sexta-feira, 24 de abril de 2009

A nossa volta por cima

Eu e Vanzolini. Foto: Aloisio Alves – abr/2000

David da Silva

Em abril do ano 2000 cheguei pro Aloísio Nogueira Alves e disparei: “Marca uma data com o Paulo Vanzolini. Ele vai fazer 76 anos dia 25. Vamos fazer uma reportagem com ele”.

“Cê é doido? Vou achar o cara onde?” reagiu Aloisio, que cuidou (e cuida) da produção das minhas melhores entrevistas. E, pra não perdeu o costume, soltou uma de suas piadinhas: “O homem é uma sumidade!”, trocadilho tonto sobre os hábitos reclusos do sambista-cientista.

 

A primeira data marcada por Vanzolini foi cancelada quando estávamos no meio do caminho para encontrá-lo. Saímos eufóricos de Taboão da Serra. Já no final da Avenida Elizeu de Almeida o celular do Aloisio tocou. "Doutor Paulo desmarcou a entrevista. Eu aviso vocês outra data", foi a mensagem medonha. Bateu o desespero. "O homem nunca mais vai ligar pra gente. Acabou", lamentamos feito Jeremias urbanos. Afogamos a decepção no Bar do Tio Carlinhos.

Oito dias depois Regina, secretária de Vanzolini, remarcou a entrevista.

Estava marcada para 17h30, mas às 16h já estávamos em frente ao Museu de Zoologia, onde Vanzolini trabalhava. O prédio-monumento impõe respeito. Construído na década de 1890. Ali Vanzolini começou a trabalhar em 1946. Dirigiu aquele órgão de 1962 a 1993. Mais ainda: foi o próprio Vanzolini quem organizou o museu, aumentou sua coleção de répteis de 1.200 para mais de 230 mil exemplares. E montou a biblioteca do lugar com o dinheiro ganho com o samba “Volta por Cima”.

Mesmo depois de aposentado, Vanzolini ia ao Museu de Zoologia das 9h às 19h – e assinava o ponto todos os dias!

Aloisio Alves e Paulo Vanzolini. Foto: David da Silva - abr/2000
Uma para abrir os caminhos

Ficamos sinceramente intimidados diante do prédio centenário. “E se este homem desmarcar de novo?”, pensávamos – mas nenhum tinha coragem de dizer ao outro.
Com resolução típica nordestina, Aloisio decretou: "Vamos tomar uma pinga ali na encruzilhada. Pra gente se acalmar e abrir os nossos caminhos".
Na esquina da Nazaré com a Rua Moreira e Costa, o imponente botecão. O balconista trouxe os dois copos americanos com Velho Barreiro até a borda. Estranhamos tanta generosidade. Notamos que o copa era nordestino. E no caixa uma coreana. Estava explicado!

"Viemos para a entrevista com doutor Paulo Vanzolini", nos anunciamos às 17h10. Vocês deviam ver com que cara de misericórdia os porteiros nos olharam. “Quem marcou a entrevista pra vocês?”. “De que jornal vocês são?”. “Tem certeza que foi marcado mesmo?” disparavam os vigias numa sequencia angustiante de dúvidas e desestímulos. Toda a manguaça que tomamos, evaporou. Aloisio foi lá pra fora, olhos rubros rasos d'água, balbuciando alguma prece, alguma praga.

O vigia com interfone na mão me olhava com piedosa ironia: “A secretária dele já foi embora...”

Puxamos papo. “Trabalha muito tempo aqui, conterrâneo?” “Tão reformando tudo aqui, hein?” “Vai ficar bom né!”. Nestas conversinhas bestas de cerca-lourenço quebramos o gelo dos porteiros. Daí veio a porrada mais medonha: “Doutor Vanzolini ainda tá lá em cima, mas não quer atender o interfone...”. O outro vigia cavou mais fundo o buraco do tormento: “Semana passada o Alberto Gaspar, da TV Globo, ficou aqui embaixo esperando. Quando deu 11 horas da noite, fomos ver por que o doutor não mandava o rapaz subir. Vimos que ele tinha ido embora pelos fundos do prédio, e deixou o repórter aqui feito besta...”
Outro vigia que havia simpatizado conosco teve a ideia: "Vocês vêm comigo no elevador. Mas fiquem escondidos no corredor enquanto eu digo a ele que vocês chegaram. Quando ele mandar vocês subirem, vocês já vão estar lá em cima, entendeu? Se não, ele pode desistir do encontro enquanto vocês esperam o elevador".

