Silhueta da Camila Brasil no seu próximo local de show Foto: David da Silva - 01.out.2015 |
David da Silva
A maciez
no trato com as pessoas não é artimanha de artista para enfeitiçar fãs. É de
berço – lições de vida da casa modesta onde nasceu no Jardim Ângela, zona
sul de SP. O repertório eclético tem raízes no pai de origem nordestina e na mãe
paulista neta de espanhóis. A beleza física é congênita – uma de suas irmãs
é modelo profissional, com carreira no exterior. A múltipla compositora Camila
Brasil lança neste sábado (3) seu disco em formato EP na Fábrica de
Cultura do Jardim São Luís.
Igual ao
ocorrido com o sambista Paulinho da Viola (em sua música emblemática o autor
conta: “Tinha eu 14 anos de idade quando
meu pai me chamou / Perguntou se eu não queria estudar Filosofia, Medicina ou
Engenharia / Mas a minha aspiração era ter um violão...”) com 13 anos a
menina Camila atendeu ao chamado da Música. “O sonho do meu pai era ter uma
engenheira em casa. Mas eu pedi, e ele foi na Casas Bahia comprar a prestação
um violão para mim”, lembra agradecida.
Camila: repertório eclético |
Um ano
depois, Camila já derramava nas cordas do violão suas mágoas e alegrias.
A plateia invisível
Um
brilho de peraltice acende o olhar de Camila ao lembrar a infância feliz. Antes
de ganhar o violão, a garota dava shows imaginários. “Quando eu tinha 10-11
anos, todas as noites eu e minha irmã Laís, essa que hoje é modelo no México,
íamos pro quintal. Ela cantava e eu acompanhava com um pedaço de madeira
imitando violão. Tocávamos para as casinhas que davam fundo pro nosso quintal.
A gente olhava assim pra quebrada, via as luzes das casinhas umas sobre as
outras. Era a nossa plateia”, lembra divertida.
Aquele
quintal era o oásis de Camila e suas três irmãs - Jaqueline, 29 anos,
Tatiane, 28, e Laís, 25. Camila está com 22.
“A gente
foi muito feliz mesmo sendo aquela casa miudinha. Eram dois cômodos. E esses
cômodos apertadinhos nos uniam. Uma televisãozinha pequena que todo mundo tinha
que dividir os horários e os gostos para assistir. A mesa da cozinha era
pequena também, e todo mundo tinha que sentar junto. Tinha as nossas quatro
caminhas uma ao lado da outra, perto da cama do meu pai e minha mãe. O
guarda-roupa dividia o quarto da parte que servia de sala”.
“Tinha
um quintalzinho que era o nosso paraíso. A gente conseguia pular muro de
vizinho pra roubar goiaba. Tinha um limoeiro também. A gente fazia a festa.
Numa dessas escapadas pra ir na goiabeira arrebentei meu pé. Eu tive esse
privilégio (risos). E minha irmã Laís
arrebentou a cabeça (mais risos).
Vira e mexe minha mãe tinha que levar a gente em pronto-socorro público”,
relata Camila às gargalhadas.
Quem
pensa que pular muro pra roubar frutas era o ápice paras as quatro meninas,
sabe de nada. “Tinha uma escada comprida pra chegar na casa, que era lá embaixo,
num terreno em declive. A gente pegava um caixote de madeira, entrava nele pra
descer escorregando pelos degraus, igual trenó. Fomos muito felizes naquela casinha.
Sinto muita saudade da nossa infância”, lembra comovida.
A poesia por princípio
Camila é
autora das letras das próprias canções. O gosto pra escrever nasceu antes da
música. “Com uns 10 anos eu já escrevia poesia. Adorava. A temática era a minha
casa, as minhas irmãs, o amor que eu tinha por elas, o lugar onde eu vivia, o
sonho de fazer dali um lugar melhor. Era assim que eu tentava pensar o lugar
onde eu morava. Porque o Jardim Ângela na época que a gente morava lá, não era
um lugar fácil. Várias vezes meu pai saia pra trabalhar, e tinha gente morta na
calçada da Estrada M’Boy Mirim. Então eu tentava criar coisas bonitas naquilo
que eu escrevia. Tem um livrinho das poesias que eu fiz para as minhas irmãs
naquela época. Isto tá guardado em casa, preservado até hoje”.
Camila
Brasil tem uma produção equilibrada entre poemas e canções. “Tenho cerca de 50
composições musicais. Poesia eu tenho em maior quantidade. Quando brota a obra
dentro de mim, eu já sei: isto aqui é poesia, não é música, e vice e versa”,
avalia.
