aceitavam casais sem certidão de casamento. Vejam que tempo vivemos! Pensar que suportamos e sobrevivemos.
No bar do Pedro minha turma se reuniu por anos e anos, sempre no mesmo canto, juntando duas mesas. A cidade era provinciana, sem divertimentos, sem graça, nos sentíamos sufocados. Os bares fechavam por volta de onze da noite, menos o do Pedro que ficava até o último freguês. Éramos os últimos e os mais abonados do grupo (cito os nomes em homenagem, porque eu vivia na dureza: Hugo Fortes, Gadelha, Padua e José Eduardo de Almeida) acrescentavam algum por fora para aumentar a gorjeta, compensar tanta paciência.
No bar do Pedro destinos foram traçados. Eu, que ia fazer cinema, acabei escritor. O Zé Celso, que não era o maior freqüentador, mas aparecia, sabia que o advogado acabaria no teatro. O Salinas Fortes tinha na cabeça que a filosofia era o seu mundo e acabou traduzindo Sartre. O Faruk fazia odontologia, mas sonhava ser cantor de boleros. Teve consultório e cantou em cabarés e bares noturnos. Marco Antonio Rocha – outro eventual – fez direito, mas foi para o jornalismo, para a economia e a política, para a televisão. Tudo pensado, conversado, discutido, debatido, gritado no bar do Pedro.
Bebíamos cerveja e chope, coisas baratas. Ainda vigorava aquela história de casco escuro, casco claro, este rejeitado. Marcas? Brahma e Antarctica, nada mais. Ou Malzbier, mas quem queria cerveja de mulher? Quando a angústia pegava, juntávamos doses de genebra. Uísque, nem pensar, era caro, caríssimo, só americano. Old Parr e White Horse eram as marcas cobiçadas, nunca tomadas. Rum era deixado para os bailinhos, misturado com Coca-Cola. Para comer havia salame fatiado, mortadela, azeitonas, tremoços, queijo prato em quadradinhos. Cinqüenta anos depois nada mudou. Quando o dinheiro pintava, vinha provolone à milanesa. Adorávamos gorgonzola, ótimo para preparar o paladar para a cerveja, porém era queijo importado, tínhamos de pegar leve. No fim do ano, Pedro, perfeito anfitrião, oferecia por conta dele rodadas de chope e alguns aperitivos.
O bar do Pedro não existe mais. Um dia, provando a modernidade da cidade, ele foi fechado e transformado em agência da Cometa, dali partiram os primeiros ônibus para São Paulo, fazendo concorrência aos trens. A cidade mudava. Vieram lanchonetes de fórmica, padronizadas, feias, sem graça, vendendo hamburguers, toda comida junkie. Mas o bar do Pedro merece uma placa em Araraquara, na esquina da Rua 3 com a Avenida Portugal, porque várias gerações ali beberam e se formaram na matéria, aprendendo a se comportar, a saber freqüentar, a principalmente respeitar essa honorável e necessária instituição.


