sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

As peripécias do poeta Binho quando moço

Robinson Padial, o poeta Binho. Foto: David da Silva 
Fiz esta entrevista com o poeta Binho em 19 de novembro de 2014, dias antes de ele completar 50 anos. Publico agora porque o Sarau que leva seu nome retoma as atividades na próxima 2ª-feira, 9 de fevereiro.
Nosso bate-papo se deu no Bar Fecha-Nunca do Campo Limpo. Bairro onde Binho nasceu e onde se mantém firmemente ancorado, independentemente de suas perambulações pela poesia e pelo mundo.

“Meu nome é Robinson de Oliveira Padial. Nasci em novembro de 1964. Meu pai chamava-se Joaquim Antonio Padial, o popular Mestiço. Ele nasceu em São José do Rio Preto, interior de São Paulo. Minha mãe chamava-se Hilda Vasconcelos de Oliveira Padial, nascida em Tambaú (SP), terra do padre Donizete. Não sei com que idade eles saíram dos lugares onde nasceram para vir morar em São Paulo.

“Meu pai conheceu minha mãe num trem da Sorocabana, parece. Acho que marcaram uma ponta, e...”.
“Meu pai morreu faz 15 anos. Faleceu em 1999 com 70 anos. Teve um câncer, e depois morreu devido a problemas do pulmão. Ele fumava muito. Minha mãe também fumava. Os dois sempre fumaram. Ela morreu em 1994 com 68 anos, talvez devido ao cigarro, provavelmente”.

“Minha família morava na Rua Antonio Antunes [Vila Pirajuçara, Campo Limpo]. Minha mãe foi me dar à luz em Taboão da Serra. Eu só nasci lá, pois a gente morou sempre aqui no Campo Limpo”.

Mestiço, pai do Binho
“Quando eu nasci, meu pai trabalhava com corretagem de imóveis. Não sei se a imobiliária era dele. Depois ele abriu a própria imobiliária, chamada “Irmãos Mestiço”, junto com o irmão dele, Antonio”.
“Antes de eu nascer, minha mãe chegou a trabalhar em auxiliar de enfermagem no Hospital das Clínicas. Mas depois só se dedicou a cuidar da casa e dos filhos”.
“Somos em cinco irmãos, uma escadinha. Diane, Lola, depois vem o João [havia falecido meses antes da entrevista], eu, e o Rodolfo, que quase ninguém daqui da região conhece; mora lá pra São Bernardo [região do ABC da Grande São Paulo], vem pouco aqui”.

“Na minha época de moleque, o Campo Limpo estava muito no começo. Tinha os rios aí pra trás, tinha as  lagoas. Aquela mata que você tá vendo ali ainda [aponta para os lados de Taboão da Serra] ali pra trás tinha as lagoas, naquelas quebradas. Eu saia daqui, perto da atual delegacia [de Polícia] onde eu morava, e a gente ia lá pro Parque Pinheiros. Tudo escondido da mãe. Sumia no mundo com a molecada do bairro. Diziam: ‘Tem uma lagoa lá”. A gente ia. A gente atravessava o córrego [Pirajuçara] e ia. Na época que não chovia, dava pra atravessar o córrego com água pela canela. O córrego era fedido, já. Não como é hoje, mas já fedia, água turva. Nas lagoas era perigoso pra caramba. Chegou a morrer gente lá. Aí a gente ficou com medo, parou de ir.”
Foto dedicada por Mestiço, pai do Binho, aos funcionários da
primeira linha de ônibus que ligou o Campo Limpo com Pinheiros
.
“A escola onde aprendi a escrever ficava nos fundos de onde é hoje o Terminal Campo Limpo de ônibus. Entrei na escola com seis anos e um pouquinho. A escola era um barraquinho de madeira. Minha primeira professora foi a dona Marli Rea. A gente fazia o primeiro ano lá, e aí no segundo ano você subia para o prédio da escola Kennedy. A escolinha de madeira também chamava Kennedy, mas a gente começava lá e vinha aqui pra cima, perto da igreja católica.
No segundo ano minha professora foi Heloisa. Não esqueço dela porque uma vez eu estava com a mão no nariz, e ela me recriminou, fez uma cara muito feia, e eu moleque tirando caquinha; nunca esqueço disso”.

