sexta-feira, 4 de julho de 2014

Nove dias e oito noites no bairro de Borges

Baixei em Buenos Aires sem reserva onde dormir.
Suzi estranhou eu vir assim de jeito zíngaro.
Mas, meti uma grana no bolso e... “deixa a vida me levar”.
Quis a sorte que eu quedasse hospedado em Palermo.
Foto: David da Silva - 29.abr.2014
Bairro onde o escritor Jorge Luis Borges viveu toda sua infância e metade da juventud.
Minha sina é mãe, e não má-drasta.
Depois da primeira noite portenha dividindo quarto com Helena, o destino decidiu me cambiar pra outra rua. Pra um lugar chamado Borges Design Hostel.
Já te disse. Minha sina é mãe.
O Borges Design Hostel fica perto da casa onde Jorge Luis Borges viveu dos seus dois anos aos 15 anos de idade. O hostel é um casarão de três andares, construído no final da década de 1920. Escadas de madeira maciça, elevador de porta pantográfica. Uma delícia de tradicionalismo incrustado no bairro da vanguarda cultural da capital argentina.
Agradeci. Minha sina não é má-drasta.

Palermo Velho sempre redivivo
Antes d’eu chegar a Buenos Aires, há muito essa cidade já estava aqui dentro de mim.
Muitas vezes fiz a viagem imaginária com Clara no conto Ônibus, do Júlio Cortázar. Cruzava mentalmente toda a cidade, desde a Villa Del Parque até o bairro Retiro.
O bairro Palermo eu conheci ainda moleque pela escrita de Jorge Luis Borges.
É do tamanho da minha cidade. Taboão da Serra tem 22,5 km². Palermo tem 15,9 km². A população taboanense é de 264.352 pessoas. A de Palermo, 225.970.
Situado na zona norte de Buenos Aires, Palermo hoje tem tudo. Aeroporto, zoológico, jardim botânico, planetário, hipódromo, a maioria dos estúdios de canais de televisão, produtoras de cinema. Habitado por artistas e profissionais liberais. Uma espécie de Vila Madalena paulistana em tamanho gigante.
Mas teve uma origem perigosa, boca quente, barra pesada. História contada na ponta das facas. Homens se sangrando a cada esquina. Era bairro tão pobrezinho, habitado por gentes tão baixa renda e tão sem profissão, que o apelidaram “Terra do Fogo”. Comparação maldosa com a região de natureza mais carrasca e mais longínqua da Argentina.
A visão do bar El Preferido de Palermo evoca o conto Homem da Esquina Rosada, de J. L. Borges. Fundado em 1959, o bar e restaurante está entre os 73 mais famosos de Buenos Aires. É reconhecido pela administração municipal como patrimônio histórico da cidade. Foto: David da Silva – 29.abr.2014
Bar-restaurante El Preferido vestido para a noite
Borges ensina nos seus contos e crônicas que Palermo foi em seu berço um local de inquilinatos. Semeado aqui e ali, esparsamente, pelas “cazas-chorizo” (“casas-lingüiça”, com habitações grudadas uma às outras feito gomos).
Borges interrogou em seus textos os mistérios de Palermo. Impossível a gente saber o que foi real ou fantástico. Seus contos são povoados por valentes e brigões. A quem ele chamou “compadritos”.
Usou em suas estórias a linguagem tosca, rústica, palavras dos arrabaldes para desvendar a alma do seu povo. Para construir sua obra, Borges buscava os entardeceres, os subúrbios, a miséria.
O bairro Palermo da infância de Borges era, segundo ele, de “uma pobreza despreocupada”. Os dias escorrendo sempre iguais perante as varandas humildes. Vez ou outra o silêncio quebrado pelo apito de um vendedor de amendoins. Bairro de moral arruinada, esquinas de agressão ou de solidão, com homens se chamando por meio de assobios a fim de se baterem com punhais e logo sumirem pelos becos escuros. “O bairro era uma esquina final”.

Terra ingrata
Borges recolheu pessoalmente em livros estas histórias até o dia em que a visão o abandonou.
Contou-nos em seus contos que Palermo era um bairro alagadiço. (A rua em que fiquei hospedado na primeira noite, e que está bem aqui à minha frente agora, não por acaso se chama Calle Charcas – Rua Lagoas).
Para construir o bairro, foram trazidas milhares de carroças de terra preta tiradas das propriedades do caudilho Juán Manuel Rosas. O político construiu no bairro sua casa de campo. As obras do aterro duraram dois anos ininterruptos para nivelar e preparar o terreno arenoso, até que o barro e a terra ingrata sucumbiram à vontade de Juán Manuel Rosas.
Assim se deram, no estilo enxuto e elegante de Borges, “as etapas da distraída marcha secular de Buenos Aires sobre o bairro Palermo”.
Enquanto pôde caminhar pela cidade, Borges dizia que mesmo em suas desilusões e sofrimentos, Buenos Aires jamais deixou de consolá-lo com um toque de vida.
Aos 55 anos, a cegueira fechou seu cerco sobre o escritor. Ele conta a sensação deste incômodo acontecimento: “Uma das primeiras cores que se perde é o negro. Perde-se a escuridão e o vermelho também. Vivo no centro de uma indefinida neblina luminosa. Mas não estou nunca na escuridão. Neste momento esta neblina não sei se é azulada, acinzentada ou rosada, mas luminosa. Tive que me acostumar com isto. Fecho os olhos e estou rodeado de luz, mas sem formas. Vejo luzes. Por exemplo, naquela direção, onde está a janela, há uma luz, vejo minha mão. Vejo movimento mas não coisas. Não vejo rostos e letras. É incômodo mas, sendo gradual, não é trágico. A cegueira brusca deve ser terrível. Mas se pouco a pouco as coisas se distanciam, esmaecem… No meu caso, comecei a perder a vista desde o momento em que comecei a enxergar. Tem sido um processo de toda minha vida. Mas a partir de 55 anos, não pude mais ler. Passei a ditar”.
Outro morador famoso do bairro Palermo foi o guerrilheiro Ernesto Guevara. O “Che” viveu com seus pais por certo período na Calle Araoz, 2.180, a sete esquinas daqui onde estou.

Faço estes apontamentos no meu quartel-general, o Daniel’s Bar, na esquina da rua Charcas com rua Thames. Acho que por hoje basta de lembrar o passado heróico do bairro Palermo e seus homens destemidos.
Buenos Aires, 05.mai.2014

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