Inexperientes no controle dos copos, exageramos nas doses. De repente, dos olhos de Ovídio as lágrimas rolaram copiosamente. Dentro do botequim, apenas eu, meu parceiro e o dono, um velho português escondido na escuridão do fundo do salão, entre garrafas empoeiradas e antigas fotografias de parentes deixados na sua Lisboa, Velha Cidade.
Assustados, o português e eu logo perguntamos ao meu companheiro de bar qual o problema. “Eu vi a Rosa agora mesmo dentro deste copo de cerveja”, soluçou Ovídio. De maneira estranha, como se empunhasse um microfone, ele começou a falar: “Ao som desta melodia, entra no ar o programa Discos Velhos Guardados com Poeira e Chiado”. Deu uma breve pausa, enxugou com a própria camisa algumas lágrimas e contou: “Eu tinha um programa no serviço de alto-falante na cidade onde eu morava. E a personagem principal daquilo tudo era a Rosa, minha namorada, e eu dedicava a ela lindas páginas musicais ao vê-la sentada no banco da praça”.
Fiz esta introdução porque a saudade me visitou hoje de forma angustiante. A lembrança da frase de Ovídio me fez pegar um antigo disco em cuja capa se lê: Asa Branca (clique na foto da capa para ampliar) e em meio ao chiado e à poeira do velho Long Play, me ponho a pensar em Zé Gonzaga.
Amanhã, 12 de abril, completará sete anos de sua morte. Irmão de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, Zé Gonzaga nasceu em Exu (PE) aos 15 de janeiro de 1921. José Januário Gonzaga do Nascimento morreu com 81 anos no Rio de Janeiro. Segundo seu próprio irmão mais famoso, Zé Gonzaga foi um dos maiores sanfoneiros do Brasil em todos os tempos. Sua “puxada de fole” até hoje não tem comparação.
Numa certa manhã de 1940, na Pensão da Dona Tereza, uma portuguesa, na Rua São Frederico, nº. 14, no Morro do São Carlos, Rio de Janeiro, a dona da pensão bate em uma das portas: “Ó, ‘seo’ Luiz, acorda! Cá está um gajo a dizer que é teu irmão.” Luiz Gonzaga, que tocava até alta madrugada nos puteiros do Mangue, acorda invocado: “Oxente, dona Tereza! Que diabo é isso?”. Na porta da pensão despeja na fuça do irmão: “O que é que voce veio fazer aqui? Eu tô pior que voces!” Zé Gonzaga contou que já tinha ido a São Paulo procurar outros dois irmãos fugidos da seca; não encontrando, veio ao Rio por ordem da própria mãe.
Luiz comprou um colchão pro irmão de 19 anos. Zé virou carregador da sanfona do irmão, e passava o pires para recolher o dinheiro após cada música naquela “zona perigosa” da Cidade Maravilhosa.
Logo depois Luiz comprou uma sanfona pra Zé Gonzaga, e o rapaz cresceu por seu próprio talento. Em 1952, Assis Chateaubriand organizou uma excursão de artistas brasileiros para tocar no Castelo Coberville, na França. Como Luiz Gonzaga estava brigado com o magnata das comunicações, foi substituído por Zé. O sucesso do rapaz foi tanto, que ele ficou até o final daquele ano na capital francesa, chegando a tocar no Cassino Deauville. Enciumado, Luiz teve um sério arranca-rabo com o irmão.
Mas grandes sucessos do Rei do Baião saíram da sanfona de Zé Gonzaga, que também era hábil letrista. Exemplo disto foi Viva o Rei, composição de 1951 em parceria com Zé Amâncio. A música conta o grave acidente de carro do qual Luiz escapou por milagre: “Luiz Gonzaga não morreu / Nem a sanfona dele desapareceu / Seu automóvel na virada se quebrou / Seu zabumba se amassou / Mas o Gonzaga não morreu”. Ambos gravaram, mas o sucesso foi maior na voz do próprio homenageado. Outro enorme êxito do Gonzagão foi O Cheiro da Carolina, de 1956, também de Zé Gonzaga, desta vez com Amorim Roxo.
