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quarta-feira, 3 de março de 2010

Mais uma do Bacanaço

João Antonio (foto à direita) repórter e escritor, autêntico cronista dos subúrbios, tem mesa cativa aqui no boteco. Já temos contos e reportagens dele publicados aqui (clique nos marcadores).
Foi ele quem criou o conto-reportagem, uma derivação bem brasileira para o jornalismo-literário criado nos EUA.
João Antonio passou dois meses hospedado em muquinfos e espeluncas do cais do porto de Santos para montar este que foi seu conto-reportagem de estréia na revista
Realidade, publicado em setembro de 1968.

Segue um trechinho como petisco:

O botequim é xexelento, velho encardido. E teima que teima plantado. Agüenta suas luzes, esperto, junta mulheres da vida que não foram dormir, atura marinheiros, bêbados que perturbam, gringos, algum cachorro sonolento arriado à porta de entrada. Recolhe cantores cabeludos dos cabarés, gente da polícia doqueira, marítima ou à paisana. E mistura viradores, safados, exploradores de mulheres, pedintes, vendedores de gasparinos, ladrões, malandros magros e sonados.
O boteco é mais. Agasalha traficâncias e briga. Gente encosta o umbigo ao mármore do balcão e queima o pé com bebidas. Fuá, tenderepá, pau comendo quente. Quizumbas.

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sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Um dia no Cais

Por João Antonio
(conto-reportagem publicado na
revista Realidade, setembro/1968)

O menino equilibra a sacola na bicicleta. Manhã cedo. A rua é doméstica.
De longe em longe, uma locomotiva a óleo diesel apita, modorrenta, e vem furando para as luzes na zona do cais.
—Epa!
Um menino branco se esforça, sobe do selim para o cano, mete os peitos contra o guidão, se enverga, equilibra a sacola na bicicleta e corta de fininho o cais. Vai que vai embora. Está quase sozinho com as luzes no comprimento de paralelepípedos, gozando nas curvas. O menino mais o seu calção e a sua japona, seu cabelo cortado rente, sua campainha, trim-trim nas esquinas que atravessa.
Cinco da manhã. As vassouras de piaçava correm nas mãos dos dois garçãos, peitos de fora, calças arregaçadas, tamancos. Batem, esfregam o chão da calçada do Bar Café Restaurante Chave de Ouro.
A cidade, os prédios e os morros dormem de todo. Cais não dorme. Não se apaga. Lá pelos cantões, um que outro olho aceso fica no rabo da manhã. E fica.
O botequim é xexelento, velho encardido. E teima que teima plantado. Agüenta suas luzes, esperto, junta mulheres da vida que não foram dormir, atura marinheiros, bêbados que perturbam, gringos, algum cachorro sonolento arriado à porta de entrada. Recolhe cantores cabeludos dos cabarés, gente da polícia doqueira, marítima ou à paisana. E mistura viradores, safados, exploradores de mulheres, pedintes, vendedores de gasparinos, ladrões, malandros magros e sonados.
O boteco é mais. Agasalha traficâncias e briga. Gente encosta o umbigo ao mármore do balcão e queima o pé com bebidas. Fuá, tenderepá, pau comendo quente. Quizumbas.
— Vai lavar roupa, sua fedorenta!
Rita Pavuna e Odete Cadilaque se pegam. Duas das que zanzam batalhando na noite, conluiadas nos trampos, nas arrumações, para surrupiar fregueses e levantar a grana, ainda que devam aturá-los. É lei—malandra que é malandra, no cais, não deve ir com trouxa. Toma-lhe o milho no jeito, debaixo de picardia e manha. Carne é carne e peixe é peixe.
Mas por umas ou por outras, de ordinário, se enfarruscam num desentendimento. E as duas acabam se encarando. Como inimigas. Salta um desacato:
— Vai lavar roupa, sua nojenta!
Seis e meia e somem as luzes dos trilhos dos bondes. Últimos músicos cabeludos, guitarras elétricas a tiracolo, passam em grupo, devagar. Entram no botequim, se chegam para o balcão. Pedem média, pãozinho, manteiga. E é como se não houvesse frege. Briga de mulher pode ir quente, gente do cais não faz fé.
— Nem vem louca que não tem. Vai cuidar da tua vida! Desguia. Sai da minha avenida.
Canalhas, cínicas igualmente e ligadas, mancomunadas na catança dos otários. Mas Rita Pavuna e Odete Cadilaque se apartam num desses tempos quentes. Uma querendo comer a outra pela perna, pela grana de algum freguês. E se afastam. Horas, horas. Cada uma para o seu canto e uma não quer nem ver a cara da outra. Piranha não come piranha.
— Me deixa. Qu’eu não sou parente nem da sua lavadeira. Vê lá. Ih, Manoel, como você tá por fora...
Chamar de Manoel é descaso. Xingo, menosprezo, deboche. É desconsiderar.
Abandona a turra. Rita, culpada, se larga para outros lados. Deixa a parceirinha falando sozinha. Mais tarde, na virada dos ponteiros, as duas se voltarão, se entenderão depressinha. É aparecer um bom gringo, presa da boa, e irão em cima juntas, juntinhas. Aí irmãs, outra vez. Jogarão açúcar ao freguês e lhe morderão até os últimos.

