quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Retrato falado de uma estrela da zona sul

Silhueta da Camila Brasil no seu próximo local de  show
Foto: David da Silva - 01.out.2015












   
David da Silva

A maciez no trato com as pessoas não é artimanha de artista para enfeitiçar fãs. É de berço – lições de vida da casa modesta onde nasceu no Jardim Ângela, zona sul de SP. O repertório eclético tem raízes no pai de origem nordestina e na mãe paulista neta de espanhóis. A beleza física é congênita – uma de suas irmãs é modelo profissional, com carreira no exterior. A múltipla compositora Camila Brasil lança neste sábado (3) seu disco em formato EP na Fábrica de Cultura do Jardim São Luís.
Igual ao ocorrido com o sambista Paulinho da Viola (em sua música emblemática o autor conta: “Tinha eu 14 anos de idade quando meu pai me chamou / Perguntou se eu não queria estudar Filosofia, Medicina ou Engenharia / Mas a minha aspiração era ter um violão...”) com 13 anos a menina Camila atendeu ao chamado da Música. “O sonho do meu pai era ter uma engenheira em casa. Mas eu pedi, e ele foi na Casas Bahia comprar a prestação um violão para mim”, lembra agradecida.
Camila: repertório eclético
Um ano depois, Camila já derramava nas cordas do violão suas mágoas e alegrias.

A plateia invisível
Um brilho de peraltice acende o olhar de Camila ao lembrar a infância feliz. Antes de ganhar o violão, a garota dava shows imaginários. “Quando eu tinha 10-11 anos, todas as noites eu e minha irmã Laís, essa que hoje é modelo no México, íamos pro quintal. Ela cantava e eu acompanhava com um pedaço de madeira imitando violão. Tocávamos para as casinhas que davam fundo pro nosso quintal. A gente olhava assim pra quebrada, via as luzes das casinhas umas sobre as outras. Era a nossa plateia”, lembra divertida.
Aquele quintal era o oásis de Camila e suas três irmãs - Jaqueline, 29 anos, Tatiane, 28, e Laís, 25. Camila está com 22.
“A gente foi muito feliz mesmo sendo aquela casa miudinha. Eram dois cômodos. E esses cômodos apertadinhos nos uniam. Uma televisãozinha pequena que todo mundo tinha que dividir os horários e os gostos para assistir. A mesa da cozinha era pequena também, e todo mundo tinha que sentar junto. Tinha as nossas quatro caminhas uma ao lado da outra, perto da cama do meu pai e minha mãe. O guarda-roupa dividia o quarto da parte que servia de sala”.
“Tinha um quintalzinho que era o nosso paraíso. A gente conseguia pular muro de vizinho pra roubar goiaba. Tinha um limoeiro também. A gente fazia a festa. Numa dessas escapadas pra ir na goiabeira arrebentei meu pé. Eu tive esse privilégio (risos). E minha irmã Laís arrebentou a cabeça (mais risos). Vira e mexe minha mãe tinha que levar a gente em pronto-socorro público”, relata Camila às gargalhadas.
Quem pensa que pular muro pra roubar frutas era o ápice paras as quatro meninas, sabe de nada. “Tinha uma escada comprida pra chegar na casa, que era lá embaixo, num terreno em declive. A gente pegava um caixote de madeira, entrava nele pra descer escorregando pelos degraus, igual trenó. Fomos muito felizes naquela casinha. Sinto muita saudade da nossa infância”, lembra comovida.

A poesia por princípio
Camila é autora das letras das próprias canções. O gosto pra escrever nasceu antes da música. “Com uns 10 anos eu já escrevia poesia. Adorava. A temática era a minha casa, as minhas irmãs, o amor que eu tinha por elas, o lugar onde eu vivia, o sonho de fazer dali um lugar melhor. Era assim que eu tentava pensar o lugar onde eu morava. Porque o Jardim Ângela na época que a gente morava lá, não era um lugar fácil. Várias vezes meu pai saia pra trabalhar, e tinha gente morta na calçada da Estrada M’Boy Mirim. Então eu tentava criar coisas bonitas naquilo que eu escrevia. Tem um livrinho das poesias que eu fiz para as minhas irmãs naquela época. Isto tá guardado em casa, preservado até hoje”.
Camila Brasil tem uma produção equilibrada entre poemas e canções. “Tenho cerca de 50 composições musicais. Poesia eu tenho em maior quantidade. Quando brota a obra dentro de mim, eu já sei: isto aqui é poesia, não é música, e vice e versa”, avalia.

