quinta-feira, 24 de maio de 2012

“Deixei as lamentações no passado”

Haroldo (de óculos) com familiares

Haroldo Borges Barcellos

Fui traído pela audácia impensada da juventude.
Com 21 anos de idade decidi andar na moto que pedi emprestada a um amigo, em troca do meu carro. Eu não tinha habilitação para moto nem carro. Também não andava de moto com frequência.
Saí sem luvas nem capacete.
Surpresas da vida.
Sofri um grave acidente. Fui levado em viatura policial até o hospital.
Aquele ato imprudente foi minha sentença de morte.
Na noite do dia 20 de janeiro de 1990, minha vida chegou ao fim...

Na manhã de 19 de abril de 1990, contrariando todas as previsões médicas, no quarto hospitalar minha vida recomeçou.
Acordei do coma profundo. Agora eu tinha o estado físico de uma pessoa de 21 anos, mas sem nenhum dos movimentos do corpo.
Cabeça ainda raspada devido a algum ponto cirúrgico, algumas escaras. Várias cicatrizes e hematomas espalhados pelo corpo. Estava muito magro.
Perdi a memória, perdi minha identidade. Me esqueci do passado, de toda a história da minha vida. 
Minha luta pela existência começou.
Tinha dificuldade de engolir minha própria saliva. Minha mãe, ou algum familiar, alimentava-me, levando os alimentos até a minha boca.
Não conseguia controlar as minhas necessidades fisiológicas. Um quarto da casa dos meus pais foi modificado para dar-me mais conforto.
Com o passar dos dias ganhei uma cama hospitalar, uma cadeira para banho e uma cadeira de rodas alugada pelos meus pais, provisoriamente.
Eu passava várias horas do dia deitado. No final da tarde recebia tratamento de fisioterapia na minha própria casa. Ainda tinha dificuldade de engolir minha saliva.
Fui encaminhado para uma clinica de reabilitação, onde recebia um tratamento diário de mais ou menos seis horas, às vezes oito horas.
Lentamente aprendi a me alimentar sozinho com a ajuda de uma colher, e a expressar minha vontade em palavras.
Recuperei os movimentos dos braços. Já fazia minha higiene pessoal sem auxílio de outros.
Meu pai me presenteou como uma cadeira de rodas definitiva.
Segundo as previsões mais animadoras, eu nunca recuperaria os movimentos das minhas pernas.
Durante uma passagem de Ano Novo, assistindo à Corrida de São Silvestre pela televisão, disse para as pessoas próximas:
- Eu vou participar da Corrida de São Silvestre.
Elas disseram-me:
-Quando esse dia chegar, iremos-nos com você!

Minha família levou-me para uma viagem ao Rio de Janeiro.
Lá encontrei meus primos hospedados na casa de um parente para assistir a um show de rock. No passado eu tinha assistido outro show ao lado deles. Mas, eu já não podia fazer parte dos passeios do grupo.
Durante um giro de carro pelas ruas do Rio, um primo me disse:
- Vamos deixar você aqui na rua, para voltar sozinho para casa.
Não entendi. Acreditei que me deixariam mesmo ali, desacompanhado. Fiquei com medo de me perder. Todos dentro do carro riram da minha ingenuidade diante da brincadeira.

Em outra ocasião, num passeio por um shopping em São Paulo, ouvi uma pessoa comentar baixinho com outra:
- Coitadinho... Um rapaz tão bonito na cadeira de rodas.
Meu irmão e minha mãe levaram-me até o local onde eu trabalhava, para buscar documentos pessoais. Uma antiga colega de serviço disse:
- Aqui ninguém quer te ver desse jeito. Você precisa fazer alguma coisa da sua vida!

Voltando certa noite de um casamento na cidade de Embu das Artes, um cachorro atravessou a pista. O carro onde eu estava derrapou e capotou. Eu não tinha condições de avaliar o mundo à minha volta. Entendi a gravidade do acidente.
No dia seguinte, quando meu pai contou o fato a amigos, um deles comentou:
- Você deve ter a chave do céu!
Todos riam.

Esses são alguns exemplos que me estimularam, e ainda estimulam, a continuar enfrentando e superando vários desafios.
Recuperei alguns movimentos do corpo. Aprendi a empurrar a minha própria cadeira de rodas. Voltei a movimentar as pernas depois de vários meses usando um aparelho ortopédico preso a elas.
Apoiado num andador, voltei a trocar passos.
Minha família encontrou um grande ortopedista que expôs meu quadro durante um congresso em São Paulo. Ele optou em operar-me. Fui submetido a duas cirurgias ortopédicas. Durante uma delas, sofri parada cardiorrespiratória.
Os procedimentos cirúrgicos ajudaram-me. Fui deixando de usar cadeira de rodas, mas ainda a utilizo com certa frequencia.

Hoje em dia já realizo alguns sonhos de vida. Ando de Metrô e aprendi a embarcar em ônibus. Durante este aprendizado sofri quedas no Metrô e no ônibus. Mas minha capacidade de circular pelas ruas me livrou de ficar restrito em casa.
Prestei vestibular, e cursei uma faculdade por seis meses.
Casei, e acompanhado da minha esposa viajei para uma cidade praiana. Assisti ao show da Banda U2 no estádio do Morumbi.
Realizei uma palestra em um hipermercado da Zona Norte.
Em 2005 participei da Corrida de São Silvestre. Fiz todo o percurso em 04h53min.
Agora me sinto feliz. Tenho outros valores na minha vida.
Enfrento as consequências do meu ato impensado com a moto na juventude. Sofro e convivo com dores de cabeça constantes. Tenho limitações físicas e de movimentos nos membros do corpo. Uso muletas para andar nas ruas
Mas deixei as lamentações do passado. Tenho planos para o meu futuro.

5 comentários:

Luciana Zapparoli disse...

Haroldo, meu primo, vc sempre foi meu modelo de superação, Parabéns por ser como é...amo vc

Ana disse...

Haroldo tantas historias ,tantas lutas ,tantas noites sem durmi ,coração aperto mas sempre com muita fé muita fé q vc ia superar tdo cada obstaculo...te amo meu irmão.....

Luciana disse...

A propósito o comentário acima foi meu, Luciana Zapparoli...

Leila Dias/COPIR disse...

QUEIDO HAROLDO, ACHO QUE NÃO O CONHEÇO PESSOALMENTE, MAS PASSEI A CONHECER UM HOMEM DE GARRA E COM MUITA ESPERANÇAS NA VIDA. VOCÊ É UM GUERREIRO, FELICIDADES E MUITA, MUITA SORTE NESTA EXISTÊNCIA

fenolio disse...

Caro Haroldo,
fico feliz com sua garra e valorização de seu viver.Acompanhei de perto seu "calvário" como amigo de sua família e convivência na querida "Rui Barbosa". Seu saudoso e inesquecível pai fazia de tudo para mitigar suas dificuldades. Vejo, com alegria, que valeu a pena toda a luta dele e de sua família. Vá em frente com essa sua coragem exemplar para todos nós. Abraço do Fenólio