para Lauro Medeiros
Rosa Falzoni. Foto: Sonia Bischain |
Por Rosa Maria Falzoni
Se me perguntarem do que mais sinto
falta, é do cheiro da chuva chegando. De úmido, de terra molhada que aumentava,
soprando junto com o vento.
Da rua eu tirei a primeira terrinha
para fazer minhas comidinhas, que partilhava com as bonecas. Sempre entendi que
a lama podia ser modelada, mesmo como bolinhos e papinhas das panelinhas, nas
brincadeiras de casinha.
A chuva era uma alegria; lá íamos eu e
os amiguinhos andar pelo meio das enxurradas, descalços, sem medo de nada, a
não ser cair dentro do bueiro, e sumir.
Esse
medo era constante, de tirar o sono. Sempre ouvia a história de crianças que,
em dias de chuva, escorregavam e sumiam pelos bueiros. Do caminho da escola eu
sabia de cor a localização deles. E quando eu me esquecia e quase caía?
No
começo da noite, depois da chuva ou durante ela, começavam a aparecer os sapos.
Os girinos. As pererecas. Animais com quem convivia muito na rua. Tínhamos o
mesmo habitat.
Nas três
raras vezes em que estivemos no laboratório da escola, qual era o animal que
dissecávamos? Ele mesmo: o sapo. Tamanha
a fartura, a facilidade de apanhá-lo.
Por isso
adoro fábulas que têm o sapo como personagens. Uma princesa, que ao caminhar no
campo encontra sapos, é totalmente aceitável no meu imaginário.
A chuva
estava presente mesmo não chovendo, pois deixava suas marcas e conseqüências
sempre. Eu morava no alto, e a água ia abrindo sulcos e fendas pela rua. Nos
dias secos, um transtorno, quando se caía, escorregava, desviava, pulava e
caminhava nelas. Nos dias de chuva caminhava-se dentro dos sulcos, junto com as
enxurradas, invariavelmente. Descalça, de chinelo, ou com o sapato da escola
mesmo.
Falo
também do mato que invadia as ruas, fazendo-as mais fininhas, irem afunilando
mais. Quase trilhas. O mato crescia mais
depois das chuvas, assim como dentro das casas, nos jardins e falhas do cimento
do quintal. Ervas cresciam também.
Nos
tempos de seca, de estiagem, era um pó só. No fim do dia as roupas ficavam com
o tom da terra; aliás, uma cor linda. Um
cor-de-rosa clarinho e brilhante. A pele da gente reluzia, principalmente nas
noites de lua cheia, quando ficávamos até tarde na rua brincando.
Tudo me
faz celebrar a chuva. A grande benção do céu.
Celebro
a chuva e lamento o aborrecimento das pessoas da cidade quando ela chega. Tudo
deveria ficar bom quando chove...
Então, a
chuva teve tudo a ver com a rua. De terra.
Com
aquela terra brilhante havia muitas pedrinhas. Isso me causou dificuldades
desde quando aprendi a andar. Por causa de tantas pedrinhas não conseguia
manter o equilíbrio, vivia escorregando e caindo. Tenho provas disso: em uma
queda, arranquei um pedaço de pele significativo do joelho, e tenho uma
cicatriz notável, profunda e bem diferente da pele. Ao cair eu me arrastei por
centímetros e chorei muito porque doeu.
Escorregar
na terra era constante. Os solados plásticos e duros das congas azul-marinho
proporcionavam um freqüente deslize. Os solados sempre manchados de lama, que
fazia a gente esquecer o que era o branco das coisas. Muitos sapatos meus
ficaram manchados de lama por vários anos. Ao circular por lugares mais
centrais, as pessoas viviam perguntando onde morava, de onde vinha. Vivia com
vergonha disso, mas, depois nem ligava. Cheguei a ter orgulho de carregar
manchas de lama nos tênis. Uma bobagem. Ter dificuldades é motivo de orgulho?
Lembro-me,
na adolescência, da amiga Inês, que morava um pouco mais no alto do que eu.
Depois de a família perder tudo, foi morar no Jardim Brasília.
Ela nunca se
conformou. Nos dias de chuva, ia para a avenida, no ponto de ônibus, com dois
saquinhos plásticos no pé, em volta dos sapatos, para não se sujar de lama.
Pouco adiantava, pois vivia espirrando lama na roupa, nem que fossem uns
pinguinhos. Sempre levávamos a terra da rua com a gente. Sempre viam terra na
gente.
Crianças indo à escola com os pés envoltos em sacos plásticos Foto: Reprodução |
Rua de
terra e muitos terrenos com mato. O misterioso mato, tão presente em histórias
de viajantes. Tão verde e cheiroso. Dali saíam muitas coisas, muitos bichos.
Ratos, cobras, baratas, cupins, formigas, grilos, louva-a-deus, borboletas,
tatuzinho-bola, que invadiam as ruas e não tinham vez junto à crueldade das
crianças, das pessoas que marcavam ali seu território, sua passagem.
