Por Ana Aranha
Publicação original do
blog Reportagem 3 por 4,
do Yahoo Notícias
Pilar em sua casa em Taboão da Serra - Foto: Ana Aranha |
Tula Pilar Ferreira gosta
de se arrumar para sair de casa. Afivela a sandália, passa hidratante nos
braços e nas pernas, combina o par de brincos com as cores da saia ou da faixa
no cabelo.
Uma vez por mês, porém, o
rito se inverte. Pilar escolhe uma camiseta surrada, calça o sapato mais velho
(pisando o calcanhar na parte de trás), prende o cabelo e puxa alguns fios para
cima, como se estivessem desleixadamente soltos.
O ritual às avessas começou
no início do ano, quando ela foi recusada pelo posto de atendimento do programa
Bolsa Família. Pilar recebe R$ 64 mensais como complemento de renda para criar
a filha de 7 anos e o filho de 16. “A mulher me olhou de cima a baixo”, lembra,
imitando a surpresa que viu no rosto da funcionária. “Primeiro, disse que ali
era o Bolsa Família, como se eu tivesse no lugar errado. Quando eu expliquei
que era cadastrada, ela disse que o posto estava fechado”.
Pilar foi embora. Voltou
no dia seguinte, no mesmo horário, mas vestida com roupas velhas. Foi atendida.
Desde então, ela usa o “disfarce” sempre que precisa verificar o seu cadastro.
Disfarce porque, embora tenha dificuldades para pagar as contas da casa, a sua
figura é o avesso do estereótipo procurado pelos olhos da funcionária.
Pilar é uma poetisa de
sorriso largo. Faz sucesso nos saraus da periferia de São Paulo e comanda
alguns deles no centro da cidade. Nesses eventos, ela recita seus versos
preferidos (alguns deles parte dos seus escritos da "poesia erótica")
e dança ao som de percussão.
Seus poemas foram
publicados em um livro artesanal: “Palavras Inacadêmicas”. Uma coletânea de
poemas provocadores, como a autora. Vaidosa, esconde a idade. Depois de alguma
insistência, e tentativas de cálculo a partir do nascimento da filha mais
velha, ela concede: “sim, mais de 40” .
Pilar começou a escrever
aos trinta, depois de trabalhar por mais de duas décadas como empregada
doméstica e passadeira. Ela não via futuro nas casas de família e lavanderias,
mas levou alguns anos tomando coragem para dar o salto e deixar o emprego fixo.
Hoje, apesar do espaço
conquistado, ela paga um preço alto por sua escolha. Nesse momento deve dois
meses de telefone e energia. Se não pagar, a família ficará no escuro de novo –
já ficaram seis meses sem luz. Para as refeições semanais, Pilar garante arroz,
feijão e legumes. Carne só no fim-de-semana. Eles moram em Taboão da Serra,
divisa com a capital paulista. A casa alugada tem uma varanda, cozinha, sala,
banheiro e um quarto, que ela divide com os filhos.
A fase mais difícil foi no
começo da mudança, quando tentava entrar no mercado da produção cultural. Pilar
fazia bicos como vendedora de jazigo e de ingresso de teatro, mas não conseguia
pagar o aluguel. Enquanto a proprietária ameaçava despejo, ela perambulava pela
cidade com uma maçã no estômago, tomando água para “inchar a fruta na barriga”,
ensinamento da sua mãe para enganar a fome.
Foi em uma dessas saídas
que, no auge do desalento, encontrou um caminho. Exausta, sentou sob o vão do
Masp e se deixou “chorar como uma criança”. Entre as lágrimas, viu um sujeito
distribuindo algo e foi até ele: “Moço, essa empresa paga pra distribuir?”
Assim descobriu a revista
Ocas , publicação produzida por jornalistas e escritores voluntários para ser
vendida por moradores de rua, que ganham R$3 por edição. Convidada a participar
do projeto, esclareceu que não era moradora de rua, mas ouviu do vendedor: “não
é agora, mas logo vai ser”.
A frase lhe chacoalhou e
Pilar agarrou a chance. Passou a ser vendedora e, depois, coautora de textos da
revista, o que projetou seu nome no meio da chamada cultura alternativa. Com
talento, e graças à nova rede, passou a ser convidada para cursos e saraus
remunerados. Assim, conheceu a África do Sul durante a Homeless World Cup (Copa
Mundial Sem-Teto) e foi entrevistada no programa Provocações, conduzido por
Antônio Abujamra, na TV Cultura.
A escolha lhe dá
satisfação pessoal e profissional, mas ainda rende sérias dificuldades
financeiras. Por isso, conta com os 64 reais mensais do Bolsa Família. Não sem
conflito. Na primeira vez que lhe perguntei sobre o benefício, Pilar achou que
seria melhor não falar do assunto. “Não é que eu tenha vergonha, mas não queria
receber, tem gente que pode precisar mais”.