Nos amoitamos entre uns andaimes da obra de reforma, até que o vigia voltou com um sorriso cúmplice no canto da boca.

“Doutor Paulo, boa tarde”. Em pé na porta do salão de quase 50 metros quadrados, pé-direito com uns 6m de altura, cercado de vitrais temáticos da fauna brasileira. Nenhum convite pra gente entrar ou permanecer feito estátuas no batente constrangedor.
Paulo Vanzolini em uma mesa em formato de "U". Entupida de livros. Das paredes colossais não se via um milímetro. Livros, livros, livros.
De cabeça curvada o cientista-sambista remexia papeis e fazia cálculos na maquininha portátil.
"Vocês estão 10 minutos adiantados", resmungou Vanzolini sem levantar os olhos da mesa.

Pontualmente às 17h30, Paulo Vanzolini deixou a caneta de lado, afastou papéis e apagou a calculadora.
"Pois não!". O tom de voz já era outro. Saia de cena o cientista severo – quem nos acolhia agora era o sambista.

Paulistano convicto, Vanzolini fez café e nos serviu. Repassamos detalhes da sua longa ronda entre a Ciência e a boemia. “O samba “Ronda” eu fiz quando prestava serviço militar. Eu era da Polícia do Exército. Fazia a ronda na região do baixo meretrício, Avenida São João, Campos Elísios, Bom Retiro... Cansei de ver mulher chegar na porta do boteco, espichar o olho lá pra dentro, procurando alguém, e ir embora. Esta imagem ficou na minha cabeça e daí inventei a história”.
Este e outros casos de canções publicamos no Jornal do Fasprev (Fundo de Previdência dos Funcionários da Prefeitura de Taboão da Serra).

Na hora de irmos embora, o grande brinde por tanto esforço:
"Pra ir a Taboão vocês passam por Pinheiros, certo? Então, me dá uma carona até a casa da minha irmã."
Tivemos a honra de transportar o gênio até uma rua próxima à ponte Eusébio Matoso, onde mora uma de suas irmãs. No meio do caminho, paramos na casa de Vanzolini, no Cambuci, pegar o presente da mana aniversariante.
"Qualquer dia vou levar vocês num boteco que eu gosto muito, pra gente tomar cachaça e continuar a entrevista", disse Vanzolini.
Foto: Silvio Tanaka
No trajeto todo, Vanzolini cantarolando com Aloísio "Vendedor de Caranguejo", do compositor baiano Gordurinha ("Caranguejo uçá / Olha o gordo guaiamun / Quem quiser comprar eu vendo / Cada corda de dez, eu dou mais um...").

Muitos anos Aloísio se recusou a vender o carro no qual havia conduzido Paulo Vanzolini.
"Como é que eu posso vender esse carro onde andou o Paulo Emílio Vanzolini? E o hômi até cantou comigo aí dentro!". Era esta a cantilena que Aloísio me dizia toda vez que o velho automóvel Gol dava problema mecânico e eu dizia “vende esta porra”.

Enquanto levávamos Vanzolini ao seu destino, eu vinha murmurando uma súplica para que aquele caminho não se acabasse. Para que se alongasse nossa permanência junto ao mestre dos sambas e das serpentes. Foi neste trajeto que Vanzolini nos expôs algumas das suas opiniões pessoais sobre o então presidente da República ("é um sujeito muito vaidoso, a vaidade é um veneno").
Quando passamos pelo Instituto Biológico, Vanzolini lembrou seus tempos de criança. “Eu andava de bicicleta por aqui tudo. Até que um dia estiquei as pedaladas e fui até o Instituto Butantã. Aquele passeio mudou a minha vida".

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