Augusto Cerqueira e David da Silva - Foto: Marco Pezão
|
Tá por
aí. Desde dezembro de 2013. Solto nas ruas feito vira-lata que não nega raça. O
livro de contos Na Década de Dez
marca a estreia de Augusto Cerqueira na literatura impressa. Na literatura
falada dos saraus ele já é veterano. E um dos referenciais da cultura
periférica na Grande São Paulo.
Poemas e
cordéis de Augusto Cerqueira já perambulam por algumas coletâneas. Mas este
volume com 10 contos é o start da sua
carreira em livro solo. Maloqueiro que se preza nunca anda sozinho. Por isto o
livro foi lançado juntamente com o CD Sarau
do Augusto.
O livro
é todo impresso em letra cursiva, na caligrafia do próprio escritor. Exigência
do Augusto aos editores. Como se recebêssemos de suas mãos o manuscrito
original. Contato físico com o calor da escrita humana, num contraponto à
frieza desta era digital.
Nenhuma
página é numerada. Tudo está escrito em letras minúsculas – nomes de gentes, de
bichos, lugares.
Como diz
um dos personagens, o ofício de Augusto Cerqueira é exprimir “em letras as
desordens da minha cabeça”. Boêmio inveterado, o poeta-contista nos agarra
pelos olhos para um mergulho profundo na alma encantadora das ruas, nesta
triste e linda zona sul paulistana.
Sob o signo da migração
Nenhum
personagem do livro está quieto no seu canto. Todos vivem em trânsito, mudando
de casas e de empregos, transferindo-se de cidade a cidade, trocando um amor
pelo outro.
O leitor
é conduzido para a vadiagem literária por bairros como Socorro, Piraporinha,
Capão Redondo, Vaz de Lima, Jardim Imbé. Com esticadas aos subúrbios da Grande
Sampa – Osasco, Barueri, Mairiporã, Carapicuíba...
Um
deslocamento meio que agônico pelo espaço e pelo tempo.
Com
direito a uma parada no litoral paulista (Praia Grande) num conto onde nada
acontece ao redor – a agitação se dá na alma do personagem, no estilo típico de
Clarice Lispector.
Virando-se
algumas páginas, Augusto nos arremessa a duas aventuras situadas no início do
século passado – a primeira delas no sertão da Paraíba, e a outra num local não
definido em plena caatinga nordestina.
A letra
de mão de Augusto Cerqueira nos leva pra onde “o vento da curiosidade soprar”.
Ilustração de Renata Felinto para livro de Augusto Cerqueira |
Sutis seduções
A sedução
é uma constante nas 10 estórias. Numa linha muito próxima à das autobiografias
romanceadas de Henry Miller. Mas, ao contrário do escritor norte-americano,
aqui tudo é contado com erotismo sutil.
Nas 132
páginas da obra, a figura feminina tem o dom da ubiquidade.
Há
mulher por toda parte. Tem Ana, Paulinha “da sexta série”, Helena, Dara, Aline,
dona Estela, Cleide, Rita.
Tem a estonteante
dançarina de strip-tease Dora...
E a
inesquecível dona Aurora com apenas um colar de pérolas sobre sua pele excitante
de sessentona cor de bronze (musa do conto mais antigo, escrito em 2006).
Maluquices maloqueiristas
Entre os
personagens masculinos, não há nenhum certo da cabeça. “De perto ninguém é
normal”, diz Caetano Veloso, conterrâneo dos pais de Augusto, nascidos em Santo
Amaro da Purificação (BA).
Um
destes homens criados pela mente inquieta do autor (ou seria ele mesmo?) tem a
capacidade de considerar um parque arborizado com crianças e idosos em lazer
como “um inferno”.
Outro já
se afeiçoa de uma piscina abandonada, com larvas nadando em água esverdeada, e
cheio de cachorros em volta esvaziando os intestinos (“adorei este lugar”).
Há outra
cachorrice divertida. O personagem desempregado do segundo conto do livro fica
irritadíssimo ao saber que o dog alemão Duque é astro de filme pornô (“Esse
cachorro come melhor que eu”).
As
relações amorosas por vezes enveredam para situações inesperadas, como no conto
Viúva de Isa.
Como não
podem faltar cenas de sangue em nada que se refira à periferia, a tragédia
também bate cartão de ponto entre um e outro conto. Está presente na morte
desconcertante da nadadora salva-vidas Aline. Ou na morte nada misteriosa de
Amintas, o “comedor de mulheres casadas”.
Botequeiro
infalível, Augusto Cerqueira tem o humor cáustico bem dosado. Não há como
evitar o riso ao saber que o personagem Odivan Oliveira Silva recebeu de sua
mãe este nome inspirado em famosa canção de Roberto Carlos (“O Divã”).
Por trás
da escrita despachada, respira uma sintaxe caprichada. Augusto Cerqueira brinda
o leitor com aliterações e assonâncias abusadas (como na descrição da dançarina
Dora: “fêmea fera de gosto afoito pelo coito”).
Já no
conto de abertura, o poeta e contista alça voo literário digno de Gustave
Flaubert.
A morena
Marina de gaiatice no olhar, em plena idade desejável. Casada a contragosto por
imposição da mãe. Capaz de resignar-se com sua triste sina, ao se encantar com
o brilho de um raio de sol sobre o fungo lilás brotado numa lata de tomate,
esquecida pela metade no único vitrô do cubículo no porão onde vai viver sua
lua de fel.
Nenhum comentário:
Postar um comentário