A sua justificativa para
continuar no programa pode ser uma boa reflexão para os críticos, aqueles que
acham que o benefício acomoda e faz as pessoas tomarem um “caminho fácil”,
abandonando a vida economicamente produtiva. “Prefiro ficar no programa, por
enquanto, para poder correr atrás do que acredito, a pegar um emprego qualquer.
Não quero ser como essa gente que faz o trabalho meia boca pra esperar a
aposentadoria”.
O programa federal e o
projeto social ajudam Pilar na batalha para construir uma carreira diferente
daquela que lhe foi atribuída aos 8 anos. Nessa idade, ela começou a trabalhar
como babá e doméstica para uma família de Belo Horizonte, Minas Gerais, onde
viveu durante a infância. Ela cresceu levando beliscões e puxões de cabelo dos
patrões quando insistia em brincar. “A patroa rasgava os meus desenhos, aquilo
me dava uma raiva”.
Cansada, certa vez se
recusou a engraxar os sapatos e se trancou no banheiro. “Fiquei umas duas horas
lá dentro. A patroa chamou o marido e ele disse bem assim: ‘sua negrinha, dê
graças a Deus que a gente te dá casa e escola”. Pilar, que estudava em um
colégio público, respondeu com um grito, por trás da porta: “Eu quero voltar
pra favela!”.
E voltou. Mas os patrões
da infância deixaram uma marca. Desde então, ela sente as mãos tremerem quando
os chefes levantavam a voz ou usam um tom mais duro. Mesmo assim, ela continuou
reagindo às situações que considerava injustas, o que lhe obrigou a trocar de
emprego diversas vezes.
Aos 17, mudou-se para o
Rio de Janeiro, para trabalhar como babá em um apartamento na Avenida Vieira
Souto, a rua da praia de Ipanema e um dos metros quadrados mais caros da
América Latina. Com essa família, conheceu a Argentina e o Chile e viveu seus
primeiros momentos de “glamour”, como ela gosta dizer. “Quando eu entrava nos
salões com a menina no colo, todo mundo olhava. Eu era bem preta do sol, e ela
ruiva, dava aquele contraste bonito. As pessoas olhavam como se eu fosse uma
artista”.
Hoje, quando sente a
energia dos aplausos ao fim de uma apresentação, deseja intimamente que as
antigas patroas estivessem na plateia. “Queria que vissem onde cheguei”. Os
aplausos são uma consagração, parte importante da vitória de sua escolha, mas
Pilar sabe que sua arte ainda precisa atravessar outras fronteiras.
Principalmente as cotidianas, que são as mais difíceis de alcançar.
Na semana passada, ela foi
visitar a filha mais velha, que mudou-se para um apartamento no centro,
deixando saudades. Dormiu na casa da filha e, no fim da manhã, não encontrou o
ânimo habitual para se produzir antes de sair. No elevador, foi recebida com
surpresa por uma moradora do prédio.
- Nossa, você já terminou
o serviço? Que beleza. A minha leva o dia todo, coitada, está velha.
Pilar sentiu o tremor nas
mãos que não experimentava há anos. Suspirou fundo e achou melhor não criar
polêmica no prédio da filha.
Ana Aranha |
Ana Aranha - Jornalista formada pela Universidade de São Paulo,
cobriu política e sociedade ao longo de sete anos como repórter da revista
Época, sempre com foco no interesse público e na promoção dos direitos humanos.
Tem 11 prêmios de jornalismo.
Pela cobertura de educação pública, ganhou dois prêmios
Ayrton Senna (2008 e 2010) e uma menção Honrosa do Vladimir Herzog (2009).
Suas reportagens sobre trabalho escravo e outras
violações a direitos humanos também receberam o reconhecimento da Organização
internacional do Trabalho, Instituto Ethos e Associação de Gays, Lésbicas,
Bissexuais de São Paulo, entre outros.
Como jornalista independente, publicou no jornal
britânico Guardian, no espanhol El Mundo, além das edições locais da revista
Rolling Stones e Marie Claire.
Para
o blog Reportagem 3 por 4 conta
as histórias de quem vive o cotidiano da notícia, mas nem sempre ganha as
páginas dos jornais.
Leia mais sobre a poetisa Tula Pilar aqui
Um comentário:
É... interessante ficar na frente de um posto de cadastramento do bolsa familia e ver os carros dos necessitado; o que eu vi e conheço, tem uma Eco-Sport ano 2010.
Um amigo tem carro importado um belo sobrado e um ap daqules perto do shopping.
...
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