Naquela 5ª-feira dia 23 de janeiro de 1969, quatro homens trabalhavam nos fundos de um sítio em Itapecerica da Serra. Estavam pintando um caminhão. Contado assim, o caso não teria nada de mais. Só que aqueles quatro cavalheiros eram guerrilheiros da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). E a tinta que aplicavam no caminhão era da cor do Exército.
De repente, os homens se tocaram que um moleque da vizinhança estava xeretando por ali. Ao invés de ganhar a confiança do pivete, deram-lhe um tremendo espôrro. O pirralho teve a reação esperada de um fedelho (“vô contá tudo pro meu pai”). Eram anos de chumbo e de delações. O caipira ficou cabreiro com aqueles caras pintando caminhão no meio do mato. Dedurou o fato para a Polícia. Fazia só 41 dias que o regime militar havia decretado o AI-5. E o bicho pegou...
Os quatro foram levados para o quartel da Polícia do Exército (PE), no Ibirapuera, e torturados por militares e por policiais civis. O que mais apanhava era Pedro Lobo de Oliveira, ex-sargento da Força Pública (hoje Polícia Militar): “Primeiro me bateram muito no pau-de-arara. Depois ficaram injetando salmoura pelo meu nariz”.
O desespero e a crueldade dos torturadores era para arrancar rapidamente dos prisioneiros por quê estavam pintando o caminhão com as cores do Exército. Os mastins da ditadura farejaram coisa grande por trás daquilo.
Enlouquecido com a resistência dos rebeldes, o major Jayme Henrique Antunes Lameira, comandante da 2ª Companhia da PE, teve um surto: “Vou ocupar Itapecerica da Serra com minha tropa”. Seus superiores lhe negaram autorização. Injuriado, Lameira procurou ajuda de um colega de patente, o major Inocêncio Fabrício de Matos Beltrão, que emprestou a ele os blindados que comandava no 2º Regimento de Reconhecimento Mecanizado. Bem articulado na sua ira contra a guerrilha, Lameira ainda descolou o apoio de dois helicópteros.
Pela terra e pelo ar
Quem vê Itapecerica da Serra meio que pacata até hoje, pode imaginar o reboliço por ali com a chegada dos comandados do major Lameira na 6ª-feira 24 de janeiro de 1969. Soldados se embrenharam pelo município. Ruas foram sulcadas pelos blindados. E lá no alto o rugido vigilante dos helicópteros.
Mas, foi a Guarda Civil quem achou armamento militar dentro de um Fusca. Aquele carrinho abandonado também guardava um rude golpe contra a luta armada da esquerda. Os meganhas encontraram no veículo um recibo com um nome e um endereço. Quando leu aquilo, o major Lameira matutou: “O nome desse cara não me é estranho...”
Já eram 2h30 da madrugada do sábado 25 de janeiro de 1969 quando Lameira acordou seus superiores na 2ª Divisão de Exército. Com a indolência típica de um funcionário público, um general empurrou o assunto com a barriga: “Na 2ª-feira a gente resolve tudo isto”.
O nome e o endereço escritos no recibo eram de Carlos Lamarca, capitão do 4º Regimento de Infantaria, em Osasco. Já que o general não queria trabalhar no final de semana, Lamarca aproveitou a brecha para dar no pé.
Poucas horas depois de ser caguetado por Lameira, o capitão Lamarca fugiu do quartel de Quitauna na sua Kombi com um sargento, um cabo e um soldado. Sumiram no oco da noite com 63 fuzis, três submetralhadoras e uma pistola calibre 45.
Só não arrastaram mais armas por causa daquele “probleminha” com o caminhão em Itapecerica...
3 comentários:
David,
Parabéns pela publicação do texto. Escrevi um livro sobre Zequinha, companheiro de Lamarca na guerrilha.
Qual a fonte da informação? Gostei dos detalhes, que não tinha, sobre a história do caminhão pintado por Lamarca.
Abraços, do Márcio Amêndola
Caro Márcio, a fonte são depoimentos dos próprios membros da VPR colhidos em publicações várias. Gostaria de ler teu livro sobre o Zequinha Barreto. Tem jeito?
parabéns davi matéria muito boa,muito rica em detalhes.
quem vê aquela cidade tranqüila nem imagina a importância que teve no cenário político do brasil.
Postar um comentário