quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Áustria, pátria mãe de monstros

Bastou ao médico Albert Reiter bater os olhos na jovem Kerstin para cismar: “Tem coisa errada aqui”. A moça de apenas 19 anos tinha a pele totalmente enrugada, sem vigor algum. As gengivas sem dentes sangravam. Os olhos não suportavam luz – puseram-lhe óculos de sol para aliviar a dor nas vistas.
Kerstin foi internada em 19 de abril de 2008 com crise renal aguda, e induzida ao coma artificial. “Quero falar com a mãe dessa garota”, disse o doutor Reiter. Havia naquela paciente algum mistério além da falência dos rins.
Em 26 de abril, um sábado depois da internação, Elisabeth Fritzl, mãe de Kerstin, foi detida na porta do hospital quando ia visitar a filha pela primeira vez. O que ela contou contristou o mundo.
Elisabeth aos 18 anos, quando foi
presa no porão da casa pelo pai

A alma da Áustria caiu de bruços.
Durante 24 anos Elisabeth foi trancafiada no porão de sua casa pelo próprio pai, o engenheiro elétrico Josef Fritzl. Por duas décadas e meia, Elisabeth não viu mais a cor do dia. Nos primeiros nove meses foi mantida algemada. Depois ficou presa com correias que lhe limitavam os movimentos. À medida que as forças da garota iam sendo minadas, seu pai lhe concedia pequenas regalias... O velho Fritzl, com 73 anos quando o caso foi descoberto, descia rotineiramente ao porão para estuprar a adolescente, com 18 anos na data do encarceramento.
Plantou sete filhos na barriga da filha. Um deles, Michael gêmeo de Alexander, morreu com três dias, por problemas graves de respiração. O pai-avô queimou o corpinho do filho-neto em um fogão de lenha.
Foi a terrível lembrança do episódio medonho, que levou Elisabeth ao desespero de implorar ao pai para levar Kerstin ao médico, quando a filha caiu desmaiada no cubículo onde viviam. Não queria para a mocinha o mesmo triste fim do pequenino Michael.
Dos seis filhos sobreviventes que teve com a própria filha, três crianças o velho Fritz levou para morar com ele e a esposa “lá em cima”, na casa. As outras três, ficaram no calabouço com a mãe. Quando viram a luz do sol pela primeira vez, além de Kerstin com 19, Stefan estava com 18 anos, e Felix, 5.

Duas faces

Os brasileiros pouco sabemos de Áustria. País rico; quase nunca em manchetes de jornais.
Se tem austríacos em Taboão da Serra, não sei. Mas sei que tem um taboanense na Áustria – o jogador de vôlei Gabriel Soares, nascido e criado na região do Pirajuçara.
A Áustria tem a grande faceta de ocupar espaços superlativos no noticiário. Ou coisa muito boa, ou muito ruim. Pátria mãe de monstros sagrados da Cultura como os músicos Mozart e Gustav Mahler; gênios da Ciência como Sigmund Freud.
E monstros-monstros como Hitler, que dispensa apresentações. E o facínora Josef Fritzl, que apodrece na prisão perpétua por incesto, estupro, coerção, cárcere privado, escravidão e homicídio negligente do bebê Michael.
Polícia da Áustria tolhe refugiados na fronteira com a Hungria
Semana passada a Áustria ocupou o topo das páginas por querer conter o fluxo de refugiados fugidos da miséria de países como Síria, Afeganistão, Macedônia, etc. Foram taxados de “desumanos” pelos vizinhos alemães. Austríacos e alemães se embirram uns com os outros, igual brasileiros e argentinos.
A BBC de Londres me informa que a capital austríaca Viena foi eleita em 2015 pelo sexto ano consecutivo a mais alta qualidade de vida do planeta.
Enquanto pessoas iam aos melhores restaurantes e teatros do mundo em Viena, a uma hora e meia dali, na cidade de Amstetten (distante 111km) Elisabeth e seus filhos padeciam a mais monstruosa violência nas mãos de quem devia proteger-lhes.
Duas faces muito díspares de uma nação capaz de encantar e estarrecer.
Porta de concreto com 300kg
na entrada do porão

O monstro de Amstetten

“Me ajude aqui com esta porta, Elisabeth!”. Foi nesta cilada do pai que Elisabeth Fritzl caiu no dia 28 de agosto de 1984. Quando ela passou pelo acesso ao porão, o velho Fritzl dopou com éter a garota, na época com 18 anos. Elisabeth só cruzaria aquela porta de volta aos 42 anos de idade. Um quarto de século de pesadelos na masmorra imunda.
Para despistar os vizinhos, a polícia e a esposa, Josef Fritzl obrigou Elisabeth a escrever uma carta. “Escreva aí para mim e para sua mãe que você fugiu de casa, para seguir uma seita religiosa”, ordenou o monstro.
Das seis vezes que engravidou a própria filha, Fritzl a obrigou escrever cartas após três partos. Na carta a moça pedia que os pais assumissem as crianças porque ela não teria condições de criá-las. Quando o crime foi revelado, moravam “lá em cima” com Josef e sua esposa Rosemarie os filhos-netos Lisa, 15 anos, Monika, 14, e Alexander, 12.
Os irmãos “de cima” ficaram com sentimento de culpa, quando souberam que usufruíram de tudo na infância, enquanto seus irmãozinhos viviam um calvário no subterrâneo da casa.
Corredor entre a "cozinha" e o "quarto"
As crianças “de baixo” tiveram dificuldade de se adaptar à vida ao ar livre. O jovem Stefan tinha dificuldades para andar. Nos seus primeiros 18 anos de vida, o rapaz de 1,73m vivia confinado no porão com o teto de apenas 1,70m de altura. O garotinho Felix passou muito tempo acariciando o gramado do jardim; sensação diferente para as mãozinhas que jamais haviam tocado algo da natureza. Outras vezes as crianças criadas debaixo da terra ficavam abismadas só de ver uma nuvem passar no céu.

A Áustria ficou tanto mais chocada com o fato, por não ter sido a primeira vez que uma moça austríaca passou muitos anos sequestrada.
Dois anos antes da descoberta do cárcere privado de Elisabeth, a jovem Natascha Kampusch conseguiu fugir do seu raptor em agosto de 2006. Ela estava presa há oito anos por um desequilibrado desde março de 1998 numa periferia de Viena. Ele raptou a menina quando ela tinha apenas 10 anos e caminhava para a escola.

Difícil recomeço

Fritzl em férias
na Tailândia
O mais difícil para Elisabeth foi admitir que sua mãe não sabia de nada naqueles longos 24 anos. Que dona Rosemarie também fora vítima. Quando a polícia estourou o cárcere doméstico debaixo dos seus próprios pés, a senhora Rosemarie costumava descer ao local. E ali ficava por muitas horas. Chorando sem parar. Olhando as paredes que por uma eternidade mantiveram sua filha e netos sepultados vivos.
O velho Fritz tinha o hábito de desligar as luzes do tugúrio quando queria impor terror na filha e nas crianças.
Por duas vezes deixou Elisabeth trancada no porão, e foi tirar férias de quatro semanas na Tailândia.
Banheiro do cárcere onde Elisabeth ficou
24 anos sem ver a luz do sol
Elisabeth só aceitou contar tudo para a polícia, quando garantiram que ela nunca mais teria de ver o pai.

O médico Albert Reiter não se conformava em não ouvir da própria mãe o por quê do estado deplorável da garota Kerstin. Pediu à polícia da Áustria que enviasse comunicados por todo o país, pedindo para Elisabeth fazer contato. O senhor Fritz garantia que a filha jamais iria abandonar a seita que abraçara.
Foi aí que a casa do velho sacana começou a desabar.