Os
carros passavam tão raramente e a rua era lugar de gente. Todo mundo andava no
meio dela, com jeito de estar percorrendo um caminho... Ruas compridas, olhares
perdidos em pensamentos na caminhada.
Crianças
passavam a caminho da escola, centenas. Mas durante todo o dia se revezavam na
ocupação da rua e ficavam horas ali brincando.
Nas
férias era a tomada total da rua. Gritos de felicidade, barulhos de
brincadeiras e exaltações. Toque de recolher era o grito da mãe chamando para o
banho, a janta ou a chegada do pai do trabalho.
Tínhamos
alguns medos da rua: dos raios em dias de chuva, de bombinhas, de enroscar
pipas nos fios, de tarados que atacavam mulheres e meninas. Das brigas, quando
uma turma ou integrante de outro bairro invadiam ou passavam pelo nosso. E
vice-versa. Eu nunca entendi bem por que existia essa regra. Da polícia,
quando, à noite, ficávamos dentro de casa morrendo de medo ouvindo as veraneios
ou camburões da Rota deslizando com motor desligado, faróis apagados, nos
causando pavor.
Também
não tínhamos medo: queimada, esconde-esconde, pega-pega, cabo-de-guerra,
brincadeira de roda, vivo-ou-morto, passa-anel. Às vezes, durante a tarde,
deitávamos na rua e ficávamos olhando as nuvens do céu e vendo as mais diversas
formas. Conforme o vento, mudavam as figuras. E todos milagrosamente viam
juntos, imaginavam juntos. O exercício
se complicava quando o vento era veloz e a imaginação tinha que ser rápida para
dar conta do movimento. Estaria aí a primeira noção de que tudo muda?
Pulamos
muita corda. Tenho certeza de que minhas pernas engrossaram de tanto brincar de
pular corda. A corda era sempre minha e de meus irmãos, doada e sempre reposta
pelo meu pai. Ele nunca me deu uma bicicleta, mas me deu esse instrumento de
muita satisfação.
“Beijo,
Abraço ou Aperto de Mão”. Por causa da brincadeira, fiquei noiva aos oito anos
de idade. O anel era daqueles que vinham grudados no chiclete Ping-Pong, e o
meu tinha uma pedra de acrílico vermelha. Exibia-o orgulhosa, prova de meu
compromisso.
Soube de
menstruação, sexo, namoro e beijo com amigas da rua. Algumas coisas me
chocaram, outras me deram vontade de fazer. Treinava beijar em casa, no espelho
do guarda-roupa da minha mãe. Um beijo frio, no vidro. Tão diferente do meu
primeiro beijo, quente, que não teve trilha sonora, como a das novelas da TV.
Aliás, o silêncio estonteante da entrega. Os pés fincados na terra da rua, o
ventre quente e a cabeça flutuando. Bem no meio da rua.
Depois
desse beijo, vieram outros, de outros, na rua.
Crescendo,
também cresceram meu olhar, minha mente e meu desejo de beijar outras bocas,
uma grande vontade de vida. Em outras ruas.
De
ganhar novas ruas, até avenidas. Estradas?! A minha rua ficou pequena, com
pouco espaço para tudo isso.
A rua
mudava, ao mesmo tempo em que eu mudava. Primeiramente, a iluminação de poste,
que deu grande incrementada às brincadeiras e depois aos namoros. Depois, as
grandes tubulações e buracos: a água encanada! (morria de medo de cair no poço
do quintal...). Finalmente o asfalto, que selou uma nova era: a de que eu não
pertencia mais àquelas ruas.
Rosa
Maria Falzoni,
é natural do Jardim Brasília, zona leste de São Paulo (SP).
2 comentários:
Aqui em Taboão, já tivemos um " 21 anos sem asfalto". Eu era jovenzinha, nascida no bairro Cerqueira Cesar na Capital, quando vim morar aqui, no final da década de 50. Não sabia como era a cantoria de sapos e de rãs. Nem imaginava ser escoltada por vagalumes. Tudo isso conheci aqui em Taboão! As chuvas intensas, não causavam dano, porque a mãe terra lhe concedia espaço para acomodar-ser. Taboão ainda não tinha esses guetos que ostentam o poderoso nome de edifícios, na verdade verdadeiras gaiolas sofisticadas... Ninguém, morria nas enchentes, porque elas não se formavam. Ai, o bicho humano, inventou o progresso! Com ele a especulação imobiliária e a rodovia mortífera. Ninguém perdia nada, principalmente a vida, nas enxurradas, porque elas passavam longe. O crescimento desenfreado resultou nisso: Desestrutura total... O progresso chegou e o sossego acabou! Mas lembre-se disto: Prepare-se porque, no ano que vem, tem mais...
Que comentário lindo. Poético! Infelizmente não veio assinado. Eu gostaria imensamente de conhecer a senhora.
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