Baixei
em Buenos Aires sem reserva onde dormir.
Suzi
estranhou eu vir assim de jeito zíngaro.
Mas,
meti uma grana no bolso e... “deixa a vida me levar”.
Quis a
sorte que eu quedasse hospedado em Palermo.
Foto: David da Silva - 29.abr.2014 |
Bairro
onde o escritor Jorge Luis Borges viveu toda sua infância e metade da juventud.
Minha
sina é mãe, e não má-drasta.
Depois da
primeira noite portenha dividindo quarto com Helena, o destino decidiu me
cambiar pra outra rua. Pra um lugar chamado Borges Design Hostel.
Já te
disse. Minha sina é mãe.
O Borges
Design Hostel fica perto da casa onde Jorge Luis Borges viveu dos seus dois
anos aos 15 anos de idade. O hostel é um casarão de três andares, construído no
final da década de 1920. Escadas de madeira maciça, elevador de porta
pantográfica. Uma delícia de tradicionalismo incrustado no bairro da vanguarda
cultural da capital argentina.
Agradeci.
Minha sina não é má-drasta.
Palermo Velho sempre redivivo
Antes
d’eu chegar a Buenos Aires, há muito essa cidade já estava aqui dentro de
mim.
Muitas
vezes fiz a viagem imaginária com Clara no conto Ônibus, do Júlio Cortázar. Cruzava mentalmente toda a cidade, desde
a Villa Del Parque até o bairro Retiro.
O
bairro Palermo eu conheci ainda moleque pela escrita de Jorge Luis Borges.
É do
tamanho da minha cidade. Taboão da Serra tem 22,5 km². Palermo tem 15,9 km². A
população taboanense é de 264.352 pessoas. A de Palermo, 225.970.
Situado
na zona norte de Buenos Aires, Palermo hoje tem tudo. Aeroporto, zoológico,
jardim botânico, planetário, hipódromo, a maioria dos estúdios de canais de
televisão, produtoras de cinema. Habitado por artistas e profissionais
liberais. Uma espécie de Vila Madalena paulistana em tamanho gigante.
Mas teve
uma origem perigosa, boca quente, barra pesada. História contada na ponta das
facas. Homens se sangrando a cada esquina. Era bairro tão pobrezinho, habitado
por gentes tão baixa renda e tão sem profissão, que o apelidaram “Terra do Fogo”.
Comparação maldosa com a região de natureza mais carrasca e mais longínqua da
Argentina.
Bar-restaurante El Preferido vestido para a noite |
Borges ensina nos seus contos e crônicas que Palermo
foi em seu berço um local de inquilinatos. Semeado aqui e ali, esparsamente,
pelas “cazas-chorizo” (“casas-lingüiça”, com habitações grudadas uma às outras
feito gomos).
Borges interrogou em seus textos os mistérios de
Palermo. Impossível a gente saber o que foi real ou fantástico. Seus contos são
povoados por valentes e brigões. A quem ele chamou “compadritos”.
Usou em suas estórias a linguagem tosca, rústica,
palavras dos arrabaldes para desvendar a alma do seu povo. Para construir sua
obra, Borges buscava os entardeceres, os subúrbios, a miséria.
O bairro Palermo da infância de Borges era, segundo
ele, de “uma pobreza despreocupada”. Os dias escorrendo sempre iguais perante
as varandas humildes. Vez ou outra o silêncio quebrado pelo apito de um
vendedor de amendoins. Bairro de moral arruinada, esquinas de agressão ou de
solidão, com homens se chamando por meio de assobios a fim de se baterem com
punhais e logo sumirem pelos becos escuros. “O bairro era uma esquina final”.
Terra ingrata
Borges recolheu pessoalmente em livros estas histórias
até o dia em que a visão o abandonou.
Contou-nos em seus contos que Palermo era um bairro
alagadiço. (A rua em que fiquei hospedado na primeira noite, e que está bem
aqui à minha frente agora, não por acaso se chama Calle Charcas – Rua Lagoas).
Para construir o bairro, foram trazidas milhares de
carroças de terra preta tiradas das propriedades do caudilho Juán Manuel Rosas.
O político construiu no bairro sua casa de campo. As obras do aterro duraram
dois anos ininterruptos para nivelar e preparar o terreno arenoso, até que o
barro e a terra ingrata sucumbiram à vontade de Juán Manuel Rosas.
Assim se
deram, no estilo enxuto e elegante de Borges, “as etapas da distraída marcha
secular de Buenos Aires sobre o bairro Palermo”.
Enquanto
pôde caminhar pela cidade, Borges dizia que mesmo em suas desilusões e
sofrimentos, Buenos Aires jamais deixou de consolá-lo com um toque de vida.
Aos
55 anos, a cegueira fechou seu cerco sobre o escritor. Ele conta a sensação
deste incômodo acontecimento: “Uma das primeiras cores que se perde é o negro.
Perde-se a escuridão e o vermelho também. Vivo no centro de uma indefinida
neblina luminosa. Mas não estou nunca na escuridão. Neste momento esta neblina
não sei se é azulada, acinzentada ou rosada, mas luminosa. Tive que me
acostumar com isto. Fecho os olhos e estou rodeado de luz, mas sem formas. Vejo
luzes. Por exemplo, naquela direção, onde está a janela, há uma luz, vejo minha
mão. Vejo movimento mas não coisas. Não vejo rostos e letras. É incômodo mas,
sendo gradual, não é trágico. A cegueira brusca deve ser terrível. Mas se pouco
a pouco as coisas se distanciam, esmaecem… No meu caso, comecei a perder a
vista desde o momento em que comecei a enxergar. Tem sido um processo de toda
minha vida. Mas a partir de 55 anos, não pude mais ler. Passei a ditar”.
Outro
morador famoso do bairro Palermo foi o guerrilheiro Ernesto Guevara. O “Che”
viveu com seus pais por certo período na Calle Araoz, 2.180, a sete esquinas
daqui onde estou.
Faço
estes apontamentos no meu quartel-general, o Daniel’s Bar, na esquina da rua
Charcas com rua Thames. Acho que por hoje basta de lembrar o passado heróico do
bairro Palermo e seus homens destemidos.
Buenos
Aires, 05.mai.2014
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