segunda-feira, 11 de agosto de 2014

A gaúcha gauche chamada Anjo

Marie Ange Bordas. Foto: René Cabrales - 2011 
Dá impressão que o sobrenome dela é nome artístico de afirmação ideológica. Afinal, todo o trabalho da fotógrafa Marie Ange Bordas é voltado para pessoas que vivem à margem da sociedade, nas beiras do mundo.
Mas o nome de família vem de Bordeaux, onde seu avô negociava uvas no sudoeste da França. Gaúcha de Porto Alegre onde nasceu em 1970 e de onde foi embora aos 16 anos, Marie Ange, apesar do nomezinho angelical, nunca foi de beatitudes. Aos 25 anos de idade já tinha morado na Austrália, na França, Porto Alegre, São Paulo, Nova York... É como se ela quando ainda menina também tivesse ouvido o mesmo anjo torto que soprou no ouvido de Drummond: “Vai, Carlos, ser gauche na vida”.
Logo mais, em novembro, será lançado em livro o resultado do trabalho de Marie Ange Bordas com crianças da tribo kaxinawá, no Acre, e da comunidade Mondongo, no Pará. No projeto Tecendo Saberes, a criança indígena aprende a ler e a escrever a partir da sua própria realidade. Uma criança da cidade pode entender “A”, de amor, “B”, de bola, “C” de casa, etc.  Mas lá, no coração da Amazônia de selvas e rios, casa é oca. Melhor ensiná-las com “A” de ashu e
Marie Ange em seu trabalho como educadora em comunidades nativas. Foto: Andrés Velez
atsa (tipos de árvores), “B” de bote, “C” de carapanã (espécie de mosquito) e assim vai. Você que conhece o método Paulo Freire deve estar lendo isto com meneios de satisfação na cabeça.
As próprias crianças recolheram lendas, receitas de comidas e brincadeiras a serem reunidas em almanaques sobre o lugar onde vivem. “Já o alfabeto é um capítulo feito por crianças para crianças. Elas é que criam novo jeito de aprender”, explica Marie Ange.
A atividade prodigiosa de Marie no Norte do Brasil é dose tripla do que ela já realizou com êxito aqui no Sudeste e também no Nordeste. Em fevereiro de 2012 ela lançou o Manual da Criança Caiçara. “A ideia nasceu do meu convívio com uma comunidade de Iguape, litoral sul de São Paulo. Foram dois anos de labuta no Ponto de Cultura Caiçara da Barra do Ribeira”, conta a artista e educadora. O projeto recebeu o Prêmio Interações Estéticas da Funarte/Minc.
Antes disto, lançou em 2010 Histórias da Cazumbinha, realizado com a comunidade quilombola do Rio das Rãs, no sertão da Bahia.

Lugar nenhum
Teu encanto pelo o que esta mulher fez e faz em comunidades invisíveis brasileiras vai virar adoração agora.
Leitora na infância de As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, e de Júlio Cortázar na adolescência, Marie defende que não pode faltar na estante de uma criança livros que a façam viajar e abram caminhos para outros mundos e culturas.
No ano 2000 ela começou a retratar a realidade em campos de exilados na África (do Sul, Etiópia e Quênia), e entre refugiados do que sobrou no Sri Lanka quando um tsunami destroçou a Ásia em 2004.
Cena do vídeo (Des)Apegos, de Marie Ange Bordas - Áustria, 2002
Jornalista, Marie largou a profissão. “Como repórter eu só posso contar o que vejo. Já como artista eu posso interferir para mudar o que vejo”, filosofa com a convicção de Mestra em imagem e som pela ECA/USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo) e se autodefine como “jornalista por formação, artista por quereres e educadora por convicção”. “Eu acredito na criação visual (fotografia/desenho) como ferramenta poderosa de construção de identidades individuais e comunitárias”, garante. A artista se coloca como uma ponte entre as diferentes condições culturais e de vida. Ela que viaja por vontade própria, se angustia pelas pessoas que são forçadas a viver de um canto para outro, sem ter onde nem com o que se identificar.
Um dos trabalhos de Marie Ange Bordas que mais me marcaram foi o de outubro de 2002 com a comunidade kurda na periferia de Paris. Há mais de 100 mil kurdos na capital francesa, vindos da Turquia. Acantonam-se na maioria pelo trecho do 10º arrondissement (distrito). Marie ficou três semanas por lá. Nas imagens que capturou mesclou poemas do turco Nazim Hikmet (mártir da repressão). O resultado foi impresso em toalhas de mesa de papel para restaurantes, e em cartazes lambe-lambes colados pelas ruas.

Desde 2007 Marie Ange tem ficado um pouco mais no Brasil. Mas pensa que ela deu ao seu corpo ágil o merecido descanso e conforto que pode ter aqui na São Paulo onde mora hoje?
Qual o que...
Tá lá, no meio do mato. Ensinando crianças índias a contar a história dos seus povos.
Marie Ange com o músico Arrigo Barnabé. Foto: Júlio de Paula - 2011

3 comentários:

Anônimo disse...

Minha amiga Marie Ange merece todos os elogios, pelo seu emprenho, dedicação, desapego, amor incondicional pelos outros e talento. Um beijo bem grande da amiga do coração, Mariana

Marcelo Xuxu Oliveira da Silva disse...

Olhos não se compram, sensibilidade também não. Mas os dois não produzem nada de artisticamente relevante, menos ainda socialmente relevante, se não houver também uma determinação continuada, incansável. Marie junta isso tudo, e com graça.

Marie Ange disse...

Obrigada David pelas generosas palavras.
só queria dizer que não acho que ensino nada, apenas fomento, provoco
(talvez inspire…) as pessoas para enxergarem com olhos mais atentos sua
(rica) realidade. Como artista busco criar algumas pontes para que mundos se cruzem, pois não
acredito em uma sociedade com “pessoas à margem”. Uma pequena contribuição na utopia de um mundo sem bordas, fronteiras e desigualdades! grande abraço!