quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Ele voa de bike. E conserta aviões

Emerson Soares faz o tobogã sobre os doubles do Voltadirt, em Krefeld, Alemanha.
Foto: Stefan Marker
Vindo de Minas Gerais para morar na casa da mãe em Taboão da Serra, pela janela do ônibus o menino viu no bagageiro de um carro a coisa mais desejada da sua vida. Uma bicicleta aro 20 própria para a prática do bicicross, ou BMX - sigla inglesa para bicycle(B) moto(M) cross(X).
“Esse foi o segundo registro mais forte da minha memória em relação ao BMX. O primeiro foi aos11 anos de idade, lá em Pirapora (MG), onde passei 3 anos da minha infância e tive a primeira oportunidade no bicicross”, conta Emerson Soares Muniz, 36 anos. Ex-morador de Taboão da Serra e Embu das Artes, grande incentivador do BMX na nossa região no período de 1993 a 2005, hoje é mecânico de aviões na Alemanha.
Emerson na Pç Luis Gonzaga, Pirajuçara
Foto: David da Silva - 28.mai.2010

Conheci Emerson Soares no início dos anos 2000, no extinto bar O Garajão, em Taboão da Serra, durante um show da Banda Varal (atual banda Veja Luz). Ele pediu para eu fazer reportagem do campeonato de Dirt Jump (saltos de bikes sobre rampas de terra) que era realizado todos os anos no morro do Jardim Vitória, região próxima aos bairros Independência e Santa Tereza, Embu das Artes. A competição atraia pilotos de lugares distantes.
Hoje a pista não existe mais. Assim como assassinaram há muito tempo uma pista de bicicross existente em Taboão da Serra, por trás do Pronto Socorro Municipal, o popular “PS da Antena”.
Vamos deixar o próprio Emerson girar para trás o pedal da história de sua antiga paixão pelas bikes de aro 20.

“Quando resolvi ficar com minha mãe e meus irmãos, aquela bike no teto do carango que eu vi de dentro do busão no trajeto entre o Terminal Rodoviário Tietê e Taboão me fez lembrar as rampas de bicicross em Pirapora. Vivi com dois tios e uma tia naquela cidade, às margens do Rio São Francisco. Na época, em 1990, foi tudo muito difícil para mim por causa da separação dos meus pais alguns anos antes”, relata.
Com o coração lotado de saudades da mãe e dos irmãos, o moleque encontrava consolo nas rampas para bicicross construídas ao lado do Velho Chico, como o famoso rio é carinhosamente chamado pela população ribeirinha.
Primeira pista de bicicross de Pirapora (MG). Ao fundo o majestoso Rio São Francisco.
“Lá [naquelas rampas na beira do rio] rolaram batalhas de muitos campeonatos de bicicross. Lá começou, realmente, a minha relação mais forte e próxima com o BMX. Antes, de alguma forma eu já tinha em mente as caloicross verdes, amarelas, azuis e vermelhas com rodas estrelas de plástico. Foram as primeiras imagens de uma BMX registradas na minha mente. Essa geometria me perseguiu por muitos anos. Comecei a praticar bicicross com uma [bike] aro 26 polegadas. Isto não era problema com relação ao meu tamanho físico, mas sim pela qualidade do material com o qual as bikes eram construídas. Aço carbono de baixíssima qualidade. Mas que garantiram os primeiros saltos sobre as rampas da pista de Pirapora que, pra mim na época, eram de dimensões gigantes. Algumas trincas e reparos com solda elétrica, e a Caloi Cruiser na cor preta seguiu comigo por alguns anos, até eu decidir que ia embora pra SP”.

Com a pista construída em 1990 - onde Emerson fez seus primeiros voos de bike - a destinação de espaço para o bicicross em Pirapora (MG) revelou-se acertada. É daquela cidade o campeão Antonio Maurício Lisboa, vencedor do Campeonato Brasileiro de Bicicross de 2014 na categoria 45/49 anos. Seu herdeiro Maurício Lisboa Filho e a filha Rafaela Lisboa também têm se destacado nas pistas de BMX.
Uma nova pista de bicicross com mais de 12 mil m² e infraestrutura de alambrado, área gramada, estacionamento, foi entregue à população de Pirapora no ano passado, com investimento de R$ 539,9 mil reais.

