Marie Ange Bordas. Foto: René Cabrales - 2011 |
Dá
impressão que o sobrenome dela é nome artístico de afirmação ideológica.
Afinal, todo o trabalho da fotógrafa Marie Ange Bordas é voltado para pessoas
que vivem à margem da sociedade, nas beiras do mundo.
Mas o
nome de família vem de Bordeaux, onde seu avô negociava uvas no sudoeste da
França. Gaúcha de Porto Alegre onde nasceu em 1970 e de onde foi embora aos 16
anos, Marie Ange, apesar do nomezinho angelical, nunca foi de beatitudes. Aos
25 anos de idade já tinha morado na Austrália, na França, Porto Alegre, São
Paulo, Nova York... É como se ela quando ainda menina também tivesse ouvido o
mesmo anjo torto que soprou no ouvido de Drummond: “Vai, Carlos, ser gauche na vida”.
Logo
mais, em novembro, será lançado em livro o resultado do trabalho de Marie Ange
Bordas com crianças da tribo kaxinawá, no Acre, e da comunidade Mondongo, no
Pará. No projeto Tecendo Saberes, a criança indígena aprende a ler e a escrever
a partir da sua própria realidade. Uma criança da cidade pode entender “A”, de
amor, “B”, de bola, “C” de casa, etc. Mas
lá, no coração da Amazônia de selvas e rios, casa é oca. Melhor ensiná-las com “A”
de ashu e
atsa (tipos de árvores), “B” de bote, “C” de carapanã (espécie de
mosquito) e assim vai. Você que conhece o método Paulo Freire deve estar lendo
isto com meneios de satisfação na cabeça.
Marie Ange em seu trabalho como educadora em comunidades nativas. Foto: Andrés Velez |
As
próprias crianças recolheram lendas, receitas de comidas e brincadeiras a serem
reunidas em almanaques sobre o lugar onde vivem. “Já o alfabeto é um capítulo
feito por crianças para crianças. Elas é que criam novo jeito de aprender”,
explica Marie Ange.
A
atividade prodigiosa de Marie no Norte do Brasil é dose tripla do que ela já realizou
com êxito aqui no Sudeste e também no Nordeste. Em fevereiro de 2012 ela lançou
o Manual da Criança Caiçara. “A ideia
nasceu do meu convívio com uma comunidade de Iguape, litoral sul de São Paulo.
Foram dois anos de labuta no Ponto de Cultura Caiçara da Barra do Ribeira”,
conta a artista e educadora. O projeto recebeu o Prêmio Interações Estéticas da
Funarte/Minc.
Antes
disto, lançou em 2010 Histórias da
Cazumbinha, realizado com a comunidade quilombola do Rio das Rãs, no sertão da Bahia.
Lugar nenhum
Teu
encanto pelo o que esta mulher fez e faz em comunidades invisíveis brasileiras
vai virar adoração agora.
Leitora na infância de As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, e de Júlio Cortázar na
adolescência, Marie defende que não pode faltar na estante de uma criança livros
que a façam viajar e abram caminhos para outros mundos e culturas.
No ano 2000 ela começou a retratar a realidade em
campos de exilados na África (do Sul, Etiópia e Quênia), e entre refugiados do
que sobrou no Sri Lanka quando um tsunami destroçou a Ásia em 2004.
Cena do vídeo (Des)Apegos, de Marie Ange Bordas - Áustria, 2002 |
Jornalista, Marie largou a profissão.
“Como repórter eu só posso contar o que vejo. Já como artista eu posso
interferir para mudar o que vejo”, filosofa com a convicção de Mestra em imagem
e som pela ECA/USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo)
e se autodefine como “jornalista por formação, artista por quereres e educadora
por convicção”. “Eu acredito na criação visual (fotografia/desenho) como
ferramenta poderosa de construção de identidades individuais e comunitárias”,
garante. A artista se coloca como uma ponte entre as diferentes condições
culturais e de vida. Ela que viaja por vontade própria, se angustia pelas pessoas
que são forçadas a viver de um canto para outro, sem ter onde nem com o que se
identificar.
Um dos trabalhos de Marie Ange
Bordas que mais me marcaram foi o de outubro de 2002 com a comunidade kurda na
periferia de Paris. Há mais de 100 mil kurdos na capital francesa, vindos da
Turquia. Acantonam-se na maioria pelo trecho do 10º arrondissement (distrito).
Marie ficou três semanas por lá. Nas imagens que capturou mesclou poemas do
turco Nazim Hikmet (mártir da repressão). O resultado foi impresso em toalhas
de mesa de papel para restaurantes, e em cartazes lambe-lambes colados pelas ruas.
Desde 2007 Marie Ange tem ficado um
pouco mais no Brasil. Mas pensa que ela deu ao seu corpo ágil o merecido
descanso e conforto que pode ter aqui na São Paulo onde mora hoje?
Qual o que...
Tá lá, no meio do mato. Ensinando
crianças índias a contar a história dos seus povos.
Marie Ange com o músico Arrigo Barnabé. Foto: Júlio de Paula - 2011 |
3 comentários:
Minha amiga Marie Ange merece todos os elogios, pelo seu emprenho, dedicação, desapego, amor incondicional pelos outros e talento. Um beijo bem grande da amiga do coração, Mariana
Olhos não se compram, sensibilidade também não. Mas os dois não produzem nada de artisticamente relevante, menos ainda socialmente relevante, se não houver também uma determinação continuada, incansável. Marie junta isso tudo, e com graça.
Obrigada David pelas generosas palavras.
só queria dizer que não acho que ensino nada, apenas fomento, provoco
(talvez inspire…) as pessoas para enxergarem com olhos mais atentos sua
(rica) realidade. Como artista busco criar algumas pontes para que mundos se cruzem, pois não
acredito em uma sociedade com “pessoas à margem”. Uma pequena contribuição na utopia de um mundo sem bordas, fronteiras e desigualdades! grande abraço!
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