A força da família
Atenta ao DNA artístico das filhas, dona Rita de Cássia fazia serviços de diarista em casas de família, para sustentar os sonhos de Laís e Camila no mundo das artes, sem sacrificar o orçamento do marido Edmilson Gomes Oliveira, metalúrgico ferramenteiro e torneiro mecânico.  “Minha mãe separava o dinheirinho ganho nas faxinas para fazer books para minha irmã. Quando a Laís fez 14 anos, minha mãe conseguiu uma credencial na São Paulo Fashion Week. Lá um olheiro viu o potencial da Laís, e hoje ela trabalha no México”, diz Camila.
A primeira vez que Camila colocou sua voz numa gravação, também teve a mão de dona Rita. “Minha mãe, mais uma vez trabalhando em casa de família, me ajudou com o dinheiro para a gravação em 2009. Um mini-CD com três músicas, só eu, voz e violão. Em outra ocasião, eu quis fazer um workshop com o compositor e produtor Beto Villares. Custava R$ 250,00. Me lembro que eu tinha apenas R$ 100,00. Minha mãe me ajudou com mais R$ 150,00. Paguei o workshop só pra chegar perto dele e dar o meu CD. Aí ele falou que eu tinha um trabalho bonito, tinha chances de crescer”.
As influências musicais de Camila Brasil vêm das músicas que o pai punha pra tocar em casa, na época das fitas K-7. “A gente ouvia de tudo. Chico Science e o movimento mangue-beat que me marca até hoje. Também tinha forró, Zé Ramalho, músicas flash-back. Até hoje escuto bastante músicas da década de 80 por causa do meu pai”.
É a mãe a ouvinte privilegiada das composições de Camila. “Minha primeira composição veio da minha primeira paixão. Me aborreci com o menino que eu gostava, fiquei triste pra caramba, e escrevi a música. Nem me lembro o título, era meio rock-‘n-roll, uma coisa muito boba. Mostrei pra minha mãe. Nunca me esqueço dessa imagem. É muito forte pra mim. Disse: ‘Mãe, tenho uma coisa pra te mostrar’. Meu pai nunca foi assim de... Ele era o cara mais durão, essa coisa nordestina. Costumo dizer que meu pai é razão, e minha mãe, coração. Daí minha mãe escutou, falou ‘nossa, que lindo!’. E foi esse ‘nossa que lindo’ que me animou a compor mais e mais e mais”.
Antes de se tornar Camila Brasil, a menina Camila Rodrigues de Oliveira era uma retranca só. “A música foi muito importante na minha vida nesse processo de superar a timidez. Eu era a menina que sentava no fundão da sala de aula. A nerd que queria só estudar. Era muito introspectiva. A música veio para me libertar disto. Poxa!, se eu estava sofrendo de amor, eu ia lá desabafar com meu violão. Ficava lá sentada falando com ele. Contava tudo pro meu violão (risos). Lembro que quando eu tinha 16 anos fiz a música A Felicidade Estava Lá. Eu estava com muita raiva, porque tinha visto um acidente, o corpo daquela pessoa ficou lá esperando não sei quantas horas largado no chão. Cheguei em casa e compus”.

Primeiros acordes
Quando Camila ganhou o violão, as brincadeiras de menina ficaram para trás. “Eu dormia com o violão do lado. Nem dormia direito. Mal acordava de manhã já queria tocar. Meu pai me arranjou um professor de violão numa escola de música que ficava em frente ao atual Extra - na época era supermercado Barateiro da Estrada do M’Boy Mirim, no Jardim Ângela. Pagava R$ 60,00 por mês para o professor Naldo me dar aula uma vez por semana. Era legal porque ele me ensinava os acordes, sem entrar muito na teoria. Tenho preguiça para aprender teoria. Tive aulas com o professor Naldo por 8 meses. Daí ele teve de sair do imóvel, e eu fiquei parada, sem aulas. Mas, quando dava eu juntava algum dinheirinho, e uma vez por mês comprava revistinha de música em bancas de jornais. Ou quando não conseguia o dinheiro, algum colega me dava a revistinha que não estava usando mais. Depois conseguimos outra escola com preço barato, no bairro Piraporinha. Ali estudei música mais um ano. Aprendi bastante. Neste meio tempo comecei a tocar na igreja católica, comecei a praticar mesmo. Aprendi muito na igreja Santa Rita. Fiquei uns dois anos tocando lá”.

