quinta-feira, 21 de agosto de 2014

“Dona Iolanda era meu Papai Noel”, lembra antigo morador

Calor humano da fundadora de condomínio ecológico se espraiava para além dos muros da comunidade que Iolanda Catani criou em Taboão da Serra há 50 anos.

Iolanda Catani - Acervo pessoal de Nilton Esteves
Foi meio por acaso que a família Ramos chegou ao Condomínio Rural Jardim Iolanda, em Taboão da Serra, na década de 60. O conjunto habitacional ecológico completou meio século de existência ontem, 20 de agosto.
No ano de 1968, Frederico dos Ramos veio visitar seu amigo proprietário do Boteco do Zé Grande, na margem da Rodovia Régis Bittencourt, na época chamada BR-2, hoje BR-116. Frederico é natural da aldeia Vilarelho da Raia, norte de Portugal, quase fronteira com Espanha. Zé Grande também era da mesma região. José Maria de Melo, o Zé Grande, veio para o Brasil em 1958. Chegou a ter terras no local onde dona Iolanda Catani já idealizava seu conjunto habitacional mergulhado na Mata Atlântica que então cobria boa parte de Taboão da Serra.
Paisagem vista da casa de Carolina dos Ramos
Foto: Nilton Esteves
Ao vender seu lote onde seria o futuro Jardim Iolanda, Zé Grande investiu em um comércio e outros imóveis no outro lado da rodovia. Seu boteco – na verdade um armazém, do tipo a que hoje chamamos mercadinho, e os antigos, venda - tinha de tudo. Todo tipo de comidas e até ferramentas. Enquanto servia os fregueses, Zé Grande sugeriu a Frederico: “Por que é que não compras um terreno lá, ó pá? Aquilo vai ficar muito bonito”. Frederico foi olhar. Dona Iolanda deu-lhe um tipo de alto-lá. