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Ambulante senegalês na Estrada do Campo Limpo - Foto: David da Silva - 10.nov.2020
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Por David da Silva
A
paronomásia “ser negão no Senegal deve
ser legal” criada por Chico César na sua canção mais famosa [“Mama África
“, de 1995] não faz sentido algum para os 5.995 senegaleses que em dezembro de
2019 aguardavam o visto de permanência no Brasil.
É
sofrido ser negão no Senegal.
Segundo
a Polícia Federal, 14.106 senegaleses migraram para o Brasil entre os anos de
2010 a 2017. De janeiro a outubro de 2014, os senegaleses foram o povo que mais
solicitou refúgio no Brasil – 1.687 pedidos. O número caiu drasticamente de janeiro
a maio de 2020: apenas 173 pedidos de refúgio devido ao fechamento de
fronteiras por causa da pandemia.
Foi
a canseira nas pernas que levou Birame a sentar-se ao meu lado no bar
Fecha-Nunca, zona sul de São Paulo. Estudante do 3º ano de Direito na Université
Cheikh Anta Diop, ele meteu o pé na estrada empurrado pela grave crise
econômica do seu País. Foi com Birame que estabeleci o primeiro melhor contato
com imigrantes senegaleses que percorrem as ruas de Campo Limpo e Taboão da
Serra. Ele fala francês (língua oficial do Senegal), inglês, espanhol e
principalmente wolof, idioma nativo da África Ocidental e dominante entre o
povo senegalês. A grande maioria dos imigrantes senegaleses que batalha como
vendedor ambulante não sabe ler ou escrever, o que dificultava nosso diálogo.
Com Birame aprendi algumas frases básicas da língua wolof, e até receita do
prato mais típico da sua nação.
Agora
é comum eu cruzar com senegaleses na nossa quebrada e trocar cumprimentos como “Sama
xarit, na nga def?” e eles sempre sorridentes respondem “Maa
ngi fii”.
Pelo
seu bom grau de instrução, Birame não perambula mais por Campo Limpo e Taboão
vendendo relógios, tênis, bijuterias, etc. Meus bate-papos mais constantes
agora são com Diop Issa, 25 anos, que se mandou do Senegal em 2015, e só depois
de dois anos e meio andando como clandestino pelas nossas ruas teve atendido
seu pedido de permanência no Brasil.
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Senegalês mostra produtos a clientes em restaurante - Foto: David da Silva - 19.maio.2016
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Em
2017 o Conselho Nacional de Imigração deferiu 2.285 autorizações de permanência
de senegaleses. A fila de espera tangencia hoje 6 mil pessoas como se viu no
parágrafo de abertura.
Nessa
reportagem você vai seguir passo a passo a saída de senegaleses da sua terra
natal até chegar aqui.
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Foto: David da Silva - 08.out.2020
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O chamado da carne
A
primeira grande leva de imigrantes senegaleses veio ao Brasil trabalhar nos
frigoríficos que aderiram ao abate Halal, visando exportar carnes para países
muçulmanos. O abate Halal só pode ser executado por praticantes do islamismo,
seguindo regras rígidas do Alcorão. Segundo a pesquisa “Os novos rostos da
imigração no Brasil”, publicada em 2014, mais de 300 empresas brasileiras
vendem carnes para cerca de 40 países de religião muçulmana, que é a crença
predominante no Senegal.
O
número de carteiras profissionais emitidas no Brasil para imigrantes
senegaleses saltou cinco vezes de 2012 para 2013 e chegou a 2.657 em 2016. Mas não
há facas para tantas mãos, e quem não conseguiu emprego na indústria
frigorífica teve de pegar o rumo da rua como camelôs.
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Carteiras profissionais emitidas para senegaleses no Brasil
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Inferno na Terra
Prometida
A
vinda do Senegal para o Brasil, pelo sofrido caminho dos imigrantes ilegais, custa
em torno de 6.500 dólares. As famílias e os amigos ajudam com o que têm, fazem
vaquinha, e colocam o filho pródigo no avião. Metade do que ganham aqui é
mandado para lá em retribuição.
Meu
amigo Diop Issa partiu da cidade de Mbacké, a 190 km de Dakar, capital do
Senegal.
Se
voasse de Dakar para SP, com escala na Espanha, seriam em torno de 19h a 23h de
viagem. Mas o sendeiro dos excluídos é comprido e pedregoso.
