Tania Head |
Não
tinha quem não chorasse com Tania contando a sorte que teve ao fugir da morte,
no ataque às Torres Gêmeas. Apontava na direção do prédio que caiu: “Eu estava
lá. Sou uma sobrevivente”.Contou que trabalhava no 78º andar da torre sul do
World Trade Center de Nova York na manhã de 11 de setembro de 2001, quando um
avião se espatifou contra o arranha-céu. Minutos antes, outro avião tinha sido
lançado contra a torre norte. Tania Head se incluía entra as únicas 19 vítimas
que escaparam daquele inferno; 1.950 pessoas morreram na hora da colisão das
naves contra os edifícios. Com o incêndio e o desmoronamento que se seguiram ao
impacto, o número de mortos nas duas torres chegou a 2.753.
Tania
Head, então com 28 anos, contava ainda que, ao se arrastar pelo escritório em
chamas, um homem agonizante entregou-lhe o anel de casamento, pedindo a ela
para levá-lo à esposa que ele não voltaria a ver (“Eu entreguei o anel à viúva”,
garantia). Mostrava seu braço direito com sequelas horríveis devido às graves
queimaduras. Dizia que um bombeiro voluntário a levou pela escada até o solo.
“Durante a descida eu só pensava no meu noivo David, que estava na torre norte,
e eu não sabia que ele tinha morrido queimado”.
Sua
força de superação, seu entusiasmo em ajudar os companheiros de infortúnio, a elegeram
presidente da Rede de Sobreviventes da tragédia. Uma história dramática,
arrebatadora.
E falsa.
Culpados por estarem vivos
Cada uma
das torres do World Trade Center tinha 110 andares, ambas com 413 metros de
altura. A explicação oficial é de atentado terrorista. Outras versões defendem
que foi o próprio governo Bush o autor da desgraça. A torre norte foi atingida
às 8h46 pelo Boeing 767 do vôo 11 da American Airlines. A torre sul, alvejada
17 minutos depois pelo Boeing 757 do vôo 175 da United Airlines. Os dois aviões
foram sequestrados por 19 homens. Depois de pegar fogo por 56 minutos, a torre
sul veio abaixo. Às 10h28 a torre norte ruiu.
Carrie Sullivan |
Necrófila
insaciável, a imprensa só se interessava pelas perdas, as lágrimas das viúvas.
O governo não parecia contente por ter sobrado gente para contar a história. “Ninguém
nos dava atenção. Eu me sentia culpada por ter sobrevivido”, revela Carrie Coen
Sullivan. Ela não obedeceu à ordem de permanecer no local de trabalho na torre
sul, depois que o avião atacou a torre norte. “Primeiro alertaram para
evacuarmos o prédio. Quando chegamos ao térreo, policiais barraram a saída,
mandando-nos voltar. Mas eu furei o bloqueio. Fugi”, relembra Carrie.
Aos
sobreviventes era negado o acesso aos escombros. “A gente tinha de ficar do
lado de fora da grade de proteção, misturada aos turistas que tiravam fotos e
colecionavam pedaços do que sobrou dos prédios”, conta Carrie.
Relíquias
macabras. Sinistros souvenirs.
Os
jornais só davam destaque para parentes dos mortos, e para os policiais e
bombeiros que recolhiam os corpos. “Ninguém ligava pra nós. Não tínhamos sequer
um lugar onde nos reunir, compartilhar nossas dores, refletir sobre o que
passamos”, lamenta Carrie.
Foi esta
a fresta que Tania Head achou para se encaixar no caso.
Tecendo a farsa
As
pessoas dão graças por não ter estado no local de um acidente terrível, ou por
não ter entes queridos entre os mortos. Mas Tania Head queria ter estado lá. Ter
tido o braço deformado por medonhas queimaduras, perdido o noivo na
carnificina.
Durante
meses pela internet ela pesquisou cuidadosamente cada detalhe da tragédia. Com morbidez
gigantesca, fez opções superlativas. Atingida por último, a torre sul foi a
primeira a desabar. “Era lá que eu estava”, resolveu Tania. O avião colheu em
cheio o 78º andar. “Eu trabalhava ali”. No rol dos mortos havia 56 Davids.
