segunda-feira, 21 de setembro de 2015

João volta para a sua árvore no Largo do Campo Limpo

O andarilho João Pereira conta a segunda parte
das suas desventuras. Foto: David da Silva - 19.set.2015
Sábado, 19 de setembro, quase dez e meia da noite. Uma sombra se esgueira rente a uma árvore no Largo do Campo Limpo. O vulto pára ensimesmado. Olha em volta, e vupt!, começa a trepar no tronco. Com habilidade de aranha, trança rapidamente fios e cordas entre a galharia. E estica uma rede de dormir num ponto ainda mais alto do que onde havia antes uma barraca aérea. João está de volta à sua árvore.
Madrugada no Campo Limpo. À esq. da foto, 
o Bar Fecha-Nunca. No alto dos galhos, 
a rede onde dorme João. Foto: David da Silva – 19.set.2015
Na reportagem anterior contei a gênese da perambulação desta triste figura. Agora João Pereira, 51 anos, há 19 anos como caminhante, conta a segunda parte da sua história. E me surpreende ao revelar que além de ter ido a pé a Campinas, Ribeirão Preto, Bauru, Rio de Janeiro, Minas Gerais, ele também foi caminhando até o Paraguai.
O andarilho não veio para as quebradas do Campo Limpo à toa. Veio pedir socorro a uma irmã.
Deu com a cara na porta. E pra remate dos males, a Prefeitura de São Paulo destroçou a maloca que ele tinha construído na árvore sibipiruna no canteiro central do início da Avenida Carlos Lacerda.
João não está mais com o bom humor da primeira entrevista. Uma tosse renitente ressoa das profundezas do seu pulmão. As chuvas bravas de semanas atrás e a intolerância da subprefeitura lhe encharcaram a alma.
Me vem à mente um texto do poeta Manoel de Barros, onde ele fala de “um homem com o olhar sujo de dor”. É com este olhar sujo de dor que João me conta como perdeu seu abrigo na árvore.
Manoel de Barros tinha particular fascínio por andarilhos. Tanto que fez um poema com este título.
Por isso, antes de dar voz e vez a João, ponho aqui pra falar o poeta Manoel de Barros, com frases pinçadas de alguns de seus poemas e crônicas: “Os andarilhos, as crianças e os passarinhos têm o dom de ser poesia. Os andarilhos legítimos não são interesseiros. Viajam por destinação. Por vocação de nada. O que caracteriza os andarilhos é o desapego das coisas do mundo. Eles se apegam à liberdade.
Acho que os caminhos dos andarilhos ensinam a não chegar, a ir em frente.
Minha vó ensinou a não desprezar as coisas desprezíveis. E nem os seres desprezados.”

Você veio aqui pra região do Campo Limpo por que?
Vim procurar minha irmã, Isaura Pereira. Ela mora perto da Padaria Varandas [bairro Jardim Clementino, Taboão da Serra, próximo ao Largo do Campo Limpo].

Essa sua irmã pode te ajudar em que?
Ela tem imóveis, casas de aluguel, posto de gasolina, agência de carros. É uma pessoa bem sucedida, né? Casada com um sargento da Rota.

A tua irmã te atendeu?
Não. Nem cheguei a conversar com ela. Ela só deu um tchauzinho assim lá de cima da laje da casa dela, só isso. Não consegui nada no momento com ela, né? E como já faz quatro anos que eu moro em árvores, então a minha opção foi ficar nesta árvore aqui do Campo Limpo.

Essa é a segunda árvore que você mora.
Exatamente. Morei dois anos em cima de uma árvore de 40 metros de altura lá em Diadema. Cada lugar que eu passo, eu escolho uma árvore pra ficar, pra dormir. Já é um costume mesmo, né? Eu nunca morei no chão terrestre.

Essa árvore onde você mora agora foi fácil de achar?
De 12 árvores que eu analisei aqui na região, a privilegiada foi essa (risos). Tem os galhos certinhos pra amarrar a cama. Até pra subir e descer ela é boa. Fiquei analisando essa árvore bastante tempo, né?

O que aconteceu com a cabana que você tinha montado nessa árvore?
A Prefeitura cortou. Vieram aí com o Exército, cortaram as cordas, picaram as cobertas e meus pertences que eu tinha lá em cima. Eu estava vindo lá do Terminal de Ônibus Campo Limpo. De longe eu vi as viaturas e o caminhão da Prefeitura encostado aqui na árvore. E os funcionários já subindo na árvore pra cortar a minha maloquinha.

Do tempo que você está aqui no Campo Limpo, já recebeu alguma ajuda?
Não tive nenhuma ajuda. De vez em quando nas madrugadas passa alguém dando um cobertor, algum alimento. Mas uma ajuda tipo um lugar pra ficar, ou me arrumar algum trabalho, não tive não.

E se te arrancarem de novo daqui da árvore?
Albergue é um lugar assim de muitas pessoas. Eu sou uma pessoa tímida. Esse negócio de albergue não é adequado pra mim. Eu preferia uma chácara pra tomar conta, um trabalho. Eu gosto muito de mexer com plantação. Eu trabalhei com um japonês por 12 anos, ele me ensinou tudo como planta, como colhe. Gosto muito de mexer com a terra. Sem falar que sei lidar com máquina de cortar grama, sei pintar paredes. Se aparecer uma oportunidade, estamos aí, né?

2 comentários:

ary marcos motta disse...

uma pessoa tentando viver co dignidade mas a alma dos "seres humanos" parece cada vez mais insensata, dura. É triste. A irmão vira-lhe as costas, a prefeitura covardemente tira-lhe o unico bem. Triste

fenolio disse...

Bravo, Caro David!
Você não deixa a peteca cair. Esse predestinado andarilho encontrou sua caneta salvadora...