Camões naufragou no Adônis

Aldir Blanc

Nas tardes de verão, o Adônis enfrentava calmarias parecidas com as que jogaram Cabral em nossas praias. Um dos donos, o Sr. Arnaldo, saboreava um chope na companhia do Sr. Reis, proprietário da farmácia próxima, que também ficava a ver navios no mar da Zona Norte. Ambos eram portugueses e trocavam, igual figura carimbada, saudades da Terrinha. O Sr. Arnaldo, calmo e bonachão, ria-se muito, ao passo que o Sr. Reis emocionava-se violentamente com as conquistas ultramarinas, com as aventuras e feitos em África, às vezes até ferindo-se com os palitos do queijinho, como se flechas ou lanças o tivessem atingido traiçoeiramente.
Num desses amenos entardeceres cariocas, entre o estridular das cigarras e o bamboleio das suadas morenas regressando ao lar, o Sr. Reis deu um súbito e vigoroso soco na mesa.
- E na literatura, nós, os portugueses, temos o maior de todos! O Maior de Todos!
O Sr. José, garçom do estabelecimento, também lusitano, para profunda contrariedade do Sr. Arnaldo, estranhou:
- Tás a falar de quem, ó pá?
O Sr. Reis tornou-se arroxeado, sugerindo apoplexia a bombordo. Preocupado com a saúde do amigo e sabendo que o que mais dói na alma dos Vates é o esquecimento, o Sr. Arnaldo teve uma idéia que julgou salvadora. Improvisou com uma das mãos um tapa-olho, enquanto com a vista restante piscava para o garçom.
O Sr. José, de início, não compreendeu:
- É cisco? Pisca três vezes e reza uma Ave-Maria pra Santa Luzia.
A essa altura, os instrumentos de bordo prenunciavam tempestade da grossa. O Sr. Reis, sufocado, parecia um crepúsculo nos trópicos, tingido todo de violetas, púrpuras e lilases. Mas graças à Virgem de Fátima, o Sr. José abriu um vasto sorriso:
- Ah, entendi! Tapa-olho! É o Rum Montila!
O Sr. Reis caiu desmaiado.
Diante dos sonoros palavrões do Sr. Arnaldo, o Aureliano, natural de Feira de Santana, que guardava a caixa-registradora, balançou a cabeça:
- Seu Zé acertou de pura cagada, né? Com ele é assim: chuta e vai no alvo! Nem Vavá...


Ajuste Fiscal

Aldir Blanc

Baiano, nosso ministro sem pasta pra sacanagem, deu o alerta:
- Frozô vai aparecer com material novo no pedaço.
Frozô, grande vascaíno e boêmio, cultivava o curioso hábito de exibir mulheres monumentais no buteco onde biritávamos, talvez pelo prazer sádico de nos deixar com água na boca. No mesmo buteco, fazia ponto o Come Quieto, um inimigo mortal do Frozô. Jamais entenderemos porque as mulheres dão pra certos caras!
Come Quieto tocava violão e cantava sambas com bastante sutileza, mas era baixinho, feio e sonso. Quando uma das mulheres do Frozô pedia “Toca alguma coisa pra gente”, Come Quieto era todo modéstia:
- Mais tarde... mais tarde... aqui só tem cobra criada...
Frozô também odiava o fato de Come Quieto ter vários Palitos de Ouro, não se sabe se ganhos honestamente em campeonatos de purrinha ou mandados fazer de vigarice.
E um dia, Frozô apareceu com uma criatura da gente se atirar aos pés dela pra beijar as sandálias douradas. O inusitado é que Come Quieto, escroto como já dissemos, não a olhou uma única vez. Na hora de ir pra outro programa, Frozô contornou a mesa e tacou a mão no focinho do Come Quieto com tanta força que o cara ficou desacordado. Diante da revolta geral, Frozô, com a tetéia recostada em seu amplo colo, justificou o corretivo:
- Pato muito quieto em lagoa, tá a fim do cu da gansa.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Estrangeirismo