A força da família
Atenta
ao DNA artístico das filhas, dona Rita de Cássia fazia serviços de diarista em
casas de família, para sustentar os sonhos de Laís e Camila no mundo das artes,
sem sacrificar o orçamento do marido Edmilson Gomes Oliveira, metalúrgico
ferramenteiro e torneiro mecânico. “Minha
mãe separava o dinheirinho ganho nas faxinas para fazer books para minha irmã.
Quando a Laís fez 14 anos, minha mãe conseguiu uma credencial na São Paulo
Fashion Week. Lá um olheiro viu o potencial da Laís, e hoje ela trabalha no
México”, diz Camila.
A
primeira vez que Camila colocou sua voz numa gravação, também teve a mão de
dona Rita. “Minha mãe, mais uma vez trabalhando em casa de família, me ajudou
com o dinheiro para a gravação em 2009. Um mini-CD com três músicas, só eu, voz
e violão. Em outra ocasião, eu quis fazer um workshop com o compositor e
produtor Beto Villares. Custava R$ 250,00. Me lembro que eu tinha apenas R$
100,00. Minha mãe me ajudou com mais R$ 150,00. Paguei o workshop só pra chegar
perto dele e dar o meu CD. Aí ele falou que eu tinha um trabalho bonito, tinha
chances de crescer”.
As
influências musicais de Camila Brasil vêm das músicas que o pai punha pra tocar
em casa, na época das fitas K-7. “A gente ouvia de tudo. Chico Science e o
movimento mangue-beat que me marca até hoje. Também tinha forró, Zé Ramalho,
músicas flash-back. Até hoje escuto bastante músicas da década de 80 por causa
do meu pai”.
É a mãe
a ouvinte privilegiada das composições de Camila. “Minha primeira composição
veio da minha primeira paixão. Me aborreci com o menino que eu gostava, fiquei
triste pra caramba, e escrevi a música. Nem me lembro o título, era meio
rock-‘n-roll, uma coisa muito boba. Mostrei pra minha mãe. Nunca me esqueço
dessa imagem. É muito forte pra mim. Disse: ‘Mãe, tenho uma coisa pra te
mostrar’. Meu pai nunca foi assim de... Ele era o cara mais durão, essa coisa
nordestina. Costumo dizer que meu pai é razão, e minha mãe, coração. Daí minha
mãe escutou, falou ‘nossa, que lindo!’.
E foi esse ‘nossa que lindo’ que me
animou a compor mais e mais e mais”.
Antes de
se tornar Camila Brasil, a menina Camila Rodrigues de Oliveira era uma retranca
só. “A música foi muito importante na minha vida nesse processo de superar a
timidez. Eu era a menina que sentava no fundão da sala de aula. A nerd que
queria só estudar. Era muito introspectiva. A música veio para me libertar
disto. Poxa!, se eu estava sofrendo de amor, eu ia lá desabafar com meu violão.
Ficava lá sentada falando com ele. Contava tudo pro meu violão (risos). Lembro que quando eu tinha 16 anos
fiz a música A Felicidade Estava Lá.
Eu estava com muita raiva, porque tinha visto um acidente, o corpo daquela
pessoa ficou lá esperando não sei quantas horas largado no chão. Cheguei em
casa e compus”.
Primeiros acordes
Quando Camila
ganhou o violão, as brincadeiras de menina ficaram para trás. “Eu dormia com o
violão do lado. Nem dormia direito. Mal acordava de manhã já queria tocar. Meu
pai me arranjou um professor de violão numa escola de música que ficava em
frente ao atual Extra - na época era supermercado Barateiro da Estrada do M’Boy
Mirim, no Jardim Ângela. Pagava R$ 60,00 por mês para o professor Naldo me dar
aula uma vez por semana. Era legal porque ele me ensinava os acordes, sem
entrar muito na teoria. Tenho preguiça para aprender teoria. Tive aulas com o professor
Naldo por 8 meses. Daí ele teve de sair do imóvel, e eu fiquei parada, sem
aulas. Mas, quando dava eu juntava algum dinheirinho, e uma vez por mês
comprava revistinha de música em bancas de jornais. Ou quando não conseguia o
dinheiro, algum colega me dava a revistinha que não estava usando mais. Depois
conseguimos outra escola com preço barato, no bairro Piraporinha. Ali estudei
música mais um ano. Aprendi bastante. Neste meio tempo comecei a tocar na
igreja católica, comecei a praticar mesmo. Aprendi muito na igreja Santa Rita. Fiquei
uns dois anos tocando lá”.