“A minha infância foi toda sempre muito concentrada nessa área aqui. Onde tinha o campinho... eu gostava muito de jogar bola. Então, eu amava tanto jogar bola, que meu mundo foi aquele. Eu não saia muito do foco. Eu era livre ali, né? Era muito espaço. O campinho ficava onde hoje é o estacionamento das viaturas da Delegacia de Polícia do Campo Limpo.

“Quando moleque a gente não ficava vacilando na rua. Porque tinha muito medo do Juizado de Menores. Carteira de trabalho assinada também era importante pra gente. Com 14 anos você tinha que ter carteira assinada. Se te pegassem na rua com 14 anos sem carteira assinada, você já ia ter problemas”.

“Meu primeiro contato com o Poder do Estado, minha noção de existência de autoridades, foi por volta dos meus 11 a 12 anos, quando asfaltou a Rua Jacaratinga, e ainda nem tinha a delegacia lá. A gente estava brincando de carrinho de rolemã, e veio uns polícias encher o saco. Daí eu lembro que meu irmão por parte de pai, o Geraldão, quando os policiais mandaram a gente parar de brincar em cima do asfalto novo, meu irmão Geraldo falou: “Chama o Jesus lá que encavalou a marcha”. Ele falava muito na gíria. “Encavalou a marcha” era o jeito de dizer que tinha surgido complicação. Esse meu irmão por parte de pai era maloqueirão de tudo. Frequentava muito o campo de futebol do time Martinica. Ele foi nascido e criado lá pelos lados do bairro da Lapa [zona oeste da capital São Paulo]. O apelido dele era Morcegão. Era filho do meu pai com a dona Ditinha. Daí quando a polícia embaçou com nossos carrinhos de rolemã, o Geraldão mandou a gente chamar o Jesus, que era meu outro irmão. Filho do meu pai também com a Ditinha. Os policiais não mexeram com a gente; só mandaram parar com os carrinhos de rolemã. Mas quiseram pegar o Geraldão. Só que ele era muito forte, começou sacolejar os caras. Aí chegou mais gente, a turma do ‘deixa pra lá’.
Anúncio do pai de Binho, reproduzido

no livro Bebel que a Cidade Comeu,

de Ignácio de Loyola Brandão

“Meu pai teve além de nós cinco, filhos com várias mulheres. De casamentos antes da minha mãe, e depois de casado. Ele era muito mulherengo. Tinha amantes pra todo lado. Não era rico, mas tinha uma grana, trabalhava sempre, se virava bem, e o dinheiro facilitava os romances. Com a dona Ditinha meu pai teve três filhos: o Geraldão, o Jesus, e outro. Minha mãe adotou eles todos. Minha mãe era demais. Ela adotou as crianças não sei se porque ela gostava muito do meu pai, ou se foi por dó da molecada.
Quando eu era menino, talvez 14 anos, não sei que ano foi, chegou em casa um outro irmão meu, o Gino. Ficou o dia inteiro rondando a nossa casa, sem falar nada com ninguém. Ele era filho do meu pai com uma mulher lá do bairro Jabaquara. Quando meu pai chegou de tardezinha, foi colocar o carro Dodge Dart na garagem (ou talvez fosse Dodge Charger, não sei. Só sei que era carrão), daí o rapaz chegou nele: “Eu sou o Gino. Sou seu filho”. Assim, na lata, desse jeito. Meu pai tomou um susto, né, meu? O rapaz já tava na faixa dos seus 19 anos, por aí. Hoje esse Gino trabalha na Amazônia, gerente na área de marketing da Rede Globo.

“Meu pai teve a primeira farmácia aqui do Campo Limpo. Ele entendia bastante desse negócio de remédios, medir pressão, aplicava injeção em todo mundo. Tinha bastante prática nisso”.
Da minha época de menino não me lembro dessa farmácia. Quando comecei a tomar noção do mundo, meu pai já tinha montado a imobiliária. Inclusive tem um livro do Ignácio de Loyola Brandão, o romance Bebel que a Cidade Comeu, onde tem a reprodução de uma propaganda da imobiliária do meu pai. [No seu romance de estreia, Ignácio de Loyola Brandão usou a técnica de entremear a ficção com recortes de anúncios de jornais]. A imobiliária do meu pai ficava exatamente onde hoje é a Casas Bahia da Estrada do Campo Limpo [número 4.176].  Depois ele montou uma carpintaria, uma fábrica de portas e janelas.

