quinta-feira, 26 de julho de 2007

Cantando o amanhecer

Marco Pezão

Na sexta feira, minha mulher, florista, fazia os arranjos costumeiros. Cortava o cabo das rosas em diagonal para se hidratarem melhor. A garagem transformada em floricultura abriga longo cotidiano, tempo fecundo de nossa relação. Não tanto economicamente, e, sim, por respeito e amor pelas atitudes adquiridas no convívio.
Vizinho de mesma calçada, a Cimecan, distribuidora de cimento, é relação de amizade sempre próspera. Luiz, um dos sócios, chega ao nosso comércio tendo sob o braço um jovem galo:
- Dona Otília, um amigo, caminhoneiro, trouxe do interior e me deu de presente. Levei pra casa, mas, a senhora sabe, a dona Onça, quando viu o bicho aqui, ficou fula. Ela exigiu que eu o jogasse na rua. Então, estou trazendo pra ver se a senhora quer fazer proveito.
Não precisou falar duas vezes. Com o sorriso costumeiro no rosto, abraçou o galeto, agradeceu, e o levou pro quartinho que há no fundo de casa. Pensando, claro, como boa cozinheira que é, em fazer uma panelada pro almoço domingueiro.
Quando cheguei à noite me fez saber a novidade. O penoso vermelho estava num canto, de crista empinada, receoso, talvez, quanto ao seu destino já traçado.
Na manhã de sábado acordei cedo e coava o café, como de costume. Fui tomado de surpresa, porém, ao ouvir o galo cantar, assim que o clarão do dia começou a surgir. O bairro é totalmente urbanizado e há muitos anos que ninguém cria galinhas ou tenha um galo no quintal.
O trabalho me leva longe de casa todos os finais de semana. E o domingo já estendia a malha da tarde quando cheguei para o almoço. Olhei a água fervente à espera do macarrão. E, noutra panela, o molho recheado de bracholas. Minha mulher estava sentada junto à mesa e antes que dissesse palavra, perguntei: “O prato não é o galo?”
Apontando a cachorra que ao meu lado abanava o rabo, bradou:
- Você não sabe o que a Mila aprontou? Fui ver o galo e deixei a porta um pouco aberta. Essa sem vergonha passou entre minhas pernas e avançou no coitado. O galo tomou um susto e voou sobre minha cabeça. Ela correndo atrás, e ele com medo fugiu pro telhado. De lá foi pra casa do “seo” Severino, depois pro telhado do “seo” Nelson, passou pela casa do sapateiro e se empoleirou no muro da Belíssima.
E arrematou, ameaçando a cadela: “Fora daqui, Mila! Se você entrar na cozinha, eu vou te dar uma surra, sua enxerida!”
Subi na laje e não dava para avistar o fugitivo. Otília continuou: “Fui lá no ”seo” Juan, o muro é muito alto. Pus milho no chão, agora é esperar ele descer na hora que der fome. Coitado do Pavaroti, vai passar a noite no relento”.
- Pavaroti?
- É, apelidei o galo de Pavaroti. Ele canta tão bem.
A Belíssima, eu explico, é um night club. Casa de muitas mulheres, drinques, coisa e tal. Fiz a piada. O galo Pavaroti, de bobo não tem nada. Ele foi se empoleirar no terreiro onde estão quem? Ora, as “galinhas”...
Otília não riu e franzindo a testa, sapecou: “Só falta você dizer que vai caçar o galo, hoje à noite, na Belíssima?”
Veio a manhã de segunda feira, 9 de julho, e o cantar do Pavaroti indicava que ele não havia ido parar em panela alheia. Fizemos uma busca frente ao local, e o imperioso continuava sobre o muro.
Dona Nilza, uma das vizinhas, comentou: “Vocês ouviram? Hoje acordei com um galo cantando. Me lembrei do sítio de papai”.
- É o Pavaroti, respondia Otília a todos que notaram a presença do raro cantador...
Passado umas horas, decidi com meu afilhado:
- Vamos a caça, senão adeus galo.
Entramos no quintal da Belíssima, graças ao faxineiro que lá trabalha. Explicamos a situação e encontramos o Pavaroti empoleirado no galho da enorme mangueira.
Ágil e armado de um cabo de vassoura, o menino Feliz escalou uma pequena laje e ganhou altura para cutucar o penoso arredio, que bateu asas para o meio da estrada do Campo Limpo.
Entre os carros que passavam armamos uma correria só. E fomos atrás dele estrada acima e abaixo, sob risos daqueles que viam a insólita perseguição.
E se juntaram a nós, o moço da auto-escola, a Otília, dona Nilza, gente que circulava, até a Celeste, que faz jogo do bicho, já tinha o palpite certeiro: “Vai dar galo na cabeça”.
Por fim, cansado, o Pavaroti se enfiou num pequeno jardim repleto de coroas de cristo. Cercado, tratei de tentar pegar a presa. Mas, com cuidado, para não me ferir nos espinhos e numa possível bicada.
Ai! Que força demonstrou o galo. Num arremedo voltou a voar e pousou na entrada da nossa floricultura. Ficamos todos em silêncio para não assustá-lo de novo. Fervorosa, Otília pediu: “São Salonguinho, faz ele entrar que eu dou três pulinhos”.
Não sei se foi o santo ou as plantas como possível refúgio. Ele entrou e abaixamos a porta para não sermos surpreendidos. Otília tratou de pegá-lo e rapidamente cortou suas asas, enquanto eu amarrava uma fita aos seus pés.
Ufa! E o galo Pavaroti tornou-se atração na vizinhança, naquele feriado. Alguns já o viam fervendo num caldo com batatas.
- Vamos matá-lo, agora? Como? Destroncar o pescoço? Mas, ele canta tão bonitinho!
Em face do ocorrido, rimos, louvado sentimento ditou a sentença:
- De tanto lutar pela liberdade, o Pavaroti merece viver.
E assim, na redondeza, o amanhecer ganhou mais vida na voz do intrépido cantor!
Cocorocó!

Um comentário:

Binho disse...

Já tinha lido algumas coisas do poeta Marco Pezão e sempre gostei desse seu estilo, seu bom humor. Por ser moradora da região e conhecer a maioria dos lugares citados, fiquei imaginando a cena, dei risada sozinha em frente ao PC.
Esta crônica me fez reviver algumas lembranças afetivas da minha infância, uma delas era do cheiro de bunda de tanajura frita que meu vizinho , Seu Joaquim, fazia, mas isto já é uma outra história...
parabéns Pezão

Suzi