Os trabalhadores chegam com sono. Noitão. O trabalho continua duro.

Beirando sete horas. Os trabalhadores do cais se apressam, caras de sono, chegados de casa. O apito, às sete, é o do batente. Antecipa distraídos, empurra atrasados, bota interessados de orelha em pé. Prolongado, manhoso, não grita. Parece querer apitar despercebido aos mais sonolentos da estiva.
Um gordo correndo para a entrada do armazém 12, sacudindo banhas, abrindo caminho. Homens da estiva chegam de bicicleta, uma e outra motoneta. O cais até parece uma fábrica.
Rita Pavuna se manda. Tocando para os lados lá do armazém 5-6, um pedaço pesado dos cantões do cais. Boca do inferno. Morte certa no porto — conforme se diz. Ali, até a polícia à paisana mede distância, não esconde o medo. Ou respeita ou cai do cavalo. Rita se indo. Lá anda cabra traquejado. Otário, fariseu, mocorongo, Manoel e Zé Mané não tem o que fazer lá. É o que se diz. Rita andando.

Lá com os trabalhadores das docas começa a muita gíria dos gestos. A mímica é jeito inventado dos homens de estiva nos porões dos navios. Assim falam aos portuários e aos homens do guindaste, plantados lá em cima, nas cabinas. Os da estiva lá dobrados, patoludos, trabalhando. Sacos amarrados à cabeça, bermudas esburacadas, sapatos com meias e pernas peladas. Mãos enluvadas para o batente. Gramam.
Quase não se fala, no trabalho do cais. Só o conferente apontando o quanto disso e o quanto daquilo, braços para trás, feito soldado, segurando a prancheta das marcações. Abre o bico, quando em quando, a uma carga pronta para o guindaste.

Rita se raspou. Odete Cadilaque ao deus-dará. Bebida, estropiada da noite. Uns olhos raiados de sangue, trapo, caricatura. Trapão. Capionga, lenta, cabeça baixa, se arrasta do botequim para a rua. Coça a coxa, enverga o espinhaço, a mão esfrega a barriga das pernas. Soltando pragas:
— Isso não dá pé. Quê o quê! Tou dura, lesa e ainda apitada. Me atrasaram a vida.
Lá, o ponto dos bondes. A casinha verde, hexagonal, bomba dos esgotos do cais. Os marinheiros, viajados, dizem que aquilo se parece com as bancas de jornal, na França. De frente para a rua dos inferninhos, onde Odete Cadilaque, negrinha de bordô encardido, lenço verde à cabeça tapeando o pixaim, se encosta, senta. Pernas, joelhos e uma nesga das coxas aparecem. Odete se ajeita, se encolhe.
No meio das misérias, há gente que passa montado, desfila seu luxo de carro.
Odete Cadilaque dorme no chão, na rua. Noite. Chegou a hora de expandir.

Odete Cadilaque. Está aí — dezesseis anos. Diz, de boca, que tem vinte. Mas esses vinte se parecem com vinte e cinco. A neguitinha anda engolida. Marcada de pau, corte, noites, fomes, soneira. Na soleira da casinha verde vai se aninhando, como uma criança. O corpo caindo na madorna, quentando. E dorme com o dedo na boca.

Acordará, quando se acordar, com o sol na cara. Quebrada, faminta. A boca seca estará uma pasta. Aí, apanha o primeiro que aparecer. (É apostar e ganhar.) Corre ao boteco comer um sanduíche.

