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sábado, 28 de janeiro de 2012

... e além de tudo foi profeta

João Antônio Ferreira Filho
Ontem, 27 de janeiro, fariam 75 anos de nascimento do escritor e repórter João Antônio. Um dos meus heróis do jornalismo brasileiro. Meu maior ídolo na literatura. A “Mesa do João Antônio” é espaço perene desse blog desde o dia da sua criação (veja nos banners à direita da página).
Acima e além da veneração que nutro por ele, me marcou muito o fato de João Antônio ter prenunciado a própria morte. Com tal precisão de detalhe que não é generosidade de fã chamar-lhe profeta.
Numa data imprecisa de julho de 1994, João Antonio dava palestra em uma faculdade. De repente, do nada, em meio à sua locução falou: “Eu sinto que não resta muito tempo. Um dia desses sonhei que havia morrido e só encontraram meu corpo uma semana depois.”
Passados dois anos, em 1° de novembro de 1996 o jornal O Estado de São Paulo estampava a reportagem de Roberta Jansen: “Escritor João Antônio é encontrado morto no Rio”. A Polícia achara seu corpo sobre a cama do apartamento onde estava apodrecendo há 15 dias...

O Morro da Geada e a Praça dos Paraíbas
O berço de João Antônio foi num bairro miserável (Morro da Geada) nas quebradas de Presidente Altino, subúrbio de Osasco, São Paulo. Seu caixão saiu do apartamento 702 do prédio de número 15-A da Praça Serzedelo Correia, a popular “praça dos paraíbas”, em Copacabana, Rio de Janeiro.
O porteiro Chico Artenísio não aguentava mais os moradores reclamarem da fedentina que emanava do apartamento do escritor. Ele havia visto João Antônio pela última vez entre o dia 7 ou 9 de outubro. Estavava bêbado, de bermuda e camiseta, calçava sandálias, tossindo muito e fumando sem parar.
Pressionado pela apurrinhação dos condôminos, Artenísio subiu no telhado do apartamento de cobertura onde João Antônio morava. O ar estava podre. Môscas varejeiras alucinadas pela catinga batiam-se desesperadas contra a vidraça, ávidas pela carniça do gênio.
No apartamento decorado com móveis pesados de jacarandá maciço, tudo em ordem, logicamente dentro da ordem possível a um homem que morava sozinho.
João Antônio estava deitado de barriga para cima. Descalço, vestido em calça de moleton e camiseta. Uma perna estirada no colchão, outra pendida para fora da cama. A decomposição do corpo estava tão medonha, esqueleto já aparecendo, que pedaços de carne se desprendiam do cadáver e póf! no chão.
Um pacote de carne ainda sem desembrulhar sobre a pia esperava em vão a última refeição negada ao escritor.
A delegada Ângela Costa encontrou correspondência não aberta datada de 8 de outubro sob a porta de João Antônio. Mas a revista IstoÉ provou que ele ligou para a redação em 14 de outubro, avisando sobre palestra que daria sobre crônica moderna. Na dúvida, o IML resolveu fixar como data da morte o dia do encontro do corpo.

A poesia das ruas suarentas
Os contos de João Antônio são plenos de poesia pungente. Suas reportagens são a glória do jornalismo literário nacional. Foi criador do conto-reportagem. Levou para a eternidade títulos de honra como “intérprete do submundo” e “cronista dos marginalizados”.
Pelas páginas da sua obra desfilam os habitantes das periferias – trabalhadores braçais, mendigos, moleques de rua, jogadores fracassados, putas, habitantes de botequins imundos, viados, policiais, biscateiros.
Tudo muito bem contado em frases onde se enlaçam, se namoram, a linguagem chula dos malandros e a escrita elaborada, elegante.
Um livro de João Antônio lançado em 1986 chama-se Abraçado ao Meu Rancor. Título emprestado de um tango muito antigo que eu, ainda menino de 7 ou 8 anos, adorava ouvir na vitrolinha portátil do meu pai. E ficava encafifado: “Por que eu não consigo entender tudo o que a letra da música fala?”. O pai me ensinou: “Isso aí é linguagem das gentes baixas lá da Argentina”. Por isto gostei. Gosto.
Se você, caro leitor, querida leitora, ao clicar o áudio abaixo enroscar o ouvido nalguma frase criptografada pela malandragem portenha, socorra-se de um dicionário de lunfardo.
Como abrazao a un rencor
Música: Rafael Rossi  -  Letra: Antonio Miguel Podestá

“Está listo”: sentenciaron las comadres . Y el varón, ya difunto en el presagio, en el último momento de su pobre vida rea, dejó al mundo el testamento de estas amargas palabras, piantadas de su rencor:

Esta noche para siempre terminaron mis hazañas,
Un chamuyo misterioso me acorrala el corazón,
Alguien chaira en los rincones al rigor de la guadaña,
Y anda un "algo" cerca ´el catre, olfateándome el cajón...

