quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Na Lapa, entre cordas e livros

Quatro décadas atrás, biblioteca da Lapa tinha público maior que o atual.
Sistema Municipal de Bibliotecas busca atrair novos frequentadores

Hoje a discoteca municipal funciona
no Centro Cultural São Paulo, no
bairro Vergeiro
Fui lá. Na Lapa. Ontem. Fui porque Henriqueta me disse que queria ver a música escalar as paredes da biblioteca que ela dirige. Fui também porque a Lapa é a Lapa, e pronto. É o bairro seminal na literatura do meu idolatrado escritor e jornalista João Antônio. Foi lá onde ele cursou o ensino médio, e onde ambientou a sua primeira mais famosa obra literária – o conto Malagueta, Perus e Bacanaço.
A Biblioteca Mário Schenberg, a quem o povo chama pelo topônimo Biblioteca da Lapa, dirigida pela Henriqueta Marques, teve papel fundamental na minha adolescência. Eu saia de Taboão da Serra, pegava dois ônibus até a Lapa, só para usufruir de um recurso cultural que apenas aquela biblioteca oferecia.
Na época nem era chamada Biblioteca Mário Schenberg. Tinha outro nome. E eu nem ia lá atrás de livros (isso eu fazia na biblioteca com nome de outro Mário, o Andrade). Ia mesmo era no sexto andar daquele prédio da Rua Catão, onde funcionava a Discoteca Municipal de São Paulo ocupando dois andares. Acoplado à discoteca havia o Arquivo da Palavra, com vozes de pessoas renomadas, e gravações das pronúncias regionais do Brasil inteiro. Uma delícia ouvir aquela variedade louca de sotaques. 
No andar de cima nunca fui, mas sei que lá moravam os livros da biblioteca de música. A mim bastavam as 10 cabines de som do sexto andar e seus milhares de discos.
Em 1982 a discoteca foi transferida para o Centro Cultural São Paulo, no bairro Vergueiro.
Por isso achei divertido quando, na madrugada anterior, Henriqueta me escreveu: “Vou colocar o quarteto de cordas para tocar bem no meio do saguão de entrada. Tô imaginando a música subindo pelo prédio e envolvendo os livros nas estantes!”. A música já subiu aquelas paredes décadas atrás. E morou por 12 anos (1970 a 1982) no alto do velho edifício que no dia 23 de dezembro fará 61 anos de construção.
Vez em sempre Henriqueta me fala que precisa achar a verdadeira vocação daquela biblioteca. “A frequencia de público é baixa. Quero ver isto aqui sempre cheio de gente”, suspira a bibliotecária. Um rápido giro pelo arquivo de jornais antigos me conta que em 1975 a discoteca pública paulistana atendeu 65.811 pessoas. Quase 66 mil pessoas só na discoteca. Cerca de 70 mil consulentes subindo ao sexto andar. Não inclusos os frequentadores da biblioteca tradicional no mesmo prédio.
É este povaréu que Henriqueta quer de volta à sua biblioteca.
Quarteto de cordas Mivos Quartet, dos EUA, na biblioteca da Lapa.
Foto: David da Silva - 05.nov.2014

Ousados e ferozes
Quem foi à Biblioteca Mário Schenberg no início da tarde desta quarta-feira, 5 de novembro, pensando somente em relaxar ao som de violinos calmos, se surpreendeu. O Mivos Quartet, dos Estados Unidos, mescla atrevimento e uma certa fúria no jeito de tocar. É dos mais requisitados na atualidade em todo o mundo. Só de setembro para cá o quarteto de cordas tocou na Itália, Suíça, Alemanha, além dos constantes concertos que faz por toda a América do Norte. A biblioteca da Lapa ofereceu o espetáculo de graça.
Anteontem o grupo tocou na Biblioteca Monteiro Lobato, no centro de Sampa. Amanhã toca na Bahia.
Mariel Roberts (cello) e Olivia de Prato (violino)
Foto: David da Silva - 05.nov.2014
Mivos Quartet se dedica à música clássica moderna. Abriu a apresentação com String Quartet nº 3, de Philip Glass. Antes de cada execução, o músico Victor Lowrie (viola) faz uma breve explanação sobre o que vai ser tocado. Na segunda música, nosso orgulho de ser brasileiro. A composição Corde Vocale é de Felipe Lara, 35 anos, nascido em Sorocaba (SP). Foi para os Estados Unidos em 1999 ao ganhar bolsa de estudos no Berklee College of Music, em Boston. Felipe Lara começou como guitarrista de rock; depois evoluiu para o jazz e a MPB. Hoje se dedica à música clássica de vanguarda. Corde Vocale é o seu primeiro quarteto de cordas, feito em 2005.
Na terceira música, Victor Lowrie explica que Johann Sebastian Bach morreu justamente quando estava compondo os Contrapunctus – o Mivos Quartet executou o de número 9.
A última obra do concerto, de autoria de Taylor Brook, é inspirada em um conto do argentino Jorge Luis Borges. Com o mesmo título da obra referenciada, El Jardin de los Senderos que se Bifurcan (O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam) mostra em seu primeiro movimento a viola fazendo um chamamento, enquanto os outros três instrumentos respondem.
A musicista Olivia de Prato é uma atração dentro da atração. Nos prende a atenção seu modo vigoroso, extravagante e convincente de se agadanhar ao violino. É uma violinista encantadora. Ela nasceu na Áustria, cresceu na Itália, e mora nos Estados Unidos desde 2001.
A violoncelista Mariel Roberts é surpreendente por ser nova na idade, mas com muita maturidade na interpretação extremamente sensível.
O quarteto se completa com o brilhante violino de Joshua Modney.

Enquanto o Mivos Quartet tocava a obra de Taylor Brook, lembrei de uma tirada magnífica do Jorge Luis Borges. Perguntado sobre como achava que seria o Paraíso, respondeu: “Penso que o Paraíso deva ser uma espécie de biblioteca”.

É nesta concepção paradisíaca que a diretora-bibliotecária investe: “Estou ousada, né? Quero saraus de poesia de madrugada nessa biblioteca. E músicas também”.
Joshua Modney (violino) e Victor Lowrie (viola). Foto: David da Silva - 05.nov.2014
Foto: David da Silva - 05.nov.2014
Foto: David da Silva - 05.nov.2014
Foto: David da Silva - 05.nov.2014
Foto: David da Silva - 05.nov.2014

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