Uma carroça. Sacos de carvão, cavalo e homem, lentos. As rodas cantam nos paralelepípedos, o homem de bigode vai de cara fechada, e o animal de cabeça baixa. Não se ouve outro barulho.
A rua vazia, calada, parada, quieta de cabarés. As mulheres se sumiram na poeira e o sol dá de chapa no chão. Os guindastes já começaram. Dançam, lentos, do porão dos navios para a terra firme. Do porto para o navio, do navio para o porto, do porto para o navio.
— Mãe...
Sem barulho, briga ou música, sem confusão e zoeira, sem o vaivém das mulheres, fica diferente a rua. Agora, doméstica, deu para outros jeitos.
— Mãe...
Molecada miúda se escarrapacha jogando bola. Gente. Gente magra, muita, suja, escurecida, andrajosa, mora apertada com crianças, cães, velhos, gatos quizilentos, nos escondidos de porões escuros, buracos que furam os casarões antigos, entre ratos, fartum de urina e mato abandonado. É a rua diferente, sem a zoada da noite. E crianças saem para brincar.
A rua é agora dos amazéns gerais. De pardieiros centenários, ancestrais, pulam crianças que se confundem com cachorros, mendigos, bêbados, gente de perna entrapada, caras de fome, pescoços de galinha, esbranquiçados ou encardidos. Gente sentada, quentando sol nas soleiras urinadas. Esmoleiros. Lodo preteja o meio-fio.
Odete Cadilaque ronca no chão, polegar na boca. Que nem criança, batida de canseira.
Uma mãe, mais duas filhas. Metem o menor na sacola e o vão levando de gostoso. Como uma coisa comprada na feira. O menino contente como um passarinho. Vai sorrindo na manhã, tem um ano e meio no cais.
Foi quando a garrafa de óleo, que o irmão maior carregava, escorregou, escapuliu, caiu e se espatifou. É que ele foi chutar uma laranja no chão. O moleque está fulo. Um palavrão.
A mãe já ia bater, pela garrafa quebrada. Agora boqueja com vontade:
—Olha essa língua, desgraçado! Satanás!
O sol bate e rebate. E o cais mistura pombas, bondes que correm, varrem até a ponta da praia ou seguem para os lados de lá da cidade. Porões infectos, crianças peladas serelepando na rua ou brincando sobre sacos vazios, sujos. Portões enferrujados, que a brisa do mar come. A esta hora, dez da manhã, lá no embarque de passageiros haverá portugueses, japoneses ou espanhóis de roupa endomingada, chegando ao País. Gente dura, bruta, os pescoços desacostumados às gravatas, os miolos aturdidos. Provavelmente suas mulheres estarão desenxabidas, descoroçoadas com as complicações alfandegárias. Mulheres rudes e fortes.

No caminho de Rita Pavuna para o armazém 5-6 há cães perebentos enfiados na sujeira, no trânsito de bicicletas, automóveis. O Moinho Santista vizinhando velhos muros e quintais que parecem chácaras sem função. O apito da locomotiva da Companhia Docas de Santos. Vagões e cheiro sufocante de cereais. Homens de boina, bermudas esburacadas. Botecos sem mulheres. Mais água empoçada no meio-fio. Carros-tanque. Caminhões envergados de banana, café, milho, soja. Nas transversais, caminhões de todo o Brasil aguardando carga. Toras passam nos vagões abertos. Caixotes. Bananas. Milho esparramado entre os paralelepípedos, viaturas de socorro, rebocadores. Começa a pintar um e outro cabaré decadente, quinta categoria. Teria havido, noutro tempo, algum esplendor — Bar Athenas, served by girls. Banca de frutas. Gente, mulheres machudadas. Barris. Falhas na calçada, onde um moleque tropeça.

Rita Pavuna vaga pelas boates do quarteirão. Na rua, o futebol da garotada.
Rita Pavuna pára, procura um café. A seu lado, um tipo musculoso cujo indicador, enorme, não entra na asa da xícara de média. Rita ri.
Portas, algumas, demonstram rasgadamente que não são o que parecem, com as inscrições “casa de família”. Letras a carvão ou vermelhas, quase ofensivas, mal e mal arranjadas nas entradas, onde às vezes se lê família com lh: familha.
Rita Pavuna vaga por seis cabarés mambembes num quarteirão. Mulheres estropiadas, soltando palavrões. Viventes desengonçados e mais fedor de lodo. Grãos de café tipo quatro, entre os paralelepípedos. Um, dois, três, quatro tratores, motoniveladoras em exportação para a Argentina. Caixa de frutas.
A área dos armazéns 5-6 se chama ponta de faca. Caras ficam mais fechadas, tipos vagabundeiam, basbaques, curiosos, desconfiados, de ordinário desbocados. Rita ouve um lero abusado. Mas segue. Não está a fim de confusão. Não vai pra grupo. Procura ganhar uma grana, dormir em hotel — isso é que é. Os cabarés vão ficando mais imundos, infestados de música de rádio no último volume. Barbearia de uma cadeira só, ensebada, se espreme entre um inferninho e um armazém.
Restaurante Flor do Cais, armazém 7. Está escrito na porta que é proibido pentear o cabelo no recinto.
Há gaiolas e há pássaros numa delas. Rita passa por casas de peças e acessórios de automóveis. Depois, cães magros, pedintes, velhos sujos e cabeludos, prostitutas. Maçã, muita — producción argentina.
Como quem toca para a Rua Tiro Onze, em três quarteirões, onze cabarés, muquinfos, com mulheres estragadas, arruinadas. E dez bares.
— Vamos lá?
Manda mais do que convida. Rita Pavuna e um freguês. Está ansiosa; mas tolerância, manha, trabalha o bandido.
Tomam os rumos de um hoteleco da Rua Amador Bueno. Ela segue como se conduzisse o tipo. Já arrumou um. Então Rita poderá, sossegada, dormir o dia.
Um, dois, três. Muitos. Os navios somem no comprimento do cais; grandes, atracados em fila. Japonês, italiano, norueguês, argentino, dinamarquês, grego. Seus homens estrangeiros a bordo, a gente conhece pela cor ou só pelo jeito de olhar. A lida dos trabalhadores vai com os guindastes arreganhando os dentes, agüentando cargas de lá para cá, um e outro apito navioso. Na estiva, lá nos porões, homens taludos mourejam, suando, os bíceps enormes, as caras caladas. Nenhuma afobação. Pouco se fala, só os movimentos dos braços, no ar.
Milho, café, banana, máquinas, sal, sulfa, arroz. O chão de hexágonos de cimento e de trilhos — onde vagões transitam, e empilhadoras e tratores, arrastando pesos, não têm sossego — cheira farelo, soja, água salgada do mar.

O cais dá carros importados para alguns e sapeca calombo e canseira no lombo da maioria.
Os homens da sacaria, os pescadores do entreposto, os estivadores, os portuários, os arrumadores, os doqueiros, os limpadores dos navios, os fiéis de armazém, os conferentes, os guardas doqueiros, os policiais particulares, os privilegiados da Guardamoria. Milhares.

Na marca das cinco horas o pessoal vai saindo. E se toca para as casas, noutros cantos da cidade. Zé Menino, Gonzaga, Marapé, Macuco. Ou Itapema, atravessando o mar. Que o trabalho do porto recebe gente por cima, nos armazéns, e por baixo, pelo mar—os vindos do outro lado das águas.
Saídos da lida, uns que outros se esquecem zanzando, procurando bebida, mulher, farra. Essas coisas de homem trabalhador, quando chega a noite.
O que se chama noite não vem da luz elétrica. Nem das lâmpadas dos trilhos dos bondes se atirando sobre os paralelepípedos. Nem vem da lua ou das estrelas no céu, depois do lusco-fusco, hora muito fanada que pinta de preto casas, homens, mulheres e viventes do cais. Noite, noitão — aquela acesa, que se abre para a vida, arrebenta, é quando se acendem os luminosos dos cabarés. E a rua fica acordada.
O cais muda de cor e de tom num lance. Há uma lei nas ruas. Uma danação: a rua está tocada. Sopra uma alegria. Um sentimento feroz vai varrendo. Viver.
Para as mulheres essa é a hora dura de batalhar, arranjar a grana. E para os homens é a farra. Só.
Variedades. Após os trilhos dos bondes, hotéis, lojas de lembranças, a fila dos táxis, a perua policial — os cabarés. E os botecos, com indicações em inglês ou alemão para os gringos.

Marinheiros aparecem falando estrangeiros. Tatoo Lucky, o tatuador.

Bar Restaurante Paquetá, Bar Churrascaria Pan-American. Pastelaria Pavão de Ouro. Night and Day (danças-shows). Oslo Bar. Zanzibar (served by girls). Bergen Bar. American Star Bar. Hotel dos Navegantes. Bataan Bar (served by girls). Top Set—Churrascaria—Barbecue. Gold and Silver. Moby Dick Bar. Galleria Florida—Butterfly Shop.
A menina, minissaia branca, não tem mais de quinze anos. Mas teima e firma, enfrenta a rua. Chama:
— Vamos?
Sopra uma alegria meio cínica, meio cansada. Mas assanha, morde, envolve. Bota o gringo de cara cheia e as mulheres requebrando. Good drinks—kurt and gerd—good music—welcome. O ié-ié-ié grita e as guitarras elétricas esparramam-se pela rua, convidando a entrar. O cabaré come as horas, atraca os corpos, prolifera copos.
Os meninos engraxates e os meninos vendedores de amendoim, ativos. Chamam o gringo. Engrolam a língua estrangeira, fazem micagens para apanhar um. As perninhas se mexem nas calças rampeiras, curtas:
— Amigo. My friend. Come back!
Vivem nos porões imundos com gente carcomida, enfiada lá. Carregam a caixa de engraxar nos ombros e enfrentam a rua como as mulheres. Chamando, catando pelo braço, uma estripulia de gestos. Podendo, surripiam os gringos, como fazem as prostitutas. Devem comer. Dez-doze anos, mas naquelas bocas do inferno já traquejaram, à custa de safanões e fome. Caras velhas, judiadas, um cansaço nos olhos, lá no fundo. Atentos. Chamam o navegante, teimam, correm a escova no sapato, ainda sem permissão. Insistem.


Descarregar, desoprimir, extravasar. Ali é lugar de expandir.