“Em 1969 meu pai construiu uma casa na Rua Cajangá, perto de onde hoje fica a Delegacia de Polícia do Campo Limpo. Eu não lembro se a casa onde a gente morava antes dessa, se era própria ou aluguel.
No poema ‘Campo Limpo Taboão’ escrevo que quando nasci eu tinha seis anos. Na verdade eu tinha cinco. Não sei por que escrevi que tinha seis. Acho que errei a conta. Eu nasci em 1964. E a minha irmã Diane ganhou uma vitrolinha quando ela fez aniversário em 1969. Vitrola Philips azulzinha. Essa vitrolinha é a coisa mais antiga que eu lembro na minha vida. Daí pra trás eu não lembro mais nada. Então, é como se eu tivesse nascido na época que ela ganhou a vitrolinha. Não lembro que tipo de música se ouvia naquela vitrola.
A minha irmã Diane tem influência sobre alguns gostos meus. Como ela despontou primeiro para as coisas da cultura, por ter nascido primeiro, tinha essa influência. Ela foi estudar Psicologia na faculdade Osec que hoje é Unisa, no bairro Santo Amaro [zona sul da capital São Paulo]. Daí a Diane me deu o livro ‘Escuta Zé Ninguém’, do Willhelm Reich. Aí eu li aquele livro e fiquei doido. Mudou minha vida. Eu tinha 17 anos na época.
Na escola sempre um aluno mediano, medíocre. Nunca fui um cara assim... É uma pena, né cara? Eu não gostava muito de matemática, física, essas coisas não me... Achava que não ia servir pra nada. Fórmulas que você esquecia. Da escola para mim o mais importante era a sociabilidade. A gente conhecia todo mundo. Crescemos todos juntos. Desde a infância até a juventude. Mas eu gostava de História, Geografia”.

“Na época da minha infância, os ônibus vinham de Pinheiros e paravam em frente do Bar Nosso Ponto, na imediação de onde é hoje uma agência do Bradesco [Estrada do Campo Limpo, nº 3.000].

“Meu pai demorava para chegar em casa vindo do trabalho. Como ele tinha vida de boêmio, a gente acompanhava os horários dele. Dormia muito tarde, esperando ele chegar. E acordava tarde, para tomar café da manhã com ele.
Era um ritual quando meu pai sentava para comer. De manhã ele levantava, e minha mãe ia preparar pãozinho tostado pra ele. Me lembro da minha mãe pegando aquela panela de ferro, e fazendo pão com manteiga tostado pra ele. Meu pai era glutão, e a gente foi nessa de comer também. Ele passava nas padarias e sempre trazia coisas. Ele passava na padaria do seo Agostinho, no Umarizal. Na padaria do Pirajuçara. Depende do lugar de onde ele vinha, cada diz numa região. Em casa era uma fartura. Biscoitos, pão-doce, sonho. Essas porcarias de padaria, e hoje eu não como nada disso aí.

“Em algum período da minha adolescência meu pai mudou de ramo de negócios. Fechou a imobiliária e abriu uma fábrica de portas e janelas.
Descarreguei muitos caminhões de batentes de peroba vinda do Paraguai e do Mato Grosso.
Ele abriu filiais pra todo lado que você possa imaginar. Aeroporto, Osasco,  Maria Sampaio, vários lugares. Chegou a ter 19 lojas. Vieram até parentes da minha mãe do interior para ajudar, meus tios de Araçatuba e Marília. Montava as lojas, colocava gerentes. Teve mais ou menos 40 a 60 pessoas trabalhando pra ele. Final de semana lá em casa era fila, pro pessoal pegar dinheiro. Tinha as 19 lojas funcionando, mas não tinha controle sobre nada.