Inquietações musicais
Aos 16 anos Camila começou a se incomodar. E se auto-impôs um período sabático para encontrar caminho próprio. “Naquela idade eu via a música como algo que colocam, impõem para nós. Como o campo harmônico. Uma construção perfeita. Uma regra que você tem que seguir. Terça, quinta. Aquilo começou a me irritar. Comecei a questionar: por que não pode sair dessa regra? Não tem outras coisas que se pode fazer dentro da música sem seguir a regra? Por que seguir o campo harmônico? Aquilo me incomodava. Quando eu fazia uma música nova, ficava a impressão que já tinha escutado aquilo em algum lugar. Daí eu me fechei. Fiquei uma semana sem ver nada, sem pensar nada, ter informação de nada. E aí comecei a pensar a música de maneira intuitiva, como algo que eu chamo de tom universal. Que não tem regra. Seria um átomo em agitação, sabe? E essas moléculas, elas não precisam se encaixar. Se você escutar, você acha que está dentro do campo harmônico, mas músico que é músico sabe que não está. Isso faz toda a diferença. Daí eu comecei a fazer esta desconstrução. Foi aí que eu me encontrei como artista. Achei a minha linguagem própria, a minha personalidade sonora”.

Plano de vôo
Dona Rita de Cássia volta à cena no estímulo para a primeira apresentação pública de Camila Brasil. “Quando eu estava com 17 anos, minha amiga Mara Sombra foi almoçar em casa. Minha mãe-coruja falou pra ela escutar minhas músicas. Toquei Eu Sou Guerreira, que eu tinha feito já pensando nessa coisa do maracatu. Daí a Mara sugeriu que eu me apresentasse na Casa de Cultura M’Boy Mirim, que ela frequentava. Ela me apresentou ao gestor da Casa. Durante um mês eu me preparei pra me apresentar no evento Panelafro, que eles realizam uma vez por mês. Me lembro bem disto. Foi quando eu tirei meu caderno de músicas da gaveta pela primeira vez. Foi numa noite de sexta-feira. Toquei meu maracatu Eu Sou Guerreira, um samba meu chamado A Tua Falta, e uma do Chico Science”.
Ali Camila Brasil conheceu os percussionistas Alan Bernardino e Rabi, com quem gravou em 2010 um mini-CD com cinco composições. “Lembro da gente no estúdio, todo mundo tocando e olhando pro relógio, por causa do alto custo da hora de gravação”.

Na estrada
Com este impulso, Camila Brasil passou a frequentar saraus por toda a cidade de São Paulo. “Fui em todas as quebradas. Sozinha, eu e meu violão”.
“Em 2010 cheguei ao Sarau do Binho. O Sarau do Binho, para mim, é uma escola pela qual eu tenho muito amor. Viver naquele ambiente de leituras, de palavras, de troca. Aquilo ali fez muito bem pra mim. Me encantei com o lugar. Peguei mais gosto pela leitura. E é meio contramão pra ir lá, né! Três ônibus pra ir e três pra voltar”.
A artista se sente abraçada pelo ambiente paulistano dos saraus. “Fico muito feliz. A periferia me abraçou musicalmente. Tenho muito orgulho disto. O Sarau do Binho, a Suzi e o Binho são minha segunda família. O da hora é que todo mundo ali é igual”.
Pelos subúrbios paulistanos, novas parcerias culturais. “Nessas caminhadas, em 2013 conheci o pessoal do Poesia Samba Soul, do Jardim Nakamura. O Claudinho Miranda, desse grupo, é o produtor do EP a ser lançado agora dia 3 de outubro. Também neste processo de buscas e desafios, encontrei novos parceiros, na quebrada da zona leste. A Associação Arte e Cultura Periferia Invisível entrou como parceira neste projeto do EP. Eles me ajudaram, paguei metade dos custos, eles patrocinaram a outra metade. Estão me ajudando bastante tanto na construção do show quanto no pós show, no trabalho de divulgação em outros locais”, conta.

Processo de criação
Camila Brasil é apaixonada pela música nordestina. “Me encanta muito a magia do canto falado, a oralidade. Essa coisa da ladainha, do sofrimento, da dor. Mas tratada na música de uma maneira muito linda, muito singela”.
Para a jovem compositora, “a Arte não está aí pra ser explicada. Ela está como uma manifestação poderosa para ser sentida”.
O que não impede a generosidade em dividir com os fãs o processo de criação de algumas de suas composições mais requisitadas.
Simpático é um carinha do sistema nervoso autônomo. Eu estava lendo um texto de biologia que falava do sistema nervoso autônomo. Eu já tinha uma ideia de falar da fome, mas de uma forma diferente, como se fosse cordel. Lendo este texto pensei: ‘Como o organismo tem essa capacidade de funcionamento! Tá aí. É o simpático’. E comecei a desenvolver a letra. O simpático, na verdade, no sistema nervoso quando você sente aquela lentidãããão, aquela moleeeeeeza quando a fome está pra vir. É o simpático. Ele é quem vem dizer pra gente: ‘não tá dando!’. Foi assim que surgiu essa música com esse título Simpático”. Esta música foi quarta colocada no Parnaíba Festival, em 2011.