Inquietações musicais
Aos 16
anos Camila começou a se incomodar. E se auto-impôs um período sabático para
encontrar caminho próprio. “Naquela idade eu via a música como algo que colocam,
impõem para nós. Como o campo harmônico. Uma construção perfeita. Uma regra que
você tem que seguir. Terça, quinta. Aquilo começou a me irritar. Comecei a
questionar: por que não pode sair dessa regra? Não tem outras coisas que se
pode fazer dentro da música sem seguir a regra? Por que seguir o campo harmônico?
Aquilo me incomodava. Quando eu fazia uma música nova, ficava a impressão que
já tinha escutado aquilo em algum lugar. Daí eu me fechei. Fiquei uma semana
sem ver nada, sem pensar nada, ter informação de nada. E aí comecei a pensar a
música de maneira intuitiva, como algo que eu chamo de tom universal. Que não
tem regra. Seria um átomo em agitação, sabe? E essas moléculas, elas não
precisam se encaixar. Se você escutar, você acha que está dentro do campo
harmônico, mas músico que é músico sabe que não está. Isso faz toda a
diferença. Daí eu comecei a fazer esta desconstrução. Foi aí que eu me
encontrei como artista. Achei a minha linguagem própria, a minha personalidade
sonora”.
Plano de vôo
Dona
Rita de Cássia volta à cena no estímulo para a primeira apresentação pública de
Camila Brasil. “Quando eu estava com 17 anos, minha amiga Mara Sombra foi
almoçar em casa. Minha mãe-coruja falou pra ela escutar minhas músicas. Toquei Eu Sou Guerreira, que eu tinha feito já
pensando nessa coisa do maracatu. Daí a Mara sugeriu que eu me apresentasse na
Casa de Cultura M’Boy Mirim, que ela frequentava. Ela me apresentou ao gestor
da Casa. Durante um mês eu me preparei pra me apresentar no evento Panelafro,
que eles realizam uma vez por mês. Me lembro bem disto. Foi quando eu tirei meu
caderno de músicas da gaveta pela primeira vez. Foi numa noite de sexta-feira.
Toquei meu maracatu Eu Sou Guerreira,
um samba meu chamado A Tua Falta, e
uma do Chico Science”.
Ali
Camila Brasil conheceu os percussionistas Alan Bernardino e Rabi, com quem
gravou em 2010 um mini-CD com cinco composições. “Lembro da gente no estúdio, todo
mundo tocando e olhando pro relógio, por causa do alto custo da hora de
gravação”.
Na estrada
Com este
impulso, Camila Brasil passou a frequentar saraus por toda a cidade de São
Paulo. “Fui em todas as quebradas. Sozinha, eu e meu violão”.
“Em 2010
cheguei ao Sarau do Binho. O Sarau do Binho, para mim, é uma escola pela qual
eu tenho muito amor. Viver naquele ambiente de leituras, de palavras, de troca.
Aquilo ali fez muito bem pra mim. Me encantei com o lugar. Peguei mais gosto
pela leitura. E é meio contramão pra ir lá, né! Três ônibus pra ir e três pra
voltar”.
A
artista se sente abraçada pelo ambiente paulistano dos saraus. “Fico muito
feliz. A periferia me abraçou musicalmente. Tenho muito orgulho disto. O Sarau
do Binho, a Suzi e o Binho são minha segunda família. O da hora é que todo
mundo ali é igual”.
Pelos
subúrbios paulistanos, novas parcerias culturais. “Nessas caminhadas, em 2013
conheci o pessoal do Poesia Samba Soul, do Jardim Nakamura. O Claudinho
Miranda, desse grupo, é o produtor do EP a ser lançado agora dia 3 de outubro.
Também neste processo de buscas e desafios, encontrei novos parceiros, na
quebrada da zona leste. A Associação Arte e Cultura Periferia Invisível entrou
como parceira neste projeto do EP. Eles me ajudaram, paguei metade dos custos,
eles patrocinaram a outra metade. Estão me ajudando bastante tanto na construção
do show quanto no pós show, no trabalho de divulgação em outros locais”, conta.
Processo de criação
Camila
Brasil é apaixonada pela música nordestina. “Me encanta muito a magia do canto
falado, a oralidade. Essa coisa da ladainha, do sofrimento, da dor. Mas tratada
na música de uma maneira muito linda, muito singela”.
Para a
jovem compositora, “a Arte não está aí pra ser explicada. Ela está como uma
manifestação poderosa para ser sentida”.
O que
não impede a generosidade em dividir com os fãs o processo de criação de
algumas de suas composições mais requisitadas.
