O andarilho João Pereira conta a segunda parte das suas desventuras. Foto: David da Silva - 19.set.2015 |
Sábado, 19 de setembro, quase dez e meia da noite. Uma sombra se
esgueira rente a uma árvore no Largo do Campo Limpo. O vulto pára ensimesmado.
Olha em volta, e vupt!, começa a trepar no tronco. Com habilidade de aranha,
trança rapidamente fios e cordas entre a galharia. E estica uma rede de dormir num ponto
ainda mais alto do que onde havia antes uma barraca aérea. João está de
volta à sua árvore.
Madrugada no Campo Limpo. À esq. da foto,
o Bar Fecha-Nunca. No alto
dos galhos,
a rede onde dorme João. Foto:
David da Silva – 19.set.2015
|
Na reportagem anterior contei a gênese da perambulação desta triste
figura. Agora João Pereira, 51 anos, há 19 anos como caminhante, conta a
segunda parte da sua história. E me surpreende ao revelar que além de ter ido a
pé a Campinas, Ribeirão Preto, Bauru, Rio de Janeiro, Minas Gerais, ele também
foi caminhando até o Paraguai.
O andarilho não veio para as quebradas do Campo Limpo à toa. Veio pedir
socorro a uma irmã.
Deu com a cara na porta. E pra remate dos males, a Prefeitura de São
Paulo destroçou a maloca que ele tinha construído na árvore sibipiruna no
canteiro central do início da Avenida Carlos Lacerda.
João não está mais com o bom humor da primeira entrevista. Uma tosse renitente ressoa das profundezas do seu pulmão. As chuvas bravas de semanas atrás e a intolerância da subprefeitura lhe encharcaram a alma.
Me vem à mente um texto do poeta Manoel de Barros, onde ele fala de “um
homem com o olhar sujo de dor”. É com este olhar sujo de dor que João me conta
como perdeu seu abrigo na árvore.
Manoel de Barros tinha particular fascínio por andarilhos. Tanto que fez
um poema com este título.
Por isso, antes de dar voz e vez a João, ponho aqui pra falar o poeta
Manoel de Barros, com frases pinçadas de alguns de seus poemas e crônicas: “Os
andarilhos, as crianças e os passarinhos têm o dom de ser poesia. Os andarilhos
legítimos não são interesseiros. Viajam por destinação. Por vocação de nada. O
que caracteriza os andarilhos é o desapego das coisas do mundo. Eles se apegam
à liberdade.
Acho que os caminhos dos andarilhos ensinam a não chegar, a ir em frente.
Minha vó ensinou a não desprezar as coisas desprezíveis. E nem os seres
desprezados.”
Você veio aqui pra região do Campo
Limpo por que?
Vim
procurar minha irmã, Isaura Pereira. Ela mora perto da Padaria Varandas [bairro Jardim Clementino, Taboão da Serra,
próximo ao Largo do Campo Limpo].
Essa sua irmã pode te ajudar em que?
Ela tem
imóveis, casas de aluguel, posto de gasolina, agência de carros. É uma pessoa
bem sucedida, né? Casada com um sargento da Rota.
A tua irmã te atendeu?
Não. Nem
cheguei a conversar com ela. Ela só deu um tchauzinho assim lá de cima da laje
da casa dela, só isso. Não consegui nada no momento com ela, né? E como já faz
quatro anos que eu moro em árvores, então a minha opção foi ficar nesta árvore
aqui do Campo Limpo.
Essa é a segunda árvore que você
mora.
Exatamente.
Morei dois anos em cima de uma árvore de 40 metros de altura lá em Diadema.
Cada lugar que eu passo, eu escolho uma árvore pra ficar, pra dormir. Já é um
costume mesmo, né? Eu nunca morei no chão terrestre.
Essa árvore onde você mora agora foi
fácil de achar?
De 12
árvores que eu analisei aqui na região, a privilegiada foi essa (risos). Tem os galhos certinhos pra
amarrar a cama. Até pra subir e descer ela é boa. Fiquei analisando essa árvore
bastante tempo, né?
O que aconteceu com a cabana que
você tinha montado nessa árvore?
A
Prefeitura cortou. Vieram aí com o Exército, cortaram as cordas, picaram as
cobertas e meus pertences que eu tinha lá em cima. Eu estava vindo lá do
Terminal de Ônibus Campo Limpo. De longe eu vi as viaturas e o caminhão da
Prefeitura encostado aqui na árvore. E os funcionários já subindo na árvore pra
cortar a minha maloquinha.
Do tempo que você está aqui no Campo
Limpo, já recebeu alguma ajuda?
Não tive
nenhuma ajuda. De vez em quando nas madrugadas passa alguém dando um cobertor,
algum alimento. Mas uma ajuda tipo um lugar pra ficar, ou me arrumar algum
trabalho, não tive não.
E se te arrancarem de novo daqui da
árvore?
Albergue
é um lugar assim de muitas pessoas. Eu sou uma pessoa tímida. Esse negócio de
albergue não é adequado pra mim. Eu preferia uma chácara pra tomar conta, um
trabalho. Eu gosto muito de mexer com plantação. Eu trabalhei com um japonês por
12 anos, ele me ensinou tudo como planta, como colhe. Gosto muito de mexer com
a terra. Sem falar que sei lidar com máquina de cortar grama, sei pintar
paredes. Se aparecer uma oportunidade, estamos aí, né?
2 comentários:
uma pessoa tentando viver co dignidade mas a alma dos "seres humanos" parece cada vez mais insensata, dura. É triste. A irmão vira-lhe as costas, a prefeitura covardemente tira-lhe o unico bem. Triste
Bravo, Caro David!
Você não deixa a peteca cair. Esse predestinado andarilho encontrou sua caneta salvadora...
Postar um comentário