quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O balde gelado e o “rei” da Imprensa no Brasil

Cena 01 – Jornalista brasileiro sofre um acidente vascular cerebral (AVC), e fica com o corpo totalmente paralisado. Mas a mente continua ativa. Ele se comunica com o mundo exterior pelo método desenvolvido por sua enfermeira, para a qual “dita” textos, piscando os olhos quando ela lhe aponta letras do alfabeto em uma placa.

Cena 02 – Jornalista francês sofre um AVC, e permanece consciente embora não possa mover os músculos do corpo. Uma enfermeira copia para o papel a biografia do enfermo, pelo método desenvolvido pela fonoaudióloga do paciente, que pisca toda vez que lhe indicam determinadas letras do alfabeto em uma placa.

A cena um aconteceu em fevereiro de 1960, no Rio de Janeiro. A de número dois foi no nordeste da França em dezembro de 1995. Lembrei destes dois fatos e sua extraordinária coincidência quando rolou a onda do “balde gelado”, para estimular doações à cura da síndrome degenerativa de células nervosas. Na qual os doentes também ficam enterrados vivos dentro de seus próprios corpos.
Porém deixei pra publicar somente hoje, por ser Dia Nacional da Imprensa Brasileira. Mudaram a data em 1999 para 1º de junho. Mas a maioria de nós mantém o costume anterior. E para mim, setembro diz mais perto ao coração. É o meu mês.
Não posso afirmar que a fonoaudióloga francesa Henriette Durand tenha plagiado em 1995 o sistema criado pela enfermeira pernambucana Emilia Araúna 35 anos antes. Afinal, coincidências acontecem. Todavia, tá aí uma semelhança digna de ser desvendada.
Enfermeira Claude copia a biografia 
que Jean “escreveu” piscando o olho

O francês Jean-Dominique Bauby era famoso editor-chefe da revista de modas Elle. Já tinha passagens brilhantes pelas revistas Quotidien de Paris e Paris Match. No dia 8 de dezembro de 1995 o AVC pôs fim à sua carreira. Estava com 43 anos. A fono Henriette notou que embora o jornalista não conseguisse falar nem mexer braços ou pernas, movia a pálpebra esquerda. Montou numa placa o alfabeto. Quando apontava a letra certa, Jean piscava. A enfermeira Claude Mendibil ficou encarregada de copiar letra por letra as palavras com a qual o jornalista contou sua história de vida. O livro ficou pronto em 1997. Jean morreu 10 dias depois do lançamento. O assunto virou filme célebre em 2007 – com o mesmo título do livro: O Escafandro e a Borboleta. Premiado em Cannes e indicado ao Oscar.
Aqui no Brasil, só no ano que vem ficará pronto o filme Chatô – O Rei do Brasil, dirigido por Guilherme Fontes. Que luta pelo projeto desde 1995, mesmo ano em que começou a saga de Jean-Dominique como sepultado vivo debaixo da própria pele.

O paraibano Assis Chateaubriand, apelidado Chatô, foi o homem mais poderoso do jornalismo brasileiro. Dono da rede Diários Associados – jornais, revistas e emissoras de rádio e TV. Aos 78 anos um AVC jogou Chatô em cima de uma cama, completamente mudo e imóvel.
Emilia escreveu seu livro estimulada pelo 
cineasta Walter Lima Jr. que 
a entrevistou em 1996 para um documentário
O telefone tocou para a enfermeira Emilia Belchior Araúna na noite de 28 de fevereiro de 1960, em pleno plantão durante o Carnaval. Ela ficaria responsável pela higiene pessoal do paciente Chateubriand, por trocar o soro que o alimentava, e mudar a posição do corpo a cada três horas para evitar as escaras.
Emilia, então com 22 anos, vinda um ano antes de Caruaru (PE) tinha deixado na terra natal os pais e nove irmãos – seis homens e três mulheres. 
Notou que o doente, apesar de absolutamente inválido, lhe dirigia um olhar expressivo. 
Ela resolveu tentar um contato.
“O senhor está me ouvindo? Entende o que estou dizendo? Se estiver entendendo, feche os dois olhos”. Chatô apertou os olhos com força. Ela pegou duas folhas de papel. Escreveu em uma a letra A; na outra, a B. O doente deu mostras que sabia o que Emilia pretendia. A moça saiu em disparada para o almoxarifado da clínica. Voltou com cartolinas, e grafou nelas o abecedário, colando-as com esparadrapo na parede em frente à cama do doente. “O senhor vai piscar toda vez que eu colocar a régua em cima da letra que o senhor quer”.
Como jornalista hábil no manejo das palavras, Chatô recorreu logo a uma figura de linguagem na primeira manifestação do que lhe ia na mente aprisionada pelo corpo inerte:
- Já entendi tudo. O edifício pegou fogo, só sobrou a biblioteca.

Emilia hoje com 76 anos, autografando o 
livro que publicou em 2009
Emilia tinha experiência em lidar com gente em dificuldade de expressão. Ela alfabetizou sozinha a irmã caçula, Idalina, surda-muda de nascença.

Sete meses depois de estar aos cuidados de Emilia, em setembro de 1960 Chatô informou a ela: “Vou voltar a escrever meus textos”. E “ditou” com os olhos um artigo de 928 palavras.

Tempos depois foi desenvolvida uma máquina de escrever elétrica especial, onde Chatô “milhografava” seus editoriais. Ele já conseguia uma débil movimentação com o braço sustentado por roldanas. Mas a sua fala não passava de grunhidos desesperados, que somente Emilia conseguia decifrar. E assim foi em todos os dias, até a sua morte em 1968, aos 86 anos.

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