— Chegou a grana. Tem navio dinamarquês.
A nova varre o cais, corre cabarés, aguça mulheres distraídas e tira gente da cama, atiça os donos das lojas de lembranças e embelecos coloridos, folclóricos, assanha engraxates, vendedores de flechas e sujeitos que vivem da venda de quinquilharias e penduricalhos. A arraia miúda do cais se apronta. Os hotelecos estão esperando, ansiosos.
Odete Cadilaque e Rita Pavuna, de novo estão de bem. Estiram-se camaradagens, acesas da vida. Outra vez unidas, que é como o trampo dá resultado. Uma precisa da outra para engambelar os marinheiros.
Juntaram-se, espevitadas, lambidas. Na casa de tatuagens, atracaram-se à dupla de marinheiros loiros, jovens, vermelhos do mar. Riem, bebem, e não entendem uma palavra dinamarquesa. O cabelo de um marujo é tão loiro que parece branco.
O maior tatuador da América do Sul, marinheiro de anos, dos que andejam duas vintenas de países, já tatuou príncipes. Luck’s—Souvenir and Tatooing Shop. Tem um mostruário de 20 mil e mais desenhos, pintas artificiais, navios coloridos, emblemas de companhias marítimas. Faz tatuagens, vende folclore. E reconhece, pelo estilo, trabalhos gravados em Rotterdam, Liverpool, San Francisco ou Havaí. Os navegantes deixam-se tatuar e compram-lhe tapetes, redes para enfeitar o navio nas viagens longas ou dar de presente aos parentes distantes.
Fora, aproveitando a folga na noite, homens do trânsito estão zebrando faixas nos paralelepípedos. Um guindaste trabalha, lento, pesadão, e uma locomotiva diesel avança, renitente. Um que outro bonde cantando nos trilhos.
A máquina de marcar tatuagem corre, vermelha, no braço do marinheiro dinamarquês. Que entorna o cuba-libre e ganha beijo de Rita Pavuna. Os gringos têm seus cortes de cabelo e roupas diferentes. A maioria é ridícula, no entender das mulheres ali. Como o homem não a entende, Rita trabalha, agrada, falando para a outra:
—Eu tomei chá de bruxa da Bahia. Mas quê nada. Fui parar no pronto-socorro. A menina está lá em casa, espertinha como só ela.

Nos bares iluminados há brigas, confusão. Manhãzinha. O cais recebe os homens da estiva.

Sarará, Rita é mulata, cabelo ruim. Na cara de índia, tem o nariz quebrado, como os lutadores de boxe. Arremeda espanhol, alemão, inglês. Arranja-se com a marinheiragem. Nasceu num vilarejo baiano. Maconhada, dá para falar muito, arrota uns rompantes de mãe de família por causa dos quatro filhos que sustenta. Cada um, um pai. Esconde, nas conversas, o filho mais velho, o negro, que anda pelos dezesseis anos de idade. Ela, trinta e um.
Odete Cadilaque, negrinha. Nova, na vida, e sabe pouca palavra inglesa. Mora (dorme, às vezes) no morro do Macuco, onde sustenta um homem. Fica no cais até arrumar dinheiro. Baixando lá no morro de bolsa vazia leva pancada. E como gosta do homem...
Marinheiro é viajado, andou quatro cantos no mundo. E, se diz, não há homem mais desconfiado que um do mar. E esbanjam com mulher, bebem, queimam o que têm. Mas descem ao porto vindos de muitos dias no mar. Navegando e trabalhando. Sem bebida e sem mulher. Pegam terra firme e não querem nem saber se estão certos ou errados.
Capengas, já deixam a casa de tatuagem e ganham a rua. Os marujos avançam com o andar gingado. Odete Cadilaque e Rita Pavuna fingem mais do que beberam.
Sweden Bar. Hamburg Bar. El Congo Bar Restaurante. Miomatsolen Bar. Scandinavia (welcome to) foreign music—moderate prices. Old Kopenhague. Cassino Night Club. Amsterdam Bar. Suomi Bar (served by girls). Há um cabaré que anda por cima, novinho, pedras na entrada de legítimo quartzo, e a decoração é hippie, recomenda o amor em vez da guerra. Bar e Café Chave de Ouro se anuncia Golden Key.
— Give me one.
Rita Pavuna quer um espetinho. A rua está cheia deles, firmes e pacienciosos, ali, como a venda de flechas, trutas, comilanças, café du Brésil. É a hora em que a rua é de todos, expõe de um tudo. Vendedores de acarajé, abará, baianices. O de flechas meteu seu tabuleiro no chão, entre os mendigos.
Os quatro entram no cabaré. Luz pouca. Há beijos, atracações, copos. Rita e Odete e seus marinheiros dançando o ié-ié-ié.