A polícia iniciou uma investigação detalhada em todas as seitas instaladas no país. Nenhuma condizia à que o velho dizia ser a opção da filha.
Os investigadores montaram campana para vigiar os passos de Fritzl. Em algum momento depois do dia 19 de abril quando Kerstin foi internada, Fritzl permitiu que Elisabeth saísse do porão. Até montou o álibi que a filha tinha finalmente atendido ao apelo dos médicos para ver Kerstin.
A polícia desta feita estava mais atenta. E prendeu o monstro naquele sábado 26 de abril.    

Compensações

Como pedido de desculpas pelo sofrimento que passou nos 24 anos de confinamento, a Áustria pagou uma quantia milionária para Elisabeth, além de uma pensão mensal. A mulher e seus filhos vivem em uma aldeia em algum lugar não revelado, no interior da Áustria.
A privacidade de Elisabeth é religiosamente resguardada. Quando algum repórter se aproxima da casa toda colorida de dois andares onde ela vive com os filhos, a comunidade se mobiliza. E bota a imprensa pra correr. Elisabeth vive hoje um romance com um de seus guardas costas. O governo deu a ela o direito de andar sempre escoltada por agentes de segurança.
Para apagar os anos de privações, Elisabeth gosta muito de ir às compras. Tirou carteira de motorista, e tem compulsão por tomar banhos – cerca de 10 banhos por dia. Como se ainda trouxesse na pele o cheiro nojento do porão úmido e sempre exalando podridões.
Editoras propuseram milhões para Elisabeth contar seu drama em livro. Mas ela recusou todas as ofertas. Dedicou-se a reconstruir sua vida e de seus filhos, longe dos sensacionalismos.

Casa dos horrores

O governo confiscou todos os bens do velho Fritzl. Além do grande prédio onde morava, ele tinha vários imóveis alugados.
A residência da Rua Ybbsstrasse, número 40, foi posta à venda. Mas ninguém se interessou em comprar a casa dos horrores. De nada adiantou as autoridades mandarem entupir de concreto o porão onde Elisabeth e as crianças foram supliciadas. Ninguém quer saber daquela construção impregnada de tristezas.
Uma das prováveis utilizações do imóvel macabro, será como abrigo temporário para famílias de refugiados que cruzam a Áustria em busca de vida nova na Alemanha.
Josef hoje aos 80 anos

Segundo a polícia apurou, o velho Fritzl começou a construir a prisão de Elisabeth em 1981 – quando a menina tinha 15 anos.
Desde os 11 anos de Elisabeth o pai abusava dela sexualmente.
No período do julgamento, Fritzl mandava cartas para a filha perdoá-lo, pedindo compreensão e ... dinheiro!
Josef é hoje o encarcerado de número 4546765 no Presídio Stein, de segurança máxima. Só vai sair de trás das grades dentro do caixão.

Vizinhança surda?
Casa da família Fritzl

Até hoje paira dúvida se a vizinhança não sabia o que se passava por baixo do assoalho da casa da família Fritzl.
Os jornalistas Bojan Pancevski e Stefanie Marsch acham que os vizinhos se omitiram.

No livro The Crimes of Josef Fritzl: Uncovering the Truth (Os Crimes de Josef Fritzl: Descobrindo a Verdade) os autores defendem que era possível, sim, os vizinhos ouvirem os gritos, batidas nas paredes, gemidos, algazarra de crianças e outros sons vindos do porão onde Fritzl sufocava suas vítimas. Os repórteres requisitaram os serviços de um engenheiro de som para validar a tese. O porão não tinha isolamento acústico.

2 comentários:

Anônimo disse...

Seria bom se, só esse pais tivesse monstros. E aqui? Não temos monstros? Os noticiários televisivos a todo instante, exibe monstruosidade contra as mulheres de todas as idades. E, não é só isso, tem monstro de todo o jeito e espécie. E só escolher. Têm para todo o gosto.

Jam disse...

Se levarmos em conta o tamanho da Áustria (mais ou menos o estado de Santa Catarina) não foram poucos os monstros que viveram no país de onde vem 1/4 do meu sangue.