“Com 15 pra 16 anos consegui um trampo de Office-boy na Casas Pernambucanas. Os negócios do meu pai já não iam bem das pernas.
Meu amigo Nicola estava trabalhando lá, fui fazer uma ficha e acabei contratado.
Era um sofrimento, viu cara? Daqui até na Rua Consolação... Tinha que pegar o ônibus 7391, acordar às 6h da manhã. Cheguei até a ser promovido lá. Trabalhava de gravatinha e tudo, você acredita? Meu serviço era um trampo que eu não entendia muito bem. Mas me promoveram... (risos). Era negócio de ativo fixo, umas plaquinhas, calcular umas planilhas bestas com uns números... Pedi demissão porque já não aguentava mais aquele emprego.

“Saí da Casas Pernambucanas e voltei a trabalhar com meu pai. Começamos a lidar com consertos de janelas e persianas. A gente colocava umas placas: “Conserto janelas”. Aí o pessoal ligava no fone 511-4694. Sempre tivemos bastante serviço nesse ramo.

Suzi e Binho
“Conheci a Suzi em 1983 em um Dia dos Namorados, numa festa na casa do professor Toni, que morava na Estrada do Campo Limpo, perto da entrada para o Parque Ypê. Ele era professor de Artes na escola estadual onde a gente estudava. Esse professor fazia uns bailinhos na casa dele. Chego lá na festa, olho a Susi, me encanto. Dançamos. Eu estudei coma irmã da Susi a vida inteira, desde o primeiro ano de escola, e não conhecia ela. Daí teve uma briga lá no bailinho, um empurra-empurra. Naquela de proteger ela, a gente se aproximou. Segurei na mão dela.
Daí namoramos durante uns seis meses, e separamos. Ficamos uns quatro anos afastados.
Depois voltamos.

“Em 1982 fui pra Juquiá, com 18 anos de idade. Meu tio Antonio, ex-sócio do meu pai na imobiliária, esse tio estava montando uma fábrica de doces de banana em Juquiá. Fiquei oito meses ajudando lá. Fazendo serviço de peão na montagem da fábrica. Mas demorou demais pra começar a funcionar. Decidi: ‘Eu não posso ficar aqui’. E vim embora.
Decidi vender bananas em cacho aqui em São Paulo. Fui no Ceasa, comprei um caminhão de bananas. Quando vieram me entregar, o caminhão quebrou no meio do caminho, na avenida Marginal, do lado da raia olímpica da USP. Mas tiveram de se virar; obrigação deles era trazer a banana até mim. Transferiram a carga de um caminhão para outro, e enfim chegou.
Peguei um Corcel velho que eu tinha, e saí pra vender. Lembro até hoje: primeiro lugar que bati em portas pra vender, foi nos sobradinhos da subida da Engemix [concreteira que tinha suas instalações na Rua César Simões, Taboão da Serra]. Meu bordão era: ‘Cambalacho, banana no cacho’. Na época não era costume vender banana em cacho nas portas das casas. Vendi bananas por uns dois anos. Ganhei uma boa graninha.
Daí decidi estudar e tentar passar no vestibular para Medicina. Ganhei uma bolsa de estudos no Anglo. Tentei por dois anos. Mas daí, sem chance. Moleque de periferia trabalhando e estudando, vai disputar um cargo na USP?

“Na minha adolescência tinha os bailinhos do clube da Casas Pernambucanas, na Estrada do Campo Limpo. A gente dança black music, K.C. and Sunshine Band, James Brown, essas coisas.

“Quando fui fazer o cursinho para prestar vestibular para Medicina em 1988, com 24 anos, me veio uma inspiração para escrever uma poesia pela primeira vez na minha vida. Meu pai alugava para outras pessoas uns quartinhos no quintal da nossa casa. Um dia, eu estava chegando em casa vindo do cursinho pré-vestibular, e dois dos inquilinos estavam querendo se matar na faca. E tavam naquela discussão: ‘Você falou’. E o outro: ‘Eu não falei’. Batendo boca um com outro, ameaçando dar facadas. No disse-me-disse. Daí eu transformei a confusão daqueles dois em poema: ‘Cê falou. Não falei. Cê falou. Não falei. Cê falou. Não falei. Cefaleia’. Foi o primeiro poema que escrevi. E ficou só neste na época. Eu gostava de ler, mas não de escrever. Tinha um poema antes do ‘Cefaleia’, mas era muito narcísico. Estava apenas esboçado, era uma brincadeira com meu próprio apelido, uma brincadeira. Mas era muito narcisista e deixei pra lá. A minha sobrinha Emayra talvez tenha guardado este esboço, mas... Eu vim descobrir a poesia com a biodança, um curso que eu fiz em 1995, na Rua dos Escultores, no Alto de Pinheiros, na Escola Paulista de Biodança. Minha irmã Diane quem me levou. Daí tinha de fazer lá uma aula de criatividade, oferecer um poema para um amigo. Ali foi meu verdadeiro encontro com a poesia”.

