quinta-feira, 19 de março de 2015

21 anos sem asfalto

para Lauro Medeiros
Rosa Falzoni. Foto: Sonia Bischain

Por Rosa Maria Falzoni

Se me perguntarem do que mais sinto falta, é do cheiro da chuva chegando. De úmido, de terra molhada que aumentava, soprando junto com o vento.
Da rua eu tirei a primeira terrinha para fazer minhas comidinhas, que partilhava com as bonecas. Sempre entendi que a lama podia ser modelada, mesmo como bolinhos e papinhas das panelinhas, nas brincadeiras de casinha.
A chuva era uma alegria; lá íamos eu e os amiguinhos andar pelo meio das enxurradas, descalços, sem medo de nada, a não ser cair dentro do bueiro, e sumir.
Esse medo era constante, de tirar o sono. Sempre ouvia a história de crianças que, em dias de chuva, escorregavam e sumiam pelos bueiros. Do caminho da escola eu sabia de cor a localização deles. E quando eu me esquecia e quase caía?
No começo da noite, depois da chuva ou durante ela, começavam a aparecer os sapos. Os girinos. As pererecas. Animais com quem convivia muito na rua. Tínhamos o mesmo habitat.
Nas três raras vezes em que estivemos no laboratório da escola, qual era o animal que dissecávamos? Ele mesmo: o sapo.  Tamanha a fartura, a facilidade de apanhá-lo.
Por isso adoro fábulas que têm o sapo como personagens. Uma princesa, que ao caminhar no campo encontra sapos, é totalmente aceitável no meu imaginário.
A chuva estava presente mesmo não chovendo, pois deixava suas marcas e conseqüências sempre. Eu morava no alto, e a água ia abrindo sulcos e fendas pela rua. Nos dias secos, um transtorno, quando se caía, escorregava, desviava, pulava e caminhava nelas. Nos dias de chuva caminhava-se dentro dos sulcos, junto com as enxurradas, invariavelmente. Descalça, de chinelo, ou com o sapato da escola mesmo.
Falo também do mato que invadia as ruas, fazendo-as mais fininhas, irem afunilando mais. Quase trilhas.  O mato crescia mais depois das chuvas, assim como dentro das casas, nos jardins e falhas do cimento do quintal. Ervas cresciam também.
Nos tempos de seca, de estiagem, era um pó só. No fim do dia as roupas ficavam com o tom da terra; aliás,  uma cor linda. Um cor-de-rosa clarinho e brilhante. A pele da gente reluzia, principalmente nas noites de lua cheia, quando ficávamos até tarde na rua brincando.
Tudo me faz celebrar a chuva. A grande benção do céu.
Celebro a chuva e lamento o aborrecimento das pessoas da cidade quando ela chega. Tudo deveria ficar bom quando chove...
Então, a chuva teve tudo a ver com a rua. De terra.
Com aquela terra brilhante havia muitas pedrinhas. Isso me causou dificuldades desde quando aprendi a andar. Por causa de tantas pedrinhas não conseguia manter o equilíbrio, vivia escorregando e caindo. Tenho provas disso: em uma queda, arranquei um pedaço de pele significativo do joelho, e tenho uma cicatriz notável, profunda e bem diferente da pele. Ao cair eu me arrastei por centímetros e chorei muito porque doeu. 
Escorregar na terra era constante. Os solados plásticos e duros das congas azul-marinho proporcionavam um freqüente deslize. Os solados sempre manchados de lama, que fazia a gente esquecer o que era o branco das coisas. Muitos sapatos meus ficaram manchados de lama por vários anos. Ao circular por lugares mais centrais, as pessoas viviam perguntando onde morava, de onde vinha. Vivia com vergonha disso, mas, depois nem ligava. Cheguei a ter orgulho de carregar manchas de lama nos tênis. Uma bobagem. Ter dificuldades é motivo de orgulho?
Lembro-me, na adolescência, da amiga Inês, que morava um pouco mais no alto do que eu. Depois de a família perder tudo, foi morar no Jardim Brasília.
Crianças indo à escola com os pés envoltos em sacos plásticos
Foto: Reprodução
Ela nunca se conformou. Nos dias de chuva, ia para a avenida, no ponto de ônibus, com dois saquinhos plásticos no pé, em volta dos sapatos, para não se sujar de lama. Pouco adiantava, pois vivia espirrando lama na roupa, nem que fossem uns pinguinhos. Sempre levávamos a terra da rua com a gente. Sempre viam terra na gente.
Rua de terra e muitos terrenos com mato. O misterioso mato, tão presente em histórias de viajantes. Tão verde e cheiroso. Dali saíam muitas coisas, muitos bichos. Ratos, cobras, baratas, cupins, formigas, grilos, louva-a-deus, borboletas, tatuzinho-bola, que invadiam as ruas e não tinham vez junto à crueldade das crianças, das pessoas que marcavam ali seu território, sua passagem.
Os carros passavam tão raramente e a rua era lugar de gente. Todo mundo andava no meio dela, com jeito de estar percorrendo um caminho... Ruas compridas, olhares perdidos em pensamentos na caminhada.
Crianças passavam a caminho da escola, centenas. Mas durante todo o dia se revezavam na ocupação da rua e ficavam horas ali brincando.
         Nas férias era a tomada total da rua. Gritos de felicidade, barulhos de brincadeiras e exaltações. Toque de recolher era o grito da mãe chamando para o banho, a janta ou a chegada do pai do trabalho.
Tínhamos alguns medos da rua: dos raios em dias de chuva, de bombinhas, de enroscar pipas nos fios, de tarados que atacavam mulheres e meninas. Das brigas, quando uma turma ou integrante de outro bairro invadiam ou passavam pelo nosso. E vice-versa. Eu nunca entendi bem por que existia essa regra. Da polícia, quando, à noite, ficávamos dentro de casa morrendo de medo ouvindo as veraneios ou camburões da Rota deslizando com motor desligado, faróis apagados, nos causando pavor.
Também não tínhamos medo: queimada, esconde-esconde, pega-pega, cabo-de-guerra, brincadeira de roda, vivo-ou-morto, passa-anel. Às vezes, durante a tarde, deitávamos na rua e ficávamos olhando as nuvens do céu e vendo as mais diversas formas. Conforme o vento, mudavam as figuras. E todos milagrosamente viam juntos, imaginavam juntos.  O exercício se complicava quando o vento era veloz e a imaginação tinha que ser rápida para dar conta do movimento. Estaria aí a primeira noção de que tudo muda?
Pulamos muita corda. Tenho certeza de que minhas pernas engrossaram de tanto brincar de pular corda. A corda era sempre minha e de meus irmãos, doada e sempre reposta pelo meu pai. Ele nunca me deu uma bicicleta, mas me deu esse instrumento de muita satisfação.
“Beijo, Abraço ou Aperto de Mão”. Por causa da brincadeira, fiquei noiva aos oito anos de idade. O anel era daqueles que vinham grudados no chiclete Ping-Pong, e o meu tinha uma pedra de acrílico vermelha. Exibia-o orgulhosa, prova de meu compromisso.
Soube de menstruação, sexo, namoro e beijo com amigas da rua. Algumas coisas me chocaram, outras me deram vontade de fazer. Treinava beijar em casa, no espelho do guarda-roupa da minha mãe. Um beijo frio, no vidro. Tão diferente do meu primeiro beijo, quente, que não teve trilha sonora, como a das novelas da TV. Aliás, o silêncio estonteante da entrega. Os pés fincados na terra da rua, o ventre quente e a cabeça flutuando. Bem no meio da rua.
Depois desse beijo, vieram outros, de outros, na rua.
Crescendo, também cresceram meu olhar, minha mente e meu desejo de beijar outras bocas, uma grande vontade de vida. Em outras ruas.
De ganhar novas ruas, até avenidas. Estradas?! A minha rua ficou pequena, com pouco espaço para tudo isso.
A rua mudava, ao mesmo tempo em que eu mudava. Primeiramente, a iluminação de poste, que deu grande incrementada às brincadeiras e depois aos namoros. Depois, as grandes tubulações e buracos: a água encanada! (morria de medo de cair no poço do quintal...). Finalmente o asfalto, que selou uma nova era: a de que eu não pertencia mais àquelas ruas.