Los recuerdos más fuleros me destrozan la zabeca,
Una infancia sin juguetes, un pasado sin honor,
El dolor de unas cadenas que aún me queman las muñecas
Y una mina que arrodilla mis arrestos de varón.

Yo quiero morir conmigo,
Sin confesión y sin Dios,
Crucificao en mis penas,
Como abrazao a un rencor.
Nada le debo a la vida,
Nada le debo al amor,
Aquella me dio amarguras
Y el amor una traición.

Yo no quiero la comedia de las lágrimas sinceras,
Ni palabras de consuelo, ni ando en busca de un perdón,
No pretendo sacramentos ni palabras funebreras,
Me le "entrego" mansamente, como me entregué al botón.

Sólo a usted, madre querida, si viviese le daría
El consuelo de encenderle cuatro velas a mi adiós,
De volcar todo su pecho sobre mi hereje agonía,
De llorar sobre mis manos y pedirme el corazón...

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

David: o repórter sem nenhum caráter

David da Silva

Vou dar duas opções pra você ver quem convidaria para sua festa de Fim de Ano, hoje à noite.

A primeira opção é um repórter de escrita truculenta. Não se envergonha de distorcer e até inventar fatos para tornar a notícia mais atraente, vendável. É colaborador do Esquadrão da Morte, grupo de extermínio formado por policiais à paisana.

A segunda opção é um jornalista com um texto encantador. Batalhador incansável das informações. Além do estilo sedutor nas reportagens, é letrista de canções famosas. São dele os versos que você vai cantar à meia-noite deste sábado: “Adeus Ano Velho / Feliz Ano Novo / Que tudo se realize no ano que vai nascer...”

Sua escolha seria fácil não fosse o detalhe de as duas pessoas acima serem uma só. As duas características tão desiguais estavam concentradas no repórter David Nasser.

***

No meio do empurra-empurra dos policiais para expulsar os camelôs da estação de trem no centro da cidade do Rio de Janeiro, o repórter vacilão acabou levando uns cassetetes na cabeça. O garoto David Nasser, 14 anos, mascateava pentes e giletes pela Central do Brasil. Viu o bloco de anotações cair do bolso do jornalista quando ele estava sendo colocado na ambulância.

Ávido por um dinheirinho, o pequenino David levou os papéis para a redação de O Jornal – talvez lhe pagassem boa recompensa... O chefe de reportagem quis saber: “Ó, menino. Você viu tudo? É capaz de contar direitinho o que aconteceu?”. O moleque foi para a máquina de escrever. Surgia ali, em 1931, um dos maiores repórteres de todos os tempos do Brasil.

*

Filho do casal de imigrantes libaneses Alexandre e Zakia Nasser, David contraiu meningite na infância pobre em Jaú (SP) onde nasceu. Com seus sete filhos (David era o terceiro) a família perambulou por Mato Grosso (Campo Grande e Três Lagoas, onde o menino viveu até os quatro anos) depois para o Rio e, após dois anos, foram para Caxambu (MG), onde residiram de 1925 a 1930

Na segunda fase da sua infância em São Lourenço (MG), o moleque David foi charreteiro e entregador de pão.

Ao mudar-se para o Rio, a família botou logo o pirralho na rua pra se virar vendendo bugigangas. Até que veio aquela confusão entre os polícias e os ambulantes na estação ferroviária...

***

David Nasser usava apenas dois dedos na sua velha máquina de escrever. Aqueles dois dedos provocavam terremotos na sociedade brasileira.

Como sequela da meningite ficou com o andar esquisito, como estivesse sempre embriagado. Suas mãos tinham movimentos desconexos – derrubava coisas, se sujava todo e emporcalhava tudo em volta quando comia. Era fanho. Enxergava pessimamente mal.

“Estivador do noticiário”, tinha paixão por desencavar assuntos. Disposição assustadora para ir atrás de pautas. Colocou o repórter de rua em posição inalcançável nas redações.