Carlos Silva e Sandra Regina

Outro dia me convidaram para irmos ao MC DONALD'S comermos CHEES BURGER.
O salão estava lotado e fizemos os pedidos através de um tal de DRIVE THRU. Os colegas percebendo a minha irritação disseram: se tu tiver com pressa, eles têm um sistema de DELIVERY, maravilhoso. Desacostumado com este linguajar chamei os cabas:
- Vâmo s’imbóra.
Seguimos pela avenida HENRIQUE SCHAUMANN, onde pude observar um OUT DOOR escrito: CHINA IN BOX, e uma seta indicativa PARKING.Nós não paramos por lá não.
Seguimos mais adiante, avistamos um restaurante bonito e luxuoso, e na porta de entrada uma luz neon piscando escrita OPEN.
Quando olhei pro chão, pude ver estampado um capacho com a bandeira americana me convidando: WELLCOME. Ao adentrarmos naquele recinto eu pude observar na sua decoração, e nas paredes estavam escrito assim: ICE CAKE, CHEES EGG, CHEES BURGER e FAST FOOD.
Eu pensei comigo: “FOOD na Bahia a gente USA numa outra situação...”
Do meu lado esquerdo uma garota tomava uma cerveja numa lata vermelha e azul cuja marca era BUDWISER. O camarada que lhe acompanhava tomava sua LONG NECK HEINIKENN. Do me lado direito uma loira bonita peituda falava pro cabra com vóz sensual assim: “Eu trabalho numa RELAX FOR MAN...”
E ele pergunta prá ela: “Fica próximo do Motel MY FLOWERS?”. E ela lhe responde:
“Não BABY, fica junto ao NIGHT CLUB WONDERFUL PENETRATION!”
A fome aumentava juntamente com a raiva, e eu não sabia se pedia um HOT DOG, ou um simples cachorro quente.
Emputecido mais uma vez com aquela situação, chamei os caboclos:
- Vâmo s’imbóra.
Na saída o manobrista nos recebe e nos entrega as chaves do nosso possante veiculo – um fusca 68 fabricado em Volta Redonda na época do presidente JUSCELINO KUBITSCHEK.
Ele olha prá mim e me diz: “THANKYOU SIR AND HAVE A GOOD NIGHT.” E eu usando toda minha simplicidade e educação que aprendi no sertão da Bahia, olhei prá ele e lhe disse:
- VÁ PRÁ PUTA QUE LHE PARIU.


(Este texto é a introdução da música do mesmo nome, gravada no CD “Retratando”.)
Ouça na íntegra em:
http://bandasdegaragem.com.br/carlossilvacantador