Rosa Maria Falzoni, é natural do Jardim Brasília, zona leste de São Paulo (SP).

2 comentários:

Anônimo disse...

Aqui em Taboão, já tivemos um " 21 anos sem asfalto". Eu era jovenzinha, nascida no bairro Cerqueira Cesar na Capital, quando vim morar aqui, no final da década de 50. Não sabia como era a cantoria de sapos e de rãs. Nem imaginava ser escoltada por vagalumes. Tudo isso conheci aqui em Taboão! As chuvas intensas, não causavam dano, porque a mãe terra lhe concedia espaço para acomodar-ser. Taboão ainda não tinha esses guetos que ostentam o poderoso nome de edifícios, na verdade verdadeiras gaiolas sofisticadas... Ninguém, morria nas enchentes, porque elas não se formavam. Ai, o bicho humano, inventou o progresso! Com ele a especulação imobiliária e a rodovia mortífera. Ninguém perdia nada, principalmente a vida, nas enxurradas, porque elas passavam longe. O crescimento desenfreado resultou nisso: Desestrutura total... O progresso chegou e o sossego acabou! Mas lembre-se disto: Prepare-se porque, no ano que vem, tem mais...

David da Silva disse...

Que comentário lindo. Poético! Infelizmente não veio assinado. Eu gostaria imensamente de conhecer a senhora.