Na entrada do cabaré baixa um tipo alto, negro, vendendo flores, verdes, amarelas, vermelhas, de papel crepom. Penetra, oferece, mesa em mesa. O mulherio insiste com seus otários. Querem as flores.
Em dois lances, sem esta nem aquela, está ferrada uma briga. O alto vai melhor. Seus corpos magros rodopiam para fora do cabaré, os dois dão com o lombo na calçada. Gente chega para apartar. A Força Pública invade o cabaré aos supetões, não querendo prosa fiada.
— Documento.
A briga acabou. Rita Pavuna, Odete Cadilaque e os marinheiros dinamarqueses desguiam do cabaré, procuram um restaurante. Dão ao diabo o show musical e o strip-tease que se anuncia para as três da manhã. A fome bateu nos quatro.
Cooperativas dos portuários. Casas para turistas. Botequins, adegas sem nome. Armazéns e vendolas. Akropolis Bar (served by girls). Restaurante Tai Ping. Hotéis. Hotelecos. Padaria Ribatejo. Barbearias infamantes, dois cruzeiros novos o corte de cabelo. Bazares improvisados. Vende-se fogos. Farmácias e açougues. Morning Star Bar.
Os homens da Força Pública plantados nas esquinas. Ou varejando o interior dos cabarés, grudados ao ponto de táxi, saída natural dos fregueses dos inferninhos.
Canto de Galo. Bergen Hotel. Vagalume Night Club. Tivoli Bar. Odete, Rita e os dois marinheiros entram no restaurante.
Chegam três motoristas de caminhão. Arrancam os bonés das cabeças, atiram nas cadeiras e sentam em cima. Pedem risoto de camarão, uma sopa e pressa. Retiram direto da panela que fumega, fazem pratos parecendo montes para comer, usam talher só na mão direita. Quando em quando, à vontade, metem as mãos na comida. Falam alto. Sopram a comida quente, no garfo, antes de levar à boca. Aqueles comem como quem tem fome.
Do restaurante se ouve a rua. Voa um xingamento:
— Vai lavar roupa, velho!
Gíria passeando na calçada:
— Ih, Manoel, como vai?
Cadilaque cumprimenta:
— Ô, Janete, qual é o pó?
— Estamos a bordo. Não tem babado.
Aquela é carioca. E as cariocas são as mulheres mais alegres. Defendem-se em espanhol, inglês, e alemão. Chamam:
— Showtime. Faive dólar. Ten táuse.
Tratam o gringo com classe. São educadas, carinham:
— Filhinho, meu filhinho.
Aquela Janete é conhecida pela venda que fez de uma raridade: periquito em vez de papagaio. O gringo se intrigou com o tamanho do bicho. Mas ela jurava por Deus. O periquito, com o tempo, cresceria, teria o tamanho de um papagaio.
Assim levantou trinta dólares.
Odete Cadilaque, Rita Pavuna e os dois marinheiros procuram hotel. Apenas eles caiam, quebrados de sono, elas colherão as carteiras. E voltarão para a gandaia. Seguem enlaçando a cintura dos homens. Ainda não os abocanharam, precisam aturá-los, cautelosamente. Mas aquela grana é imperdível. Ganharam a noite.
Chegam estivadores; é outro dia no cais. Manhãzinha. Os homens chegam outra vez.
Na rua, mais um luminoso, de roupas e modas. Ladies & Gentlemen, Shoes Working, Cloes, Pens, Shorts & Allkring of Sadya Dresses. Dresses Juarize. Rita Pavuna e Odete Cadilaque, com os marujos, passam por cabarés onde se ataca de ié-ié-ié gritando na guitarra elétrica ou se geme bolericados e dores de amor dos sambões famosos.
Um americano é chamado por uma mulher, tira o Lucky Strike da meia, dá o cigarro e engrola. E outras passam abraçadas, quase carregadas, dissimuladamente bêbadas, fazendo dengues e enganando seus otários. O Night and Day está levando o show No Tempo da Viúva Alegre e entre a gringalhada caminham crioulos dobrados, gingando.
A esta hora os ônibus estarão rolando sossegados, no asfalto de ruas vazias, noutros cantos da cidade. Na praça, os cobradores e os motoristas olharão para os músicos carregando seus instrumentos e provavelmente menearão as cabeças, perguntando como será aquela gente de vida estranha.
Um depois do outro. Os cabarés vão fechando o olho da noite. A zona do cais começa a se despovoar. Gente não dormiu, busca uma condução para casa. É esse o momento em que as mulheres da rua, fanadas, dinheiro na bolsinha ou no seio, vão procurar, longe, seus homens, para lhes entregar a grana. É como também compram um pouco de amor.
A madrugada desfiou e vai se indo. Chega, aos poucos, um sopro frio da beira do mar. O céu está que é um breu e vai ganhando, devagar, um toque azul.
Os rádios ressoam as primeiras músicas caipiras.
Um tom azul, chumbado. Há, no entanto, alguma coisa precisa, forte, meio avermelhada num ponto ali no horizonte.
Sanguíneo, já violento, um ponto querendo rasgar, vermelho, no céu. Explodir. E gritar de cor ali.
Mas a hora ainda é neutra. A noite acaba. O dia acaba. A lua sumiu.

Os primeiros homens da estiva começam a chegar.

sexta-feira, 29 de junho de 2007

Paulinho Perna Torta

João Antônio

“Um valente muito sério

Professor dos desacatos

Que ensinava aos pacatos

O rumo do cemitério”

(Noel Rosa, em

‘Século do Progresso’)

“... quem gosta da gente é a gente. Só.
E apenas o dinheiro interessa. Só ele é positivo.
O resto são frescuras do coração.”