Reza é fruto de uma transição dolorosa, de perder um amor, e essa questão de a gente mulher ficar pra baixo. É a questão do empoderamento feminino. A figura da vela entra nos versos da composição, porque eu tenho uma lembrança muito forte da minha mãe acendendo vela na janela. Ela fazendo reza pra Santa Rita, da qual ela é devota. Essa imagem é muito forte na minha vida, eu choro. Minha mãe sempre foi muito de orar, e eu sou religiosa também, muito apegada às coisas divinas”.

 “Mistério e Calor é um sambinha curtinho. Uma poesia. Sabe quando você faz música pensada? Porque até então Mistério e Calor eu fiz pensando no título para um disco que eu estava almejando”.

Ferrugem é uma ciranda que fiz pensando nessa coisa do sofrimento amoroso. O refrão eu acho muito forte: ‘perdi meu amor no corte da navalha’. Fiz pensando no sofrimento de pessoas que eu amo, sabe? Quando você é um espectador, está narrando a história de uma pessoa. O sofrimento de uma amiga. A gente é espectador das almas sofridas”.

Eu Vim de Todos os Cantos foi feita em 2010, já depois que eu encontrei o Sarau do Binho. Me lembro que acordei, estava um dia belíssimo, eu tinha tido um sonho muito bonito. Nesse sonho eu viajava muito por lugares desertos. A natureza é muito presente na minha vida. Sou apaixonada pelo vento. O vento pra mim é uma coisa muito forte. Quando tem aquele vento de chuva eu vou na janela, agradeço. Tenho uma relação muito linda com o vento. Aí comecei a compor o verso ‘eu vim de um lugar tão longe / fazer saudade em coração’. Essa coisa de saudade que a gente tem das pessoas. Eu tinha muita saudade da minha irmã, que nessa época já estava morando lá fora, no México. Ela só vinha em casa a cada seis meses. Essa a saudade mais presente na minha vida. Já o verso ‘ah, terra amada e querida’ fala do quanto eu amo estar nesse meio,  ter conhecido os seres humanos do Sarau do Binho. Na época que fiz a música eu não sabia o que a gralha cancã significava. Sabe quando a palavra vem na sua cabeça, e você põe na letra sem saber o porquê daquilo? Daí eu fui pesquisar, aprendi que é o pássaro que dissemina a semente do mandacaru. E tem o verso que eu acho mais bonito: ‘cuide bem do amor de quem fica’.

A mais querida
Todo compositor tem sua canção favorita. Mesmo que não seja a mais pedida pelo público.
Bicho Homem, compus com 18 pra 19 anos. Ela ia entrar no disco, mas teve erro de gravação. Tinha pensado nela como a minha música de chamada. Eu fiz o arranjo musical. Tinha um violoncelo, no final caia pra um maracatu. Coisa mais linda. Acordei 3h da madrugada pra fazer. É uma história. Um conto. Eu gosto dela, dessa coisa misteriosa. Tem a parte que eu acho mais bonita: “Passa por casas desarrumadas / que despertam medo e exalam moças que fecham suas cortinas /Mas que deixam seus olhos à mostra / Sua indecência de menina que esconde na beira da saia / embalando as sete badaladas...”.

Na carreira
Cortando a capital paulista de cima a baixo sempre de ônibus, metrô e trens com o violão às costas, Camila Brasil faz sempre sozinha letra e música. “Tempos atrás o Gunnar Vargas deu uma letra pra eu musicar. Mas ainda não mostrei a música inteira pra ele. Tenho vergonha. Ele é um compositor mais rodado”, sorri.

Nem sempre chega ao conhecimento do respeitável público a dureza da vida de artista independente. “Muitas vezes eu ia ao Sarau do Binho só com o valor de uma passagem de ônibus. Só com os R$ 3,00 reais da condução. Deixava para sair de casa quando o sarau já tivesse começado. Pra chegar lá, tocar e voltar correndo para o ponto do ônibus dentro de duas horas, pra não perder o período de carência do bilhete único”.
No show deste sábado, Camila Brasil vai apresentar, além das canções do EP e outras do conhecimento público, seis novas composições.
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