Castelar de Carvalho, do jornal A Noite, gostava de dizer:

- Se eu fosse dono desta baiúca (a baiúca era o seu querido jornal) botava esse sujeitinho de 20 anos na balança e pagava o peso dele em ouro. Vale por uma redação inteira e equipada.

O “sujeitinho de 20 anos” era David Nasser, que naquele longínquo 1937 entrava na redação d’A Noite com seu andar de marinheiro bêbado, roupa repuxada pro lado, falando mansinho, mas com faíscas chispando no olhar.

Fiel à tradição do xará bíblico, David Nasser tinha um fraco todo especial pelos vagabundos, pelos andarilhos humildes.

Dava mais valor à criatividade do que à verdade. Se um fato lhe parecia insuficiente para “vender bem” a notícia, dava livre curso à imaginação. Inventava fontes de informação. Lapidava tão duro cada detalhe fantasioso, que a matéria trazia a mentira solidamente fundida à verdade.

Se o noticiário estava fraco, sem problema.

Criou a personagem Giselle – a Espião Nua que Abalou Paris. Publicava os capítulos no Diário da Noite. As vendas explodiram. Mas o patrão não correspondia ao esforço do repórter-escritor. Então... David Nasser escreveu um capítulo que encerrava com Giselle acuada num beco, com o revólver de um oficial nazista encostado em sua cabeça. “Se você não acertar meus salários atrasados agora, a Giselle aparece morta no capítulo de amanhã”, disse David para o patrão Assis Chateaubriand. Que assinou o cheque rosnando: “Turco miserável... Ah! turco miserável!”

A capacidade criadora não se limitava a personagens de ficção.

Como a reportagem de 6 de maio de 1944: “Morreu Jean Manzon!” gritava a capa da revista O Cruzeiro, onde David “matou” seu fiel parceiro fotógrafo. Ainda dizia o texto que Jean pediu para ser enterrado com a inseparável câmera fotográfica...

David Nasser e Jean Manzon trabalharam juntos de 1943 a 1952. A dupla de repórter e fotógrafo mais amada e odiada do País. Ganhavam dinheiro com o que publicavam, e também com o que deixavam de publicar. Qualquer reportagem era “negociável”.

Gente pagava para ser humilhada. Louvado ou esculhambado, importante era ser citado. “Quem não sai na coluna do David Nasser, não existe”, era a lógica perversa dos alpinistas sociais.

Feito a reportagem “Barreto Pinto sem máscaras”. O deputado era casado com uma mulher rica, e queria popularidade. Contratou Nasser e Manzon para ter sua vida devassada na reportagem. Pagou a matéria a peso de ouro. Com a condição de processar os dois. Jean Manzon convenceu o político a posar sem as calças – só de fraque e cuecas, com a promessa de publicar a foto da cintura para cima. No dia seguinte lá estava o deputado nas bancas de jornais, de cuecão samba-canção. Foi cassado por falta de decoro parlamentar...

Com o golpe de 1964 David se envolveu com os militares. Virou guru de Mário Andreazza, então ministro dos Transportes. Encachorrado com os milicos, tinha informações privilegiadas sobre o combate à guerrilha urbana.

A amizade com os generais o aproximou de fazendeiros e empreiteiros endinheirados. David Nasser virou burguês, dono de muitos imóveis e até de fazendas, que deixaram rica sua viúva Isabel.

A má índole atingiu o ápice quando defendeu de peito aberto os esquadrões da morte, a quem chamava de “Empreiteiros de Jesus”. Foi presidente de honra da Scuderie Le Cocq, composta por policiais justiceiros.

*

Paralelamente a essa face sombria, David Nasser foi compositor de versos imortais. Letrista afiado. Parceiro de autores de peso: Donga, Ataulfo Alves, Alcyr Pires Vermelho, Custódio Mesquita, Herivelton Martins. Gravado por vozes importantes: Aracy de Almeida, Carmen Miranda, Francisco Alves, Nelson Gonçalves.

Colocou letra na primeira parte da Ária (cantilena) da Bachianas Brasileiras nº 5, de Heitor Villa Lobos.