Voltemos ao Emerson e às suas memórias ciclísticas.
“Assim que cheguei em Taboão da Serra em meados de 1993, fui trabalhar em uma Casa do Norte na Estrada Kizaemon Takeuti, na região do Pirajuçara. Comecei a estudar na E.E. Reynaldo Faleiros, no Jardim São Salvador”.
O choque cultural entre a pacata cidade do interior mineiro e a violência da região metropolitana da Grande Sampa abalou as convicções estudantis do garoto Emerson. “Nos primeiros dias de aula fiquei assustado com a diferença entre a minha primeira escola em Pirapora e a nova, onde a rapaziada queimava vários charutos [maconha] à vontade, e onde pude ver alguns alunos que iam armados pra escola. Abandonei a escola e me dediquei apenas ao trabalho. Foi a decisão mais errada que fiz até hoje na vida”, lamenta.

Quando conheci Emerson em 2004, vi que, apesar de não ter a educação formal das escolas, ele tinha boa formação cultural. Gostava dos livros, interessava-se pelos saraus poéticos que começavam a pipocar na época em Taboão da Serra e Campo Limpo. Chamei o rapaz para ser meu colaborador como bike-repórter.

A vida sobre duas rodas
Local das competições no Jd Vitória, Embu das Artes.
Esta pista não existe mais. Foto: Julho/2004

“Desde moleque eu lia muito. Minha vida era voar com a bike e ler. Precisava aprender muito sobre esse mundão de meu Deus. Comecei a comprar revistas especializadas em MotoCross. Foi por meio das revistas que conheci nomes como Roque Kollmann, Jorge Negretti, Rogério Nogueira, Cássio Roberto Garcia, Gilberto Narezzi, Cristiano Lopes, Milton Becker... entre outros.
“Através da leitura mudei o rumo da minha vida.
“Mas por mais que lia e me informava, não estava frequentando uma escola. Isso me dificultava a vida, por não ter nem mesmo o diploma do ensino fundamental completo".
Emerson na manobra back flip. Foto: 25.julho.2004
A vida do garoto Emerson se dividia entre ajudar a mãe nas despesas da casa e dar saltos com sua bike.
Mas pra dar o grande salto da sua vida, era preciso fazer as pazes com a escola.

Na noite em que Emerson me pediu as reportagens sobre os campeonatos que realizava, ficamos combinados de eu ir à competição no próximo domingo. Mas já na manhã seguinte, ele tanto insistiu que acabei indo ao local das disputas. Queria que eu visse com antecedência como eram construídas as rampas de desafios aos pilotos.
Digitais de Emerson na história do BMX na região.
Cartaz do campeonato de 2004. Acervo: David da Silva
Foi interessante ver Emerson feito um engenheiro, passando minuciosas instruções ao operador do trator sobre a altura dos montes de terra e os graus de inclinação das rampas.
Não tenho mais a versão impressa das minhas reportagens sobre aquele lugar. Mas lembro perfeitamente que a pista no morro do Jardim Vitória tinha várias sequencias de doubles (montes de terra) variando de 2 metros de altura a doubles mais baixos, num total de 16 doubles.
Aquela pista do morro do Jardim Vitória tinha sido construída no muque, na pá e na enxada em 2001 pelos pilotos embuenses Sivaldo Silva e Wellington Rocha. Meu amigo Emerson, conhecido entre os bikers como Boy, era fiel parceiro na manutenção da pista e na organização e divulgação dos campeonatos.

O BMX chegou com toda a sua força no Brasil em julho de 1978, por iniciativa da fabricante de bicicletas Monark. Foi ela quem construiu a primeira bike brasileira modelo BMX com rodas de 20 polegadas.
Piloto na manobra superman seat grab.
Embu das Artes/jul.2004
O belo visual das manobras dos pilotos sobre suas bikes fascinam e atraem um grande público.
O BMX nasceu na Holanda. O primeiro registro desta atividade data de 1957. Sua prática se enraizou na Califórnia, Estados Unidos. Daí os nomes das manobras serem todos em inglês.
Está classificado como esporte olímpico desde as Olimpíadas de Pequim-2008.

Enquanto não se decidia a retornar aos bancos escolares, Emerson Soares investia em equipamentos para a sua devoção ao BMX.
“O dinheiro que me sobrava no final do mês, depois de ajudar minha mãe, comprei a minha primeira BMX de qualidade por volta de1994. Lembro da primeira Dyno Slamer em 1996. Foram muitas bikes no período entre 1994 e 2004.
"Em 2004 parei de praticar o esporte por causa de muitas decepções. A minha maior mágoa foi terem destruído a pista atrás do Pronto-Socorro da Antena.  Além disso já tinha outras desilusões de projetos de BMX que eu queria implantar na região de Taboão/Embu, mas nunca conseguia apoio para realizar. Parei com tudo”.
Pistas bicicross foram destruídas em Taboão e Embu.
Foto: 25.julho.2004

Dali se seguiriam oito anos longe das bikes. Em meio a este exílio das pistas, sobreveio uma decisão inteligente:
“Depois de 13 anos afastado dos estudos, em 2006 determinei que era tempo de retornar à sala de aula. Concluí o ensino fundamental pelo EJA (Educação de Jovens e Adultos) na Escola Municipal Antônio Fenólio. Dali fui cursar o ensino médio, também pelo EJA, mas na Escola Neusa Demétrio, que conclui em 2009”.

