sábado, 9 de agosto de 2014

O casal que a enchente bebeu

Foto: Rogério Gonzaga
Existiu mesmo a noivinha que todos os sábados vem toda contente até o número 130 da Rua Sargento Estanislau Custódio, no limite de Taboão da Serra com São Paulo. O imóvel hoje propriedade do Teatro Encena era de um casal que teve seus sonhos engolidos pelas enchentes.
Ironicamente colado ao Jardim Celeste, o bairro foi um inferno líquido para o marido desenhista de molduras e a esposa dentista que pensaram um dia poder ser felizes naquele lugar. A história dessas vidas submersas é o eixo da tragicomédia em cartaz desde o dia 2 de agosto, sempre com platéia cheia. É necessário fazer reservas. O espetáculo começa no meio da rua com a cena de um casamento, e termina debaixo duma tempestade torrencial.
Quando foi comprar a casa para instalar seu teatro, o ator e diretor Orias Elias fez igual ao escafandrista da canção de Chico Buarque. Explorou “seus quartos, suas coisas, sua alma, desvãos”. Nas paredes do imóvel, Orias Elias pôde “ler” a evolução da degradação do matrimônio. Aponta bem acima da cabeça. “Ali havia marcas da altura das águas. Coisas que a enchente atacou e que o proprietário desistiu de recuperar. Coisas que ele sequer lavou”. Nas sobras de tudo que um dia chamaram de um lar, o artista encontrou vestígios da felicidade extinta.
“Quando eu vim pra cá, descobri velhas fotos de um tempo em que eles eram felizes. Pequenas coisas dessa relação. De um tempo em que existia o amor, a harmonia. Que existia o sonho. Esse casal vivia dentro de uma felicidade. Até que as enchentes vieram e destruíram toda a base de vida deles”, conta Orias.
Em meio ao seu relato, o ator e diretor teatral desenha no ar os lugares onde havia divisões dos cômodos da residência e do ambiente de trabalho do casal. “Ali em cima ficavam os motores da cadeira odontológica. Lá atrás o marido desenhava e fabricava suas próprias molduras para quadros”.
Impelido pelas lembranças, Orias Elias se levanta do sofá. A mulher não suportou ter sua vida encharcada pelas imundícies que a enchente arrastava para dentro da casa. “Ela abandonou tudo. E ele ficou aqui no meio dessa desolação, numa total solidão. A mulher criou um outro mundo para ela. Comprou um apartamentinho, montou outro consultório. Lá longe. No alto do morro do bairro Monte Kemel. Ele não reagiu. Ela subiu; ele ficou aqui enfiado no buraco. A vida dele entrou num processo de decadência”.
A casa desolada virou até ponto de venda de drogas, prossegue Orias. “Quando fomos assinar a escritura do imóvel, eles ainda tinham a comunhão de bens. Na época da venda da casa ela já era uma senhora, uma matrona. E ele um homem muito decadente. E eu vi o confronto entre os dois. Era uma tristeza no olhar dela, quando ela chegou e perguntou: ‘Como é que você está, Genésio?’ Ele também olhou pra ela com uma tristeza...  Eu percebi naquele momento o fim daquele sonho que um dia eles tiveram juntos. E isto foi destruído”.
Enquanto desfia a desventura do casal diluído pelas inundações, Orias Elias segura uma caneca. Mas não bebe. Isto me lembrou uns versos do poeta Miró: “Sangra a periferia bem de manhãzinha. E o café esfria de tanta dor”.

Serviço:
“Pirou, Jussara? Pendurar a vovó no banheiro?”, de Gilberto Amêndola. Direção: Orias Elias e Walter Lins. Com: Cadu Camargo, Claudio Bovo, Fernanda Garcia, Flávia D'Álima, Jacintho Camarotto, Orias Elias, Sabinna Di Colluccy, Thânia Rocha, Walter Lins e Zú Vieira
Aos sábados, às 20h30
Classificação: Livre
Duração: 80 minutos
TEATRO ENCENA
Rua Sargento Estanislau Custódio, 130
Fone: 2867-4746
Reserve seu lugar: encena@encena.art.br
Equipe Técnica - Percussão: Jeff Mendes; Operador de Luz, Som e projetor: Vagner Pereira; Iluminação: César Pivetti

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