(de acordo com o ensino de Laércio Arrudão)

Que essa cambada das curriolas, que esses ratos da polícia e esses caras dos jornais, gente esperta demais com seus fricotes, máquinas e pé-ré-pé-pés, espalha que espalha mais brasa do que deve.
Sei que deram para gostar ultimamente de encurtar o nome de Paulinho duma Perna Torta.
Paulinho da Perna Torta. Paulinho da Perna Torta. Apenas.
Nos jornais, nas revistas. Também na televisão já vi essas liberdades. Leio e ouço por aí. É assim, São Paulo inteiro acabará me chamando de Perna Torta.
Não gosto.


Moleque de Rua

Dei duro. Enfrentei.
Comecei por baixo, como todo sofredor começa. Servindo para um, mais malandro, ganhar. Como todo infeliz começa.
Já cedinho batucava.
- Vai um brilho, moço?
Repicar na caixa, mandar os olhos nos pés que passavam. Chamar freguês. Depois me mandar no brilho dos sapatos. Fazer um barulhão com o pano, atiçar os braços finos, esperto ali.
Os dedos imundos não tinham sossego. Às vezes, cobiçava os pisantes dos fregueses; então, apurava mais o brilho. O tipo se levantava da cadeira, se arrumava todo; se empinava, me escorregava uma nota. Humilde, meio encolhido, eu recolhia a groja magra. Tudo pixulé, só caraminguás, uma nota de dois ou cinco cruzeiros. Mas eu levantava os olhos e agradecia.
Agüentava frio nas pernas, andava de tênis furado, olhava muito doce que não comia e os safanões que levei no meio das ventas, quando me atrevia a vontades, me ensinaram que o meu negócio era ver e desejar. Parasse aí.
Agüentei muito xingo, fui escorraçado, batido e dormi de pêlo no chão. Levei nome de vagabundo desde cedo. Lá na rua do Triunfo, na Pensão do Triunfo, seu Hilário e dona Catarina.
Aquilo, àquele tempo, já era o casarão descorado dos dias de hoje, já pensão de mulheres. Mas abrigava também, à noite, magros, encardidos, esmoleiros, engraxates, sebosos, aleijados, viradores, cambistas, camelôs, gente de crime miúdo, mas corrida da polícia; safados da barra pesada, que mal e mal amanhecia, seu Hilário mandava andar. Cada um para a sua viração.
A gente caía para a rua. Catava que catava um jeito de se arrumar. Vender pente, vender jornal, lavar carro, ajudar camelôs, passar retrato de santo, gilete, calçadeira... Qualquer bagulho é esperança de grana, quando o sofredor tem a fome. Vontade, jeito? A fome ensina. A gente nas ruas parecia cachorro enfiando a fuça atrás de comida.
Ainda escrevem aí que matei meu pai a tiros por causa de uma herança... Esses tontos dos jornais me botam cabreiro.
Outra coisa errada que em meu nome corre é que comecei na zona. Que zona, que nada... Zona foi vida boa. Foi depois de Laércio Arrudão me apadrinhar e me ensinar o riscado do balcão, pra cima e pra baixo, servindo cachaça, fazendo sanduíche e tapeação nos trocos; misturando água nas bebidas quando, noite alta, as portas do bar desciam, e Laércio ia fazer a feira e eu as marotagens nas garrafas. Sim. Mas antes dessa coisa de zona, me rebentei por aí.
Bem. Engraxando lá nas beiradas da Estação Julio Prestes. Era um na fileira lateral dos caras. Entre velhos fracassados em outras virações e moleques como eu e até melhores, gente que tinha pai e mãe e que chegava lá da Barra Funda, da Luz, do Bom Retiro... Porque isso de engraxar é uma viração muito direitinha. Não é frescura não. A gente vai lá, ao trambique da graxa e do pano, porque anda com a faminta apertando. E é mais sério do que aquilo que os otários com suas vidas mansas, do que os bacanas e os mocorongos com suas prosas moles julgam. Aquela molecada farroupa com quem eu me virava, tirava dali uma casquinha para acudir lá suas casas; e, engraxando, os velhos, sujos e desdentados, escapavam de dormir amarrotados nas ruas, caquerados e de lombo no chão. Como bichos.
A Júlio Prestes dava movimento e éramos explorados por um só. O jornaleiro. Dono da banca dos jornais e das caixas de engraxar, do lugar e do dinheiro, ele só agarrava a grana. Engraxar, não; ele lá com seus jornais.
Eu bem que podia me virar na Estação da Luz. Também rendia lá. Fazia ali muito freguês de subúrbio e até de outras cidades. Franco da Rocha, Perus, Jundiaí... Descidos dos trens, marmiteiros ou trabalhadores do comércio, das lojas, gente do escritório da estrada de ferro, todo esse povo de gravata que ganha mal. Mas que me largava o carvão, o mocó, a gordura, o maldito, o tutu, o pororó, o mango, o vento, a granuncha. A seda, a gaita, a grana, a gaitolina, o capim, o concreto, o abre-caminho. Aquele um de que eu precisava para me agüentar nas pernas sujas, almoçando banana, pastéis, sanduíches. E com que pagava para dormir a um canto com os vagabundos lá nos escuros da Pensão do Triunfo. Onde muita vez eu curti dor-de-dente sozinho, quieto no meu canto, abafando o som da boca, para não perturbar os outros.
Dona Catarina, naquela boca do inferno. Piranha velhusca, professora de achaques, de manha e de lero-lero. Uma dessas veteranas que de gorda já não tem cintura. Arrastando varizes lerdamente, aos resmungos e desbocada, tomava-nos o que podia. Piranha, rápida, no tirar o que é dos outros e sem muita explicação, dona Catarina era dona Catarina. E não sei se eram os meus olhos verdes, como algumas mulheres têm dito ou a cara toda de coitado...
Se eu andava muito branco ou cara inchada de dor, a velha me dava um jeito. E me arrastava para ver. Tinha lá no Largo Coração de Jesus seus conhecidos, um farmacêutico e um dentista.