Moreno de olhos azuis iguais aos da mãe, Zé Gonzaga era conhecido por todos como Rei da Alegria. Era um grande conquistador. Casou-se uma só vez, quando moço; depois de separado, teve uma coleção de mulheres sem fixar-se com nenhuma. Se apresentava com roupas exóticas: calça e camisa de cowboy americano, com direito a cartucheira e revólver, e chapéu de jagunço de Lampião.
Com tudo isto, Zé Gonzaga sempre foi injustiçado pela mídia. Eu sempre fui seu fã. Na minha longínqua Messejana, onde nasci no Ceará, nos anos 1960 eu escutava seu programa na Rádio Mayrink Veiga, aos domingos à noite.
Mais recentemente, enquanto ouvia o programa São Paulo, Capital Nordeste, de Assis Ângelo, na ocasião do aniversário de morte de Luiz Gonzaga, enviei uma pergunta ao radialista sobre onde andava Zé Gonzaga. Para minha surpresa, Assis Ângelo ligou na mesma hora para a casa de Zé Gonzaga no Rio. E ele disse que vinha sempre a São Paulo, e freqüentava muito o Patativa, centro de lazer e cultura nordestina no bairro de Santo Amaro.
No final de sua vida, Zé Gonzaga se dedicou ao espiritismo. Em janeiro de 2002 os problemas cardíacos se manifestaram. Ele se recusava a tomar remédios, dizendo que sua hora tinha chegado. Na manhã de 12 de abril de 2002, seu advogado o colocou no carro para levá-lo ao médico. Morreu a caminho do Hospital Salgado Filho. Foi enterrado às 10h da manhã seguinte, no Cemitério de Duque de Caxias, na baixada fluminense onde viveu seus últimos anos de ostracismo.
Certa vez sonhei que estava na casa de Zé Gonzaga; a sala estava muito escura, a sanfona sobre a mesa, e falei que queria fazer uma música com ele...
Eu acordei. Ele não. Seus teclados, seus 120 baixos silenciaram para sempre.
A música que mais resume o que ia pela alma deste incomparável músico injustiçado, é Estrada da Vida:
Andei
pela Estrada da Vida
Na esperança de um dia encontrar um amor
Fiquei
no meio da encruzilhada
A estrada fechada
E o meu sonho se acabou.
Hoje
sei que estou condenado
A viver desprezado,
Sem ninguém me querer
Ah Deus, o que é que eu hei de fazer?
Descanse em paz, velho e grande sanfoneiro. As noites silenciosas, as poucas matas que ainda restam, e principalmente as estrelas dos céus do Brasil, escutam os seus sons. Voce está no meu baú de saudades.
Ouça Zé Gonzaga na canção mais famosa de seu irmão famoso – Asa Branca (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)
Aqui, Zé Gonzaga num belo instrumental de sua própria autoria: Naquela Noite, parceria com Pedro Maranguape.
Aqui, Zé Gonzaga num belo instrumental de sua própria autoria: Naquela Noite, parceria com Pedro Maranguape.
Um comentário:
Nem imagino porque algumas pessoas acessaram hoje (domingo, 15.jan.2012) essa postagem feita há quase três anos.
Fato é que é belo texto do meu colega de copo e de cruz Aloisio, a quem tenho como irmão.
O sacana do Aloisio desapareceu de vista. Cancelou o e-mail, não atende mais o celular, pelo fone fixo manda sempre dizer que não está... só frequenta botecos onde não encosto o cotovelo... e por aí vai.
Já tô acostumado com as doiduras dele. Quando ele quiser reatar as conversas moles nossas cheias de amizade rica e rígida, vou dizer a êle: "Tô aqui, não!".
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