Tania deslizou carinhosamente os olhos pela lista fúnebre e escolheu um: “Você
era o meu Dave”.
Na relação
dos 343 bombeiros mortos durante os resgates, Tania Head optou por Welles Crowther,
que morreu queimado: “Você foi o meu herói”.
O rapaz de 24 anos havia feito dezenas de subidas e descidas naquele dia
recolhendo vítimas. “Eu estava deitada no chão, encharcada pelo combustível em
chamas derramado do avião. Senti pancadas no meu braço ferido. Era o bombeiro
apagando com uma manta as labaredas do meu corpo”. “Ele me pegou no colo, e
descemos os 78 andares por uma escada. Pra eu não sufocar com a fumaça, ele
cobriu minha boca com um lenço vermelho”. De fato Welles usava sempre uma
bandana vermelha que ganhou do pai quando criança. Tania Head pensava em tudo;
caprichava em cada pormenor.
Tania chorando em uma cerimônia |
Hierarquia da dor
Na
tabela dos martírios, nenhum sofrimento superava o de Tania. A hierarquia da
dor elevou a moça ao posto máximo.
Se antes
dela os sobreviventes não tinham voz nem vez, ela conquistou para eles em 2005
o direito de visitar os escombros onde apenas 1.585 corpos haviam sido
identificados, e somente 300 cadáveres puderam ser enterrados – os demais foram
literalmente destroçados na mistura mortífera de concreto, fogo e aço.
Sob a
liderança de Tania Head, seus colegas deixaram de ser encarados apenas como
“sortudos”. Ela adquiriu a confiança do prefeito de Nova York, do seu
antecessor no cargo e do governador do Estado. Em outubro de 2006 foi eleita
presidente da Rede de Sobreviventes.
Ao contrário
de muitos que restaram vivos, Tania era relativamente explícita sobre tudo o
que viu e viveu nas torres. Sua poderosa narrativa cativava a todos. Por mais
de três anos ela corporificou a história trágica perfeita contada por um rosto
suave, voz apaixonada, e um sorriso encantador.
Mesmo
quando dizia ter sido colocada no solo pelo bombeiro Welles, sua crônica do
caos continuava arrepiante. “Eu estava no chão entregue a outro bombeiro no
momento que a torre sul desmoronou. Ele me levou para debaixo de um caminhão e
me cobriu com seu corpo. Fomos engolidos pela fumaça preta. Era impossível ver
ou respirar. Compartilhamos sua máscara de ar até que fomos resgatados. A
próxima coisa que lembro é de acordar cinco dias depois no hospital onde fiquei
internada por mais de dois meses”.
Nascida para mentir
A certidão de nascimento de Tania Head é um e-mail enviado em 13 de maio de 2003 para
o grupo de sobreviventes: “Penso que preciso falar com alguém, contar minha
história, mas não sei como fazer isso. Se eu conseguisse desabafar, mesmo que
fosse por uma única vez, seria o suficiente. Deus os abençoe. Tania”.
Por mais
de seis meses ela trocou correspondência eletrônica com o grupo. Chegou a
marcar o dia em que participaria de uma reunião com eles. Na última hora,
desistiu. “Eu ainda não estou pronta para falar com vocês sobre a minha própria
dor”, desculpou-se por e-mail.
Em
janeiro de 2004 Tania Head decidiu se apresentar pessoalmente aos
sobreviventes.
A exatidão
de seus relatos não dava brecha para incrédulos. “Eu trabalhava no banco
Merrill Lynch no andar 78. Quando o avião explodiu na janela do meu escritório
eu estava falando ao telefone com um pessoal do 96º andar. Estávamos fechando
negócio sobre uma fusão entre as empresas Fiduciary Trust e Franklin Resources
Inc. Com o impacto, uma colega da minha sala teve a cabeça arrancada”,
relatava.