“Na adolescência, cursando o ensino médio (antigo colegial) eu pensava em estudar alguma coisa ligada com Medicina, ou Psicologia, por influência da minha irmã Diane.
A Diane, minha irmã, vai ver que é minha mentora (risos)... Aquela poesia: ‘Quando eu nasci tinha seis anos’, que é a idade com que eu me deparei com aquela vitrolinha da minha irmã. A memória mais antiga da minha infância. Antes desse acontecimento não tenho lembrança de nada. Eu passo a existir pra mim mesmo só depois da vitrolinha. E essa poesia termina com: ‘De tão solitário sou meu próprio vizinho’. É um verso que a filha da Diane – olha a ponta da raiz ligando! – a Raíssa filha da minha irmã era menina, e estava brincando de bonecas com a minha filha Naiana, no tempo em que eu morava em um apartamento no Jardim Umarizal. Eu estava passando do quarto pro banheiro, escutei ela falar: ‘Ué, Naiana, onde já se viu? Como você vai ser sua própria vizinha?’. Aí eu anotei e usei essas duas pontas no meu poema “Campo Limpo/Taboão”. Um fato que aconteceu comigo quando criança abre o poema, e o poema fecha com outro fato da infância da minha filha e minha sobrinha. E minha irmã Diane no eixo disso tudo”.

