quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Gaspar Z’África: do rap de rua para as estantes dos livros

Gaspar Z'África. Foto: Sílvio Novelli
O rosto do rapper Gaspar me lembra a feição de Fabiano (pele avermelhada, olhos claros, barba e cabelos ruivos) personagem de Graciliano Ramos no romance Vidas Secas. Nascido na zona sul paulistana, na região limite entre o bairro Campo Limpo e o município de Taboão da Serra, Gaspar gosta da comparação nordestina: “Sou filho de potiguar, comedor de camarão”, diz referindo-se ao pai natural de São Miguel, no Rio Grande do Norte.
Também zela pela africanidade que não traz na aparência: “Sou um quilombola branco de olhos claros”, diz. Em 1995 ele criou com colegas de infância o grupo Z’África Brasil (o Z em apóstrofo é homenagem a Zumbi dos Palmares) um dos maiores expoentes do rap nacional.
Perguntado seu nome de batismo e idade atual, o rapper rapa fora: “Não falo meu nome verdadeiro nem minha idade pra ninguém. Só digo que sou Gaspar Z’África, e minha identidade artística é datada de 29 de fevereiro de 1985”. Mas o Google “cagueta” para o repórter que ele nasceu Wagner de Oliveira, e está com 36 anos.
Autógrafo do livro para bar & lanches taboão
Foto: David da Silva - 14.jul.2014
Gaspar acaba de lançar seu primeiro livro e o primeiro CD-solo de sua carreira. O apelido remete ao tom de sua pele. “Por ser muito branquelo, os moleques da escola me colocavam todo tipo de apelido relacionado à minha cor”, conta. A brancura extrema lhe valeu virar "xará" do “fantasminha camarada” dos desenhos animados.

Lançado pela editora Nova Espiral, O Brasil é um Quilombo é uma continuidade da trincheira que Gaspar e seus companheiros do Z’África abriram 19 anos atrás. “Todo meu trabalho, inclusive este livro, traz uma visão realista da periferia das grandes cidades brasileiras. Nossos quilombos urbanos”, explica o autor. Não à toa, o primeiro álbum do grupo chamou-se Antigamente Quilombos, hoje Periferia, gravado em 2002.
O grande diferencial do Z’África Brasil em relação aos seus congêneres é a brasilidade. “A gente não fica só na africanidade, nem estamos presos ao universo da periferia. Somos guerreiros cósmicos”, autodefine-se. “Queremos explorar todos os gostos do povo. Do rap ao repente, temos liberdade de usar o canto falado. Somos como os cantadores de embolada, mas usamos a caixa e o bumbo da nossa forma, misturando rap paulistano com samba, maracatu e forró”, afirma Gaspar, sem deixar de dar o crédito ao rapper Zulu Z’África, colega fundador do grupo: “Foi do Zulu a sacada de abrasileirar o rap. Por intermédio dele nós encontramos a nossa identidade musical”.
Essa qualidade a mais valeu ao Z’África uma turnê pela Itália nas regiões de Verona e Bolonha, com cerca de 30 shows pelo norte daquele país em 1999. Também já estiveram por três vezes na França - em 2002, 2003 e 2007, onde foi gravado o terceiro CD da banda.
Com Alessandro Buzo, da TV Globo
Foto: Marilda Borges
A malícia e a sabedoria das ruas são o guia para o artista se virar em qualquer canto do planeta: “Se você me jogar na África, vou usar o lado africano que o Brasil me deu. Se você me jogar na Europa, vou usar meu lado europeu”, ginga Gaspar.
O respeito do artista pelas raízes afro-nordestinas é patente já no título do disco de estreia individual: Rapsicordélico. Na faixa de trabalho do CD, lançado em 24 de agosto no Auditório Ibirapuera, está sampleada uma fala do legendário Patativa do Assaré, poeta popular e improvisador do sertão do Ceará, com um refrão que Gaspar foi buscar com o mestre de jongo Totonho de Tamandaré, na cidade de Guaratinguetá, interior de São Paulo.
Não foi a primeira vez de Gaspar no palco do Ibirapuera. Esteve lá em novembro de 2013 apresentando-se com a Orquestra Brasileira do Auditório na comemoração do centenário do poeta Vinícius de Moraes, para quem escreveu:
“Neste rap tem samba que samba no sapatinho
Vai de Cartola, Candeia, a Zeca Pagodinho
Nelson Cavaquinho ao som do tamborim
Arlindo Cruz em Noite Ilustrada com Tom Jobim
De onde vem este samba quebrando as condutas?
É o samba do Pixinguinha e Os Oito Batutas
Seja quem for, pode chapar o DOPS e sua tropa
O Simonal com a Seleção vai ser o artilheiro da Copa
Dos Carnavais, dos sambas geniais
Adoniram Barbosa, Toquinho e Vinícius de Moraes
Encontro de gerações igual nunca se viu
Esta é uma homenagem ao branco mais preto do Brasil”
Com infância e juventude passadas nas duas margens do córrego Pirajuçara, ora na área dos jardins Mitsutani e Maria Sampaio na capital paulista, ora no Jardim Leme em Taboão da Serra, Gaspar Z’África tinha mesmo de ser poeta. Cursou o ensino fundamental em uma escola com nome de Fagundes Varella. E concluiu o ensino médio no colégio a poucos metros de onde germinou, anos depois, o Sarau do Binho.
Na contra-capa do livro, o poeta Sérgio Vaz define Gaspar como “um poeta simples, de palavras afiadas, doces e sinceras, ora estrala como um chicote, ora nos adoça os olhos”. Para o poeta Vaz, seu colega Gaspar “não nos oferece apenas um livro, mas tudo aquilo que não cabe no seu coração”.