Tania em ato público de 17.ago.2006 |
No
comando da Rede de Sobreviventes, Tania Head dava palestras em universidades,
montava o calendário de reuniões do grupo, e promovia eventos para arrecadar fundos.
Chegou a tirar dinheiro da própria bolsa para doar à organização.
Mas
evitava jornalistas.
A única
exceção foi uma reportagem de capa do New
York Daily News em 7 de setembro de 2006. A turma do poderoso The New York Times encafifou. Eles
haviam entrevistado todos os 18 sobreviventes em 2001. E Tania não
estava entre eles.
A reportagem que detonou Tania |
O
repórter David Dunlap, do New York Times,
começou a escavar a história. E na fatídica edição do dia 27 de setembro de
2007 soltou a manchete: “As peças simplesmente não encaixam”.
Na realidade,
em 11 de setembro de 2001 Tania estava na Espanha.
Desmascarada,
ela sumiu do mapa.
Cai a máscara
As
Torres Gêmeas foram atacadas por dois aviões. Tania Head foi abatida por dois
jornalões.
Dois
dias depois da matéria do New York Times,
o diário espanhol La Vanguardia jogou
a pá de cal. Tania era na verdade Alicia Esteve Head, nascida aos 31 de julho
de 1973. Na ocasião da tragédia em Nova York, ela morava em Barcelona, na Rua
Els Vergós número 18, bairro Três Torres, distrito de Sarrià-Sant Gervasi.
Filha de
uma das famílias mais ricas de Barcelona, Tania/Alicia domina perfeitamente o
idioma inglês devido à sua mãe britânica. Seu pai, Francisco Esteve Corbella, e
seu irmão Francisco Javier Esteve Head, deram um golpe de 24 milhões de euros
em 1992, e passaram seis anos em cana.
Em
setembro de 2001 Tania/Alicia Head fazia mestrado em administração de empresas
em uma escola de prestígio de Barcelona. Na época, já tinha o braço defeituoso.
Dizia aos colegas que foi um acidente quando dirigia sua Ferrari em alta
velocidade com seu noivo. “Meu braço foi arrancado no desastre; tivemos de
voltar para pegá-lo na estrada e os médicos colocarem de volta”.
Pessoas
como Tania/Alicia sentem necessidade de ficcionar a própria vida para serem
aceitas. A esta doença se dá o nome de pseudologia fantástica, uma tendência a
mentir compulsivamente.
Além de
inventar o caso das Torres Gêmeas, ela dizia que foi à Tailândia em 2004 ajudar
os flagelados do tsunami, e também deu apoio às vítimas do furacão Katrina em
New Orleans.
Perseguida pelo passado
Foto de Alicia no currículo Linkedin |
Na data
da estreia do documentário, Tania/Alicia estava trabalhando em uma grande
seguradora multinacional, dando atendimento aos segurados de fala inglesa. Com
currículo profissional invejável e pleno domínio em três idiomas, não foi
difícil arranjar bom emprego com alto salário. Mas a empresa, ao saber o que
ela tinha aprontado em Nova York, decidiu dispensá-la. Sem se abalar, ela disse
aos patrões: “Vocês estão sendo insensíveis com uma mulher vítima do terrorismo
internacional”.
Depois
disso, ninguém mais soube do seu paradeiro.
A
Justiça norte-americana não pôde condenar Tania/Alicia Head porque ela não
obteve lucro com sua farsa, não causou prejuízo econômico a ninguém, e nem ao
grupo que ajudou a levantar. Pelo contrário. Até injetou grana na entidade.
Abriu as portas do seu luxuoso apartamento em Midtown Manhattan, perto do
Central Park, para festas beneficentes. Contratou psicólogo para as terapias em
grupo.
Mas
Carrie Sullivan, fundadora da Rede Sobreviventes, pensa diferente. “De fato,
ela nos enganou; fingiu ser uma e era outra. Mas fez muito pela nossa
organização. E isto não pode ser simplesmente descartado”, diz a bela e doce Carrie
sobre a adorável impostora.
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