“Em 1990, resolvi conhecer a Europa. Vendi uma moto e um fusca que eu tinha. Vendi meus livros, discos... Tudo que desse grana. Também fiz uma festa para arrecadar dinheiro para a viagem. Nesta época eu já não usava cueca. Comprei uma cueca, a gente cortou ela em pedaços, tipo gravata de casamento. Pra arrecadar um dinheirinho. Fizemos a festa no quintal de uma escolinha que a minha irmã Diane tinha no bairro Monte Kemel.
Na hora de eu ir viajar, o dinheiro ficou preso no banco. Mas como a Susi trabalhava no banco Itaú, conseguiu lá de alguma forma liberar essa grana.
Fui embora, e desembarquei em Madri. No mesmo dia, alguma coisa me dizia: ‘Vai pra Barcelona’. Peguei um trem e fui. Em Barcelona não consegui emprego. Minha ideia era arrumar trabalho e ficar por lá. Tinha que trabalhar, porque eu tinha pouco dinheiro. Levei apenas 1456 dólares.
Depois de 15 dias em Barcelona, fui embora pra Itália. Ia ter a Copa do Mundo, e fui para Torino, onde a Seleção Brasileira ficou hospedada. Lá perto, nas proximidades de Siena, estava morando o meu amigo Mazzola, que também é morador antigo aqui do Campo Limpo. O Mazzola e uns parentes dele trabalhavam num lava-rápido na cidade de Colle di Val d'Elsa, e fiquei ajudando eles por uns 15 dias. Não podiam me dar emprego porque eu não tinha autorização para trabalhar na Itália. Na Copa cheguei a assistir dois jogos do Brasil. Também conheci Milão e Roma Em termos de dinheiro, só uma merreca no bolso. Mas eu dormia de qualquer jeito: em estação de trem, rodoviária. Onde desse. Era época de verão na Europa, então não tinha problema. Se fosse inverno, eu tinha dançado.
No dia que atravessei a fronteira da Itália com a França, conheci o Ezio Sandroni. Estávamos no mesmo ônibus. Lembro até que ele tinha machucado o braço. Como ele já tinha estado no Brasil, começamos a conversar. Daí ele me deu o telefone dele, e falou pra eu procurá-lo na casa dele, na comuna de Monforte D’Alba. Fica na região onde se produz o vinho Barolo, um dos melhores vinhos do mundo.
Nessa fase eu já tava preocupado, porque minha grana estava acabando, e eu não conseguia emprego. Liguei pro Ezio. Ele veio me encontrar numa estação de trem, e fomos no carro dele para o sítio onde ele morava bem afastado da cidade. O Ezio trabalhava com restauração de móveis, e eu fiquei ajudando nesse serviço.
Dali fui para Israel. Fiquei cinco meses lá, trabalhando no Kibutz Erez, na localidade de Ashkelon [no litoral sul de Israel, ao norte da Faixa de Gaza. Segundo uma lenda bíblica, nesta cidade teriam vivido os personagens Sansão e Dalila].
Fui para Israel porque, sem dinheiro no bolso e sem autorização para trabalhar na Itália, eu tinha de ir embora para algum lugar. E fui servir como voluntário no kibutz em Israel [Kibutz é uma fazenda de propriedade coletiva. Toda a produção é repartida por igual entre os seus membros, e forte prioridade à Educação das crianças].
Na época o Saddam Hussein ainda não tinha invadido o Kwait. Então foi fácil ir para a região do Oriente Médio. Um mês depois que eu estava em Israel, houve a invasão, e a coisa ficou meio tensa. Mas em Israel não tive problemas. Até porque eu não saia muito do kibutz. Num kibutz você faz de tudo. Cuida de jardim, limpa piscina, trabalha no estábulo, na plantação. Não cheguei a trabalhar no estábulo. Mas trabalhava com uns canos de irrigação, e também colhia abacates. Colhi muito abacate; muito mesmo. A gente usa essas cadeiras elevatórias, tipo as que usam para consertar luzes em postes.
Mas em cinco meses tive de ir embora, porque o clima ficou tenso na região. O Saddam tinha ameaçado abrir guerra com Israel. Com os palestinos infelizmente não pude criar nenhum vínculo. Só uma vez cheguei perto da Faixa de Gaza, e mesmo assim dentro de um ônibus escoltado pelo exército. Era muito perigoso ir na Faixa de Gaza, e eu não quis me arriscar. Pra você ter uma ideia de como os árabes e os judeus de odeiam, quando eu estava indo embora para a Jordânia, um palestino me deu um dinheiro, e disse: ‘Isto é para te ajudar na sua viagem’. Daí veio um molequinho judeu e me questionou: ‘O que você está conversando com esse árabe filho da puta?’. O moleque falava um português todo cheio de sotaque judeu, mas veio cobrar satisfação do por quê eu estava conversando com um palestino.

“Antes de sair de Israel, eu precisava arrumar dinheiro pra viagem. Daí fui trabalhar em uma moshav, que é fazenda nos moldes capitalistas. Lá eles pagam em dinheiro. No kibtuz eu não ganhava nada.
No moshav trabalhei para um judeu-argentino, colhendo tomates e envenenando rosas.

“Saindo de Israel fui para Londres, e lá eu trabalhei lavando pratos em uma pizzaria. Depois também trabalhei numa discoteca. Um ano depois que eu estava em Londres a Susi foi me encontrar, e trabalhou lá trabalhando de faxineira em casas de famílias.
“Quando voltamos de Londres em 1993, quis montar um comércio. Fui pra Santo Amaro procurar um ponto para abrir um barzinho, uma lanchonete. Pra começar a vida. A Susi tinha engravidado em Londres.
Em abril ou maio de 1993 abri o bar junto com a Susi. Naquele bar cheguei a fazer saraus. Mas era muito esporádico. A cada seis meses eu fazia a “noite da vela”. Acendíamos velas para o ambiente ficar meio na penumbra. A gente punha pra tocar discos de vinil (o popular bolachão). Rolava de tudo que é tipo de música. Ravi Shankar, Enio Morricone, Pink Floyd, Milton Nascimento. E tocava só lado B.