“Simpático é um carinha do sistema
nervoso autônomo. Eu estava lendo um texto de biologia que falava do sistema
nervoso autônomo. Eu já tinha uma ideia de falar da fome, mas de uma forma
diferente, como se fosse cordel. Lendo este texto pensei: ‘Como o organismo tem essa capacidade de funcionamento! Tá aí. É o
simpático’. E comecei a desenvolver a letra. O simpático, na verdade, no
sistema nervoso quando você sente aquela lentidãããão, aquela moleeeeeeza quando
a fome está pra vir. É o simpático. Ele é quem vem dizer pra gente: ‘não tá dando!’. Foi assim que surgiu essa música com esse título Simpático”. Esta música foi quarta
colocada no Parnaíba Festival, em 2011.
“Reza é fruto de uma transição dolorosa,
de perder um amor, e essa questão de a gente mulher ficar pra baixo. É a
questão do empoderamento feminino. A figura da vela entra nos versos da
composição, porque eu tenho uma lembrança muito forte da minha mãe acendendo
vela na janela. Ela fazendo reza pra Santa Rita, da qual ela é devota. Essa
imagem é muito forte na minha vida, eu choro. Minha mãe sempre foi muito de
orar, e eu sou religiosa também, muito apegada às coisas divinas”.
“Mistério
e Calor é um sambinha curtinho. Uma poesia. Sabe quando você faz música
pensada? Porque até então Mistério e
Calor eu fiz pensando no título para um disco que eu estava almejando”.
“Ferrugem é uma ciranda que fiz pensando
nessa coisa do sofrimento amoroso. O refrão eu acho muito forte: ‘perdi meu amor no corte da navalha’.
Fiz pensando no sofrimento de pessoas que eu amo, sabe? Quando você é um
espectador, está narrando a história de uma pessoa. O sofrimento de uma amiga.
A gente é espectador das almas sofridas”.
“Eu Vim de Todos os Cantos foi feita em
2010, já depois que eu encontrei o Sarau do Binho. Me lembro que acordei,
estava um dia belíssimo, eu tinha tido um sonho muito bonito. Nesse sonho eu
viajava muito por lugares desertos. A natureza é muito presente na minha vida.
Sou apaixonada pelo vento. O vento pra mim é uma coisa muito forte. Quando tem
aquele vento de chuva eu vou na janela, agradeço. Tenho uma relação muito linda
com o vento. Aí comecei a compor o verso ‘eu
vim de um lugar tão longe / fazer saudade em coração’. Essa coisa de
saudade que a gente tem das pessoas. Eu tinha muita saudade da minha irmã, que
nessa época já estava morando lá fora, no México. Ela só vinha em casa a cada
seis meses. Essa a saudade mais presente na minha vida. Já o verso ‘ah, terra amada e querida’ fala do
quanto eu amo estar nesse meio, ter
conhecido os seres humanos do Sarau do Binho. Na época que fiz a música eu não
sabia o que a gralha cancã significava. Sabe quando a palavra vem na sua
cabeça, e você põe na letra sem saber o porquê daquilo? Daí eu fui pesquisar,
aprendi que é o pássaro que dissemina a semente do mandacaru. E tem o verso que
eu acho mais bonito: ‘cuide bem do amor
de quem fica’.
A mais querida
Todo
compositor tem sua canção favorita. Mesmo que não seja a mais pedida pelo
público.
“Bicho Homem, compus com 18 pra 19 anos.
Ela ia entrar no disco, mas teve erro de gravação. Tinha pensado nela como a
minha música de chamada. Eu fiz o arranjo musical. Tinha um violoncelo, no
final caia pra um maracatu. Coisa mais linda. Acordei 3h da madrugada pra fazer.
É uma história. Um conto. Eu gosto dela, dessa coisa misteriosa. Tem a parte
que eu acho mais bonita: “Passa por casas desarrumadas / que despertam medo e
exalam moças que fecham suas cortinas /Mas que deixam seus olhos à mostra / Sua
indecência de menina que esconde na beira da saia / embalando as sete
badaladas...”.
Na carreira
Cortando
a capital paulista de cima a baixo sempre de ônibus, metrô e trens com o violão
às costas, Camila Brasil faz sempre sozinha letra e música. “Tempos atrás o
Gunnar Vargas deu uma letra pra eu musicar. Mas ainda não mostrei a música
inteira pra ele. Tenho vergonha. Ele é um compositor mais rodado”, sorri.
Nem
sempre chega ao conhecimento do respeitável público a dureza da vida de artista
independente. “Muitas vezes eu ia ao Sarau do Binho só com o valor de uma passagem
de ônibus. Só com os R$ 3,00 reais da condução. Deixava para sair de casa
quando o sarau já tivesse começado. Pra chegar lá, tocar e voltar correndo para
o ponto do ônibus dentro de duas horas, pra não perder o período de carência do
bilhete único”.
No show
deste sábado, Camila Brasil vai apresentar, além das canções do EP e outras do
conhecimento público, seis novas composições.
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