me passando o açucaonstandoando o fuoguete, um estrepe para eu segurar. pam. a-nos o que podia. uas, caquerados e de lomboTambém me rendia a viração na Estação da Luz. Ganhava. Mas as porradas me foram sapecando olho vivo. E já não era tão trouxa. De quando em quando, se animava e explodia lá onde é hoje a Boca do Lixo, pegava a Luz, um tenderepá qualquer e na quentura do batefundo, corria gente para todos os cantos que, à chegada da polícia, as ruas ficavam azoadas, os otários botavam a língua no mundo e até os mais malandros perdiam suas bossas. Que o castigo vinha a galope. E nessas umas e outras, os pequenos se estrepam. Aprendi desde moleque. Pois. Nos esporros lá da boca, sobrava sempre um rabo-de-foguete, um estrepe para eu segurar. Um vadio ou uma vadia, terminando o fuá, vinham se chegando à minha caixa, se encostando, me passando o açúcar. Charlavam que era emprestado. Sim. Que depois me devolveriam. Sim. Que eu era faixa deles e eles, meus do peito. Sim. E o jeito que a cambada tem para tomar... Eu, morto, entregava depressinha. Muita vez, na arrumação me furtavam o dinheirinho suado, arranjado no brilho dos sapatos. A devolução? Cobrasse e levaria safanão e deboche.
Lixão. Naquele tempo, essas ruas aí às beiras das estações de ferro não expunham estes bordéis todos (...)
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É que na cidade havia zona. E a concentração maior da bagunça, da safadeza e de todas as picardias de malandragem e virações ficava lá longe. No Bom Retiro. Aquilo era um formigueiro na rua Itaboca e dos Aimorés. Até gente morria. Tiro, facada, navalhada, ferrada e todo o resto do acompanhamento. Mas era um braseiro isolado e não bulia com ninguém fora dali.
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Bem. Na Estação da Luz me tomavam o dinheiro. Com o tempo me apavorei, achei que não estava no tom daquela malandragem correndo para cima de mim e me mandei. Entendi. Parei de estalo. Desguiei, me espiantei, me esquinizei e, deslizando dos malandros, bati perna, acabei me escorando lá na Estação Júlio Prestes. Sondei. Pedi, peguei um lugar ali nas caixas do saguão. O jornaleiro era dono. Um bicho gordo, vermelho, com o cigarro que não saía do bico.
- Você dá no couro?
Dei no couro, sabia muito bem o que estava fazendo no brilho de um sapato. Mas me dei mal, desacostumado com aquilo de pagar ao dono das caixas. O homem me tomava a metade... Meu capitalzinho se esfacelava às oito da noite, à hora da divisão.
Para a Pensão do Triunfo voltava murcho, encabulado. Ô espeto! O dinheirinho dava mal e mal para um prato feito, um sortido muito, muito sem vergonha lá no Bar do Porco, na rua dos Gusmões.
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Eu era um trouxinha. Moleque escorraçado, debaixo de um quieto rebaixado, mas me roendo por dentro, recolhia calado os pixulés que me sobravam da exploração do jornaleiro.
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O dinheiro do cara era gordo, era um tufo. Com aquilo eu faria gato e sapato, mil e uma presepadas, me arrumaria na vida. Ferveria.
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Mandei a mão na maçaroca de grana. O sujeito me pilhou com os dedos na coisa e me plantou a mão na cara. O bofete quase me cata a orelha em cheio, aqui de lado, abaixo da costeleta. Doeu, estalou.
Ele estava à minha frente e eu meio agachado, pelo vão das pernas podia ver os outros engraxates. Cada um no seu lugar, olhando parado, não se dizia nada. Ninguém se mexia.

[Continua...]

AVISO: quando eu publicar a continuação deste conto, este trecho já postado será removido para meu arquivo pessoal, e estará à disposição apenas para divulgação e preservação da obra deste gigante do jornalismo literário brasileiro.