“Eu sou muito ruim pra escrever. Faz sete anos que eu não escrevo nada inédito. Às vezes uma frasezinha que eu guardo. Não escrevi nada ainda sobre as caminhadas do Donde Miras. Pode ser que venham poemas. Pode ser que não venha. Mas não fico ansioso, me cobrando por não escrever. Eu vou fazendo outras coisas da vida, né? Fico na fazeção, e aí quando vou ver, já estou envolvido com outras coisas. Sou um poeta temporão. Teve o Postesia em 1997, e o Donde Miras em 2007, dez anos depois. Depois que conheci a ayahuasca, por ela ter aflorado a minha espiritualidade, talvez a minha poesia vá se modificar. Porque já é uma outra dimensão que eu estou vivendo com a poesia. Já é uma outra poesia que virá, eu acho. Mas estou deixando ela aí. Não tenho pressa. Pode ser que não venha.
Eu não me preocupo em fazer nada inédito. A Susi se preocupa. Ela me diz: ‘Você não vai fazer nada? Tá na hora, tá na hora [de publicar algo novo]’. Ela quer que eu lance um livro, mas eu não tenho pressa”.

“Faz dois meses que só bebo água de uma nascente aqui da região do Campo Limpo, no caminho do Jardim Catanduva, perto do condomínio Floresta. Essa água não tem cloro e nem flúor. Se flúor fosse bom para os dentes, a Estrada do Campo Limpo não teria tantos consultórios de dentistas. O flúor é um resíduo da indústria do alumínio. Eles jogavam isto nos rios. Daí alguém fez uma pesquisa comprada, fraude científica, por volta da década de 1930 ou 1940 nos Estados Unidos, dizendo que o flúor faz bem para a dentição. Daí, claro, as ações foram lá pra cima. O cara que fez isto ganhou uma puta grana, era funcionário do governo. O flúor dá problema na tireóide, e calcifica a glândula pineal, que é o nosso regulador de hormônios. Com relação à cárie, o flúor não previne nada; não está provado isto. Ele melhora apenas zero vírgula zero qualquer coisa. É praticamente nada. A Alemanha proibiu o flúor na água, a Irlanda do Norte proibiu, a Bélgica, Dinamarca, Finlândia, todos os países sérios proibiram.
Binho e David no boteco
Fecha-Nunca, no Campo Limpo
“Manoel de Barros é minha paixão. Meu inspirador. Quando eu fui na casa dele em 2003, mandei uma carta antes onde eu dizia apenas: ‘Estou indo, Manoel. Estou indo’. Pra chegar lá, foi uma epopéia. De São Paulo até Araçatuba, comprei passagem nesses ônibus que levam pessoas para visitar presidiários. Fui com os familiares dos presos porque esse tipo de passagem é bem mais barato. Em Araçatuba fiquei na casa de uns primos que moram lá, até me arrumarem uma carona de caminhão até o Mato Grosso. Fui com o caminhoneiro Paco, numa carreta Volvo carregada de óleo de cozinha.
Quando mandei aquela carta em 2003 pro Manoel de Barros, nem esperei resposta. Fui logo para a estrada. O único contato anterior que eu tinha com o Manoel  de Barros foi uma carta que mandei pra ele quando lancei o Postesia. Daí ele mandou uma cartinha manuscrita de volta, dizendo que adorou. Essa carta ficava na cabeceira da minha cama. Mas um dia levei esta carta em um evento onde fui falar sobre o Manoel de Barros e não sei onde ela está. Mas está em casa. Preciso achar.
Voltando ao assunto da minha carona no caminhão. Chegamos em Cuiabá à meia-noite. Fui dormir na casa do caminhoneiro. Ele tinha um filho recém-nascido. Em casa já tinha recado para ele sair às 4h da madrugada, porque foi escalado para uma nova viagem.
O motorista Paco me deixou em um posto de gasolina, longe da cidade porque a carreta não podia entrar na área urbana. Do local onde o caminhão me deixou andei um quilômetro até pegar um ônibus. Nesta caminhada até o ponto do ônibus, vi umas formigas pelo chão. Aí me veio este verso: ‘E de eu assim tão ermo, me destaco da paisagem’. Eu estava impregnado de Manoel de Barros, e guardei esta frase para usá-la depois em um poema.
Chegando na Rua Piratininga, no Jardim dos Estados, onde ele morava, não fui na casa do Manoel de Barros de uma vez. Fiquei cerca de meia hora em frente ao portão. Pensando: ‘Será que ele está aí?”. Daí fui até a esquina, fiz mais uma hora, tomando coragem.  Toquei a campainha, alguém da casa atendeu ao portão. Daí vem o Manoel, aquele velhinho sorrindo, de sandália. E me diz: ‘Ô, rapaz. Você deu sorte. Cheguei hoje do Pantanal’. Ficamos conversando. Eu não lembro quase nada do que falamos, porque minha memória é uma bosta. E eu também não queria gravar a conversa. Queria guardar aquele momento na minha emoção. Daí ele me recomendou ler Padre Antonio Vieira, falamos de Guimarães Rosa e várias coisas. O que almoçamos eu não lembro. Só sei que estava bom pra caramba. Salada tinha bastante, e azeite que ele gostava. Estava o Manoel, a dona Estela esposa dele, o Pedro filho dele, uma sobrinha, a empregada, Ele era muito espirituoso. Achou graça de eu ter ido até lá da maneira como eu fiz. Daí ele disse: ‘Você fez muito esforço para chegar até aqui. Vou levar você lá em cima na minha toca [o escritório do autor]’. Era ali onde ele sentava para trabalhar às 7h da manhã e só saia ao meio-dia para almoçar. Lá na toca dele, me  deu um livro de sua autoria editado na Espanha. Disse: ‘Vou te dar este aqui de presente. Já que você veio de tão longe’.
David... Eu não bebo. Quando eu sai da casa do Manoel de Barros, eu fui para a rodoviária e tomei duas cervejas. Eu estava em regozijo. Não era êxtase porque eu já sei o que é êxtase. Êxtase eu senti quando eu voltei de Londres e vi meu pai e minha mãe no aeroporto. Ali foi êxtase. Abracei meu pai, minha mãe, e minha família. Ali entendi essa emoção que o meu corpo desconhecia até então. Não tinha sentido aquilo ainda. Um choro de alegria. Um frêmito. Meu corpo tremia todo, vibrava.”