Como todo moleque nascido e criado na periferia, Gaspar (à semelhança de um samba do João Nogueira) se agarrou na bola e pensou ser um dia um craque da pelota ao se tornar rapaz. “Comecei na escolinha de futebol da Portuguesinha dos Oliveiras, em Taboão da Serra. Primeiro jogava no ataque, depois descobri que era zagueiro. Joguei por sete anos no Pequeninos do Jockey. Na sequencia joguei por seis meses na Portuguesa de Desportos. Fiz testes em tudo que é clube que você possa imaginar. Até meus 13, 14, 15 anos sonhava ser jogador profissional”.
Mas a família teve de se mudar para o Ceará, e o futebol foi uma vontade que ficou pra trás.
No nordeste o garoto entrou de cabeça nos ritmos do lugar. “Quando voltei do Ceará para São Paulo, eu disse pra mim mesmo: 'já era o futebol. Vou fazer essa parada aí de música' ”, relata.

Lançamento do CD no Auditório Ibirapuera | Reprodução
O código genético musical de Gaspar fermentou no fole da sanfona de seu pai Zé Altimar. “Meu pai foi sanfoneiro famoso aqui na região. Pode perguntar pros antigos que todo mundo conhece ele”, historia o filho que hoje tem orgulho de ser igual seu pai.
“Eu pegava os forrós do Trio Nordestino e acelerava (canta um trecho do baião Chinelo de Rosinha, do compositor Bosquinho de Alcantil: ‘É o chinelo, é o chinelo dela / A sola do chinelo dela que é danado pra chiar’). Minha primeira formação musical foi essa e o samba de raiz, Bezerra da Silva, Fundo de Quintal”.
O rap entrou pra valer em sua vida por volta de 1992 a 1993, quando assistiu pela primeira vez um show do Racionais MCs na antiga chácara onde hoje está o CEU Campo Limpo. “Mas eu já vinha prestando atenção n’Os Metralhas. Foi deles o primeiro rap que decorei (canta: “Já tive uma vida diferente da sua / já tive mordomia, mas hoje durmo nas ruas...”).  Daí pensei: 'Porra, eu sei fazer essa parada!' ”.
Foto: Conexão Cultural SP

Gaspar pede licença para atender a uns garotos que vieram convidá-lo para uma apresentação na escola deles. Geralmente nas fotos Gaspar, a exemplo de outros rappers, aparece de semblante fechado, marrento. Mas pessoalmente é muito cordial, bem atencioso mesmo com as pessoas. Traço típico da solidariedade dos habitantes periféricos. Que a despeito de tantas mazelas, não descuidam de uma certa afetividade regida pela necessidade de se protegerem mutuamente.
Como Gaspar diz na página 56 do seu livro:
“De solidão nóis num sofre”.
"Acreditar num sonho é poder cantar e conhecer cada canto da terra, e ver os griots, os pajés, ouvir suas histórias contadas de gerações passadas de pai pra filho" (Gaspar)

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