Uma
reportagem de junho de 2017 descreve Mbacké como uma comuna onde centenas de
famílias “vivem em pobreza extrema e indescritível”. Foi para fugir dessa
estatística que Diop Issa juntou toda a grana que podia e pronunciou o nome de
São Paulo.
O
voo Dakar-Madri leva de quatro a cinco horas. De Madri a Quito, mais 11 horas e
meia. O ingresso na América via Equador é porque aquele País não exige visto de
entrada de estrangeiros.
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Arte: Guilherme Gonçalves | Zero Hora
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Na
capital equatoriana os senegaleses iniciam uma jornada terrestre de nove dias
até o Acre, passando por Lima, capital e o interior do Peru. Se por ventura
tiverem de vencer algum trecho a pé, são atacados por malandros que abordam os
imigrantes fatigados fingindo querer ajudá-los, mas tomam suas malas e somem no
meio da mata. Os que não roubam, exigem propinas de 20 dólares para não denunciá-los
à polícia. A polícia peruana é bandida. Intercepta os ônibus lotados de
imigrantes e cobra “pedágios” de 100 a 200 dólares pra liberar a estrada. Exaustos
de extorsão, os sofridos senegaleses finalmente veem a placa da fronteira
Peru-Brasil.
São
Paulo ainda está a 4 mil km de distância. Mais 79 horas de rodovia. Quase 4
dias pela frente
Ao
entrar em nosso território por Assis Brasil, os viajantes têm duas escolhas de
locomoção – os próprios pés ou os tristemente famosos táxis-lotação. Enquanto
não chegarem a Rio Branco, a mais de 300 km, onde podem oficialmente pedir refúgio, os
senegaleses são considerados clandestinos. Os taxistas podem negar o transporte
ou exigir o dobro do que cobram de outros passageiros.
O fim da saga senegalesa
No
auge da revoada senegalesa, o governo do Acre reservava um alojamento sórdido
para imigrantes africanos e caribenhos. A imundície do lugar era um estímulo a
mais para os peregrinos saírem dali o mais rápido possível.
Quando
o campo de refugiados incha (como inchava) demais, o governo estadual aluga ônibus
para despachar os visitantes incômodos.
Na
ruazinha de terra onde os senegaleses se abrigam o motorista do ônibus age como
um Moisés abrindo um mar vermelho:
-
São Paulo! São Paulo! Bora comprar passagem logo, macho. Pro ônibus ir embora
logo, macho.
Mesmo
quem tá com a grana, costuma fazer hora, na esperança de conseguir poltrona no
ônibus grátis do governo. Isso atrasa a saída do ônibus pago por dois ou mais
dias.
Com
a lotação completa, novo capítulo da saga senegalesa. A travessia do Rio
Madeira por balsa encanta e assusta. A Ponte Abunã de 2 km de comprimento iniciada em
2014 já ‘comeu’ mais de R$ 130 milhões e ainda está em obras. Prometeram
inaugurá-la em setembro de 2019. Adiaram para o fim de 2020. Mas nada nem
ninguém garante.
Três
dias e meio depois de escapar do inferno em Rio Branco, os senegaleses têm à
sua frente a Rodoviária do Tietê e uma São Paulo plena de possibilidades.
A
maioria dos que conheço mora em uma república em um prédio de fachada arredondada na Avenida Ipiranga, nº 73, a poucos metros do
Consulado Honorário do Senegal, naquela mesma avenida.
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Prédio alugado por senegaleses na esquina da Avenida Ipiranga com Rua Consolação Foto: David da Silva - Apoio: Táxi Lucas |
Mais problemas à vista
(e a prazo também)
Em
uma medida intempestiva, e sem dar nenhuma explicação, o presidente do Senegal,
Macky Sall, trocou todo o seu ministério no último 28 de outubro. Diz que é
para enfrentar os efeitos econômicos da crise sanitária mundial. Só que ele
está no poder desde 2012, muito antes da pandemia, já foi primeiro-ministro do
País em 2004, e a diáspora senegalesa ainda é uma hemorragia que não estanca.
O
coronavírus está sendo um aliado do presidente senegalês para adotar medidas
autoritárias.
Na
semana passada, em 17 de novembro mais de 300 pescadores do Senegal voltaram do
mar com com seus corpos todos cobertos de bolhas, uma misteriosa moléstia de pele que especialistas classificam como doença tóxica de origem desconhecida.
Não
é nada fácil ser negão no Senegal
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Foto: David da Silva - 19.nov.2020
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