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Cantando o amanhecer

Marco Pezão

Na sexta feira, minha mulher, florista, fazia os arranjos costumeiros. Cortava o cabo das rosas em diagonal para se hidratarem melhor. A garagem transformada em floricultura abriga longo cotidiano, tempo fecundo de nossa relação. Não tanto economicamente, e, sim, por respeito e amor pelas atitudes adquiridas no convívio.
Vizinho de mesma calçada, a Cimecan, distribuidora de cimento, é relação de amizade sempre próspera. Luiz, um dos sócios, chega ao nosso comércio tendo sob o braço um jovem galo:
- Dona Otília, um amigo, caminhoneiro, trouxe do interior e me deu de presente. Levei pra casa, mas, a senhora sabe, a dona Onça, quando viu o bicho aqui, ficou fula. Ela exigiu que eu o jogasse na rua. Então, estou trazendo pra ver se a senhora quer fazer proveito.
Não precisou falar duas vezes. Com o sorriso costumeiro no rosto, abraçou o galeto, agradeceu, e o levou pro quartinho que há no fundo de casa. Pensando, claro, como boa cozinheira que é, em fazer uma panelada pro almoço domingueiro.
Quando cheguei à noite me fez saber a novidade. O penoso vermelho estava num canto, de crista empinada, receoso, talvez, quanto ao seu destino já traçado.
Na manhã de sábado acordei cedo e coava o café, como de costume. Fui tomado de surpresa, porém, ao ouvir o galo cantar, assim que o clarão do dia começou a surgir. O bairro é totalmente urbanizado e há muitos anos que ninguém cria galinhas ou tenha um galo no quintal.
O trabalho me leva longe de casa todos os finais de semana. E o domingo já estendia a malha da tarde quando cheguei para o almoço. Olhei a água fervente à espera do macarrão. E, noutra panela, o molho recheado de bracholas. Minha mulher estava sentada junto à mesa e antes que dissesse palavra, perguntei: “O prato não é o galo?”
Apontando a cachorra que ao meu lado abanava o rabo, bradou:
- Você não sabe o que a Mila aprontou? Fui ver o galo e deixei a porta um pouco aberta. Essa sem vergonha passou entre minhas pernas e avançou no coitado. O galo tomou um susto e voou sobre minha cabeça. Ela correndo atrás, e ele com medo fugiu pro telhado. De lá foi pra casa do “seo” Severino, depois pro telhado do “seo” Nelson, passou pela casa do sapateiro e se empoleirou no muro da Belíssima.
E arrematou, ameaçando a cadela: “Fora daqui, Mila! Se você entrar na cozinha, eu vou te dar uma surra, sua enxerida!”
Subi na laje e não dava para avistar o fugitivo. Otília continuou: “Fui lá no ”seo” Juan, o muro é muito alto. Pus milho no chão, agora é esperar ele descer na hora que der fome. Coitado do Pavaroti, vai passar a noite no relento”.
- Pavaroti?
- É, apelidei o galo de Pavaroti. Ele canta tão bem.
A Belíssima, eu explico, é um night club. Casa de muitas mulheres, drinques, coisa e tal. Fiz a piada. O galo Pavaroti, de bobo não tem nada. Ele foi se empoleirar no terreiro onde estão quem? Ora, as “galinhas”...
Otília não riu e franzindo a testa, sapecou: “Só falta você dizer que vai caçar o galo, hoje à noite, na Belíssima?”
Veio a manhã de segunda feira, 9 de julho, e o cantar do Pavaroti indicava que ele não havia ido parar em panela alheia. Fizemos uma busca frente ao local, e o imperioso continuava sobre o muro.
Dona Nilza, uma das vizinhas, comentou: “Vocês ouviram? Hoje acordei com um galo cantando. Me lembrei do sítio de papai”.
- É o Pavaroti, respondia Otília a todos que notaram a presença do raro cantador...
Passado umas horas, decidi com meu afilhado:
- Vamos a caça, senão adeus galo.
Entramos no quintal da Belíssima, graças ao faxineiro que lá trabalha. Explicamos a situação e encontramos o Pavaroti empoleirado no galho da enorme mangueira.
Ágil e armado de um cabo de vassoura, o menino Feliz escalou uma pequena laje e ganhou altura para cutucar o penoso arredio, que bateu asas para o meio da estrada do Campo Limpo.
Entre os carros que passavam armamos uma correria só. E fomos atrás dele estrada acima e abaixo, sob risos daqueles que viam a insólita perseguição.
E se juntaram a nós, o moço da auto-escola, a Otília, dona Nilza, gente que circulava, até a Celeste, que faz jogo do bicho, já tinha o palpite certeiro: “Vai dar galo na cabeça”.
Por fim, cansado, o Pavaroti se enfiou num pequeno jardim repleto de coroas de cristo. Cercado, tratei de tentar pegar a presa. Mas, com cuidado, para não me ferir nos espinhos e numa possível bicada.
Ai! Que força demonstrou o galo. Num arremedo voltou a voar e pousou na entrada da nossa floricultura. Ficamos todos em silêncio para não assustá-lo de novo. Fervorosa, Otília pediu: “São Salonguinho, faz ele entrar que eu dou três pulinhos”.
Não sei se foi o santo ou as plantas como possível refúgio. Ele entrou e abaixamos a porta para não sermos surpreendidos. Otília tratou de pegá-lo e rapidamente cortou suas asas, enquanto eu amarrava uma fita aos seus pés.
Ufa! E o galo Pavaroti tornou-se atração na vizinhança, naquele feriado. Alguns já o viam fervendo num caldo com batatas.
- Vamos matá-lo, agora? Como? Destroncar o pescoço? Mas, ele canta tão bonitinho!
Em face do ocorrido, rimos, louvado sentimento ditou a sentença:
- De tanto lutar pela liberdade, o Pavaroti merece viver.
E assim, na redondeza, o amanhecer ganhou mais vida na voz do intrépido cantor!
Cocorocó!