David Nasser (dir) e Herivelton Martins, com quem compôs tangos e sambas-canção de muito sucesso

***

Nem tudo eram flores para o repórter sacana. Em 26 de dezembro de 1963, o então deputado Leonel Brizola avistou David Nasser na outra ponta do balcão da Varig, no aeroporto do Galeão, no Rio. Meses antes David havia escrito uma matéria detonando Brizola (vê só o título: “A Biografia de um Pulha”). O político deu uma porrada na orelha e outra no queixo do repórter, que tombou desmaiado.

Dias depois, ainda moído da surra que levou, David publicava nova matéria que iniciava: “Bato o teclado desta máquina com a mão que esbofeteou um canalha pela segunda vez”...

***

David Nasser morreu às 3 e 15 da tarde de uma 4ª-feira, 10 de dezembro de 1980, com câncer no pâncreas e complicações da diabetes.  Havia sido internado na 6ª-feira anterior, na Casa de Saúde São José.

Três dias antes de falecer, pediu que levassem ao seu leito um gravador para ditar sua crônica semanal, mas faltou-lhe força.

Estava com 63 anos.

Tinha nascido em 1917, no dia 1º de janeiro.

Feliz aniversário, xará!

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Rotativas sem algemas

Quem gosta de inventar jornais em época eleitoreira, e imprimi-los com tinta-curare, não merece a herança de Cipriano José Barata de Almeida, um dos meus super-heróis da imprensa brasileira.

No ano de 1838, quem visse descendo a ladeira entre a praça principal de Natal (RN) e o Rio Potengí aquele homem franzino, paupérrimo, acometido pela diabetes e dando aulas de francês para comprar a janta, mal podia imaginar a vida de aventuras que ele enfrentou.
Cipriano nasceu em Salvador (BA) em 1764. Filho de família abastada, foi para Coimbra estudar Filosofia. Abandonou o curso em favor da Matemática. Logo depois, migrou para a Medicina. 

De volta ao Brasil em 1822, enfiou-se em tantas brigas políticas e fundou tantos jornais, que não conheço outro igual. Já trazia no currículo a participação na Conjuração Baiana (1798) e na Revolução Pernambucana (1817). Além de ter sido eleito, ainda em Lisboa, deputado pela Bahia nas Cortes Constitucionais (1821).


Em 1822 Cipriano estreou na Gazeta de Pernambuco. Em 1823 fundou seu jornal Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco
Eleito novamente para a Assembléia Constituinte, renunciou ao cargo por amor à sala de redação do jornal. Dono de um texto explosivo, nativista até os ossos, só andava pela rua vestido em algodão tosco brasileiro, sapatos de couro sem tinta, chapéu de palha e bengalão. 
Foi um dos maiores fregueses de prisões políticas do Brasil. Cada vez que Cipriano burlava seus carcereiros com a edição de um novo jornal, era punido com a transferência para novas masmorras. 
Os nomes dos jornais de Cipriano nos dão o roteiro dos calabouços que ele amargou:
Sentinela de Pernambuco durou 66 números; 

Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco Atacada e Presa na Fortaleza de Brum por Ordem da Força Armada – um número; 
Sentinela da Liberdade à Beira Mar da Praia Grande, Niterói, 32 números; 
Sentinela da Liberdade Hoje na Guarita do Quartel-General de Pirajá na Baía de Todos os Santos
Nova Sentinela da Liberdade na Guarita do Forte de São Pedro da Baía de Todos os Santos, 1831, 37 números; 
Sentinela da Liberdade na Guarita do Qaurtel-General de Pirajá Hoje Presa na Guarita da Ilha das Cobras, Rio de Janeiro, 1831; 
Sentinela da Liberdade na Guarita do Quartel-General de Pirajá Hoje Presa na Guarita de Villegagnon, Rio de Janeiro; 
Sentinela da Liberdade na Guarita do Quartel-General de Pirajá Hoje Presa na Quarta Fragata Niterói, Rio de Janeiro; 
Sentinela da Liberdade na Guarita do Quartel-General de Pirajá Mandada Despoticamente para o Rio de Janeiro e de Lá para o Forte do Mar da Bahia Donde Generosamente Brada Alerta, 1831; 
Sentinela da Liberdade em Sua Primeira Guarita, Pernambuco, Onde Hoje Brada Alerta!, 1834-1835.
Ao final deste calvário de cárceres, o bravo jornalista morou por uns tempos na Paraíba, mudando-se a seguir para Natal, a convite do presidente da província do Rio Grande do Norte.
Cipriano José Barata de Almeida morreu aos 74 anos, no dia 11 de junho de 1838.