Voltando de Manoel de Barros

Robinson Padial, o Binho

Até onde eu quero ir com minha incompletude?
Até a meia noite de um rio!?
Até quando um homem aguenta de não morrer?
Em mim o silêncio faz a festa.
Sou cheio de dentros.
Sou tão de misericórdia quanto de petição.
De eu ser assim tão ermo, me destaco da paisagem.
E dá gosto de haver-se estado gente um dia.
Quanto mais pra dentro o demônio me combina,
mais me amplia para Deus.
Sei que a ninguém pode acontecer isso,
mas eu chuvo no meu ser.

3 comentários:

Darcy Marcondes disse...

Conheci o Binho em 1993 na BIODANZA e logo me encantei com seu talento e criatividade, estive por mais de uma vez no Campo Limpo, em seu bar onde ele promovia atividades artísticas e culturais.Colaboro com livros e sempre que posso vou assistir e participar do SARAU DO BINHO no Sesc Pinheiros. Sou amiga e fanzona do casal Suzi e Binho.

Anônimo disse...

Eu lembro-me de um homem que tinha o sobrenome PADIAL, que era conhecido pelo apelido de "Mestiço" e, estava sempre vestido com roupas que lembrava o ZORRO, personagem de cinema e televisão, do tempo do "leão da metro" Era uma simpatia, diziam que tinha uma boate nas terras do Pirajuçara e também, vivia cercado por mulheres muito bonitas, onde destacava-se uma bela paraguaia. Falavam que tinha uma cinematográfica intitulada "Kayobá".Diziam também, que ele intitulava -se o Zorro Brasileiro. Será o mesmo descrito na minuciosa narrativa do poeta Binho?

David da Silva disse...

Prezado (a) internauta do comentário sobre o "Zorro Brasileiro". Encaminhei para o poeta Binho a sua postagem. Gostaria abrir contato contigo, pelo que você tem de conhecimento da História e das histórias de Campo Limpo e Taboão.
Por favor mande vosso e-mail ou fone para contato.
Meu e-mail: davidtaboao@yahoo.com.br
Vorte abraço.