Depois do lamaçal da Samarco em Barra Longa, todos os
dias Seu Felipe vai até a beira do rio para ver se seu amigo esquisito
reaparece. Foto: David da Silva – 19.out.2017
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David da Silva
Pensei que ao chegar em Barra Longa eu fosse recebido
pelo Caboclo D’Água logo na entrada da cidade. Mas só fui encontrá-lo quatro
dias depois, na beira do Rio do Carmo. Principal personagem do folclore
barra-longuense, ele ganhou um monumento no portal do perímetro urbano do
município. Mas o pedestal com sua estátua está vazio. A escultura sofreu rachaduras,
e aguarda restauração. O guardião da tradição do Caboclo D’Água em Barra Longa
é o senhor Antonio Felipe de Rezende, de 89 anos, a única pessoa que já ‘conversou’
com a mítica figura.
Estátua do Caboclo D'Àgua baseada em retratos falados - Foto: Maria Paola de Salvo |
Caboclo D’Água é um elemento da identidade cultural
típica dos povos ribeirinhos. Funciona como um disciplinador de comportamentos.
Para evitar que seus filhos morram afogados, pais e mães põem medo na cabeça das
crianças: “Se você for nadar, o caboclo vai te puxar pro fundo do rio”.
O retrato falado do Caboclo D’Água em Barra Longa foi
desenhado com base em relatos colhidos pelo chargista e ilustrador Deivison
Silvestre. A representação gráfica serviu de modelo para o artista plástico
Ayrton Pyrtz fazer a estátua do caboclo com dois metros de altura.
Não foi tarefa fácil materializar em obra de arte uma aparição
descrita em diferentes versões como um ser coberto de escamas com pelos, e
aparência híbrida de anfíbio parecido com ave e jeito de macaco com cara de
dinossauro.
Quem já escutou o som emitido pelo bicho, diz que é parecido
ao barulho de helicóptero misturado com rugidos de tigres dentro de uma
caverna.
Se algumas pessoas juram ter visto o Caboclo D’Água, Seu
Antonio Felipe garante que este ser sobrenatural só aparece para ele: “O
caboclo me jurou de pé junto que nunca vai deixar ninguém ver ele. Só eu. Se
alguém disser por ai que também viu o Caboclo D’água pode ter certeza que não é
o verdadeiro”.
Antonio Felipe, 89 anos, único em Barra Longa que
já ‘conversou’ com o Caboclo D’Água
Foto: David da Silva – 19.out.2017
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Amizade esquisita
A intimidade do Seu Antonio Felipe com o Caboclo D’Água
remonta aos seus tempos de criança: “Uma vez quando eu era pequeno, na beira do
Rio do Carmo, lá pras bandas da fazenda do meu pai, eu vi uma coisa pequena
descendo rio abaixo, bem rapidinho, na correnteza. Perguntei pro meu pai o que
era, e ele disse: ‘é o dedo do Caboclo D’Água’ [para não ser visto, o caboclo
vai sempre por debaixo da água, só com um dedo pra fora]. Desse dia em
diante o Caboclo D’Água não me deu mais sossego”, diz com resignação risonha.
Antonio Felipe completou 89 anos no último dia 1º de
outubro. Nasceu na localidade Floresta, distrito de Barra Longa. Nestes quase
90 anos nunca pôs os pés fora do município.
Eu encontrei o veterano contador de ‘causos’ na margem do
Rio do Carmo no dia 19 do mês passado. Todos os dias Seu Antonio Felipe vai até
a beira do rio por volta do meio-dia – é a hora em que o Caboclo D’Água gosta
de aparecer.
O folclórico personagem tem temperamento difícil, diz o
narrador: “Mas com o tempo ele foi acostumando comigo, tomando confiança. Se
mostrando aos poucos. Hoje somos meio amigos. Amizade esquisita, mas é amizade.
Vive me vigiando por aí, fazendo eu passar um aperto danado. Vira e mexe
aparece. Tem hora que tá brabo, tem hora que tá bonzinho”.
O sol quente de Barra Longa nos empurra para a sombra, mas
Seu Antonio Felipe não perde o fio da história: “Ele é meio estranho. Uma coisa
misturada de gente com assombração. Não dá pra dizer direito como ele é. Nem a
cor. Parece cor de burro fugido. É grande, meio magro, desengonçado”.
O velho narrador relembra dos seus tempos no garimpo Foto: David da Silva |
O olhar saudoso de Antonio Felipe se espicha para o meio
do rio: “Essa praça aqui onde a gente está era a ‘prainha’. O povo tirava muito
ouro aí do rio”. Pergunto se a exclusividade que o Caboclo D’Água lhe dá nas
aparições é boa ou ruim: “Muita gente caçoa da história. O caboclo gosta de me
ver passar por mentiroso”.
A lamaceira da Samarco que detonou Barra Longa mexeu com
os brios do Caboclo D’Água: “Esses tempos atrás ele tava meio nervoso”, conta
Seu Felipe. “Veio com um jeito todo estranho, querendo explicar alguma coisa. Mas
eu não tava entendendo nada. Ficou nervoso e me atacou”.
O velho levanta a barra da calça e me mostra a cicatriz: “O
Caboclo me deu uma mordida na perna que custou muitos dias pra curar”. Por
causa da mudança agressiva de temperamento do seu estranho amigo, Seu Felipe
treinou um cachorro para caçá-lo: “Depois da lama o Caboclo tá demorando pra
aparecer”.
A família por testemunha
A família por testemunha
Atualmente
a professora de artes visuais Simone Maria da Silva, 40 anos, é uma das maiores
vítimas da lama que atacou Barra Longa. Mas antes de a Samarco tornar sua vida em
um inferno, no ano 2011 Simone gravou um depoimento sobre sua experiência
pessoal com o Caboclo D’Água (assista ao vídeo no final da postagem):
"Muita gente diz que isto é conto de pescador, que é lenda. Mas é realidade. Eu morava na Rua 1º de Janeiro, e lá em casa o banheiro era do lado de fora. Eu estava tomando banho quando começou um assovio de arrepiar o corpo. Um assovio que não tem explicação. Não existe assovio igual àquele. Põe medo na gente quando a gente ouve. Daí meu pai disse: ‘Ô, minha filha, sai do banheiro porque o Caboclo D’Água tá na beira do rio’. De tanto medo, eu fiquei paralisada. Meu pai teve de entrar no banheiro e me carregar pra dentro de casa. Em casa [naquela hora] estavam eu, meu pai, minha mãe que hoje é falecida, meu irmão, e minha tia Cristina. Meu pai ligou o carro, virou [o veículo com os faróis acesos] para o lado do rio, e iluminou. O bicho tem a estatura de um homem, é encurvado assim [para a frente] tem uns pelos marrom-escuro. Na hora que meu pai conseguiu clarear [com o farol do carro] o Caboclo D’Água pulou no rio. Quando ele pulou a água abriu toda e fez um barulho como se um elefante tivesse pulado nela. Misericórdia! Só Jesus mesmo. É uma coisa que não tem explicação. Meu pai teve que comprar outra casa porque não tive mais coragem de morar lá”.
Barra Longa hoje vive o temor popular que o Caboclo D’Água
tenha morrido no lamaçal que a Samarco despejou na cidade.
Mas dias depois do meu encontro com Seu Felipe, tomando uma pinga na bodega ao lado da Ponte Quindumba um cidadão me falou: “No dia da lama passou aí no meio do rio uma touceira de bambus. A touceira sozinha. Foi até lá em cima na Capela Velha. Depois a touceira voltou, desceu o rio”.
Mas dias depois do meu encontro com Seu Felipe, tomando uma pinga na bodega ao lado da Ponte Quindumba um cidadão me falou: “No dia da lama passou aí no meio do rio uma touceira de bambus. A touceira sozinha. Foi até lá em cima na Capela Velha. Depois a touceira voltou, desceu o rio”.
Um comentário:
Moro em Boa Esperança - ES e aqui havia essa lenda também, infelizmente se perdeu com o passar das gerações. Tinha a mesma finalidade de colocar medo nas crianças pra não entrarem no rio em épocas de chuva, porém a fisionomia do Caboclo D'agua aqui era algo mais bestial e de tamanho menor. Meio que um coelho sem pelagem e com os dentes destrutivos de um cão.
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