Novos voos
Entre 2009 e 2011 vamos encontrar Emerson Soares pedalando desde o Jardim Independência, onde morava em Embu das Artes, até o aeroporto de Congonhas, em São Paulo. As pedaladas agora o levavam ao curso de mecânico de manutenção aeronáutica na escola de aviação EACON. Concluído o curso em 2011, em janeiro de 2012 passou na prova da Anac (Agência Nacional da Aviação Civil) e obteve seu certificado de conhecimento teórico.
Desde 2009 Emerson namorava a moça que veio a ser sua mulher. “Minha esposa tinha um contato na Alemanha com uma empresa de manutenção de aeronaves. Em fevereiro de 2012 vim conhecer, e não voltei mais ao Brasil”.
Emerson numa das maiores feiras de aviação do mundo, a ILA de Berlim, ao lado do Airbus A380, maior avião de passageiros já construído.
Na Alemanha, o primeiro estágio foi em Möchengladbach. Depois foi trabalhar na cidade de Bremen, no norte alemão em um hangar de manutenção dos ATRs, aviões franceses de transporte regional de passageiros.
Iniciou como “praktikum” na empresa de manutenção aeronáutica onde trabalha até hoje. Começou como praticante porque o curso que havia feito no Brasil não é reconhecido na Alemanha. E também porque não tinha visto de trabalho. Um dos chefes gostou do seu serviço e lhe ofereceu, em 2013, uma vaga como mecânico ajudante, para fazer um dos cursos mais difíceis do mundo para mecânicos aeronáuticos. "Os caras são Reine Theoretiker e isso só vim entender aqui. Não posso cuspir no prato que pouco comi. Mas no Brasil o ensino é o chamado enxuga gelo", conta Emerson.
“Não acredito que tive de pagar por um curso particular para aprender uma profissão que não aprendi. Sofri pacas! Pedalei durante todos os dias do último ano do curso desde Embu das Artes até o aeroporto de Congonhas. Foram muitos quilômetros e muitos riscos de vida para concluir aquele tão desejado curso de mecânico de aeronaves. Concluí, sim, mas será que estaria trabalhando na área no Brasil? A maioria dos meus amigos de classe da época ou desistiram da profissão, ou nunca arranjaram nada na área, segundos informações que tive sobre eles”.

Hoje Emerson está no último ano do curso, estudando sobre materiais compostos para construção aeronáutica. “Os aviões do futuro já estão sendo feitos agora, mano véio”, diz empolgado. “Estou na terra do desenvolvimento de materiais”.

Na Alemanha, mesmo enfiado nos estudos Emerson reencontrou o prazer de voar com sua bike. “Depois de oito anos de pausa no bicicross, aqui recebi o apoio que nunca tive para praticar o BMX no Brasil. Esse apoio veio por meio do Christian Ziegler e do Stefan Marker, donos da loja Alliance BMX. Esses dois são os meus melhores amigos na Alemanha”.

Duas vezes por semana Emerson dá aulas de BMX em um centro educacional mantido pela Prefeitura de Krefeld, cidade onde reside atualmente, na região leste da Alemanha. As aulas de bicicross também são destinadas a refugiados de guerra.
Durante nosso bate-papo no último sábado, Emerson estava construindo rampas de madeira para treinos de bicicross dentro de um galpão, por causa do rigoroso inverno alemão.
Emerson com seus alunos no Förderverein Freizeitzentrum Süd, em Krefeld, na Alemanha.
Foto: Reprodução - 08.set.2015

2 comentários:

Jussanam disse...

Linda historia! Parabens ao Emerson! Vitorioso!!! Bjs . Jussanam

Anônimo disse...

Comentário enviado pelo msg pela médica doutora Déo (Deonice Lucy Lopes):
David..... amei a reportagem do Emerson. Muito boa.
E que menino "fuçado"...
Outro, teria chutado o pau da barraca. Vc valorizou muito, a história dele.... méritos! A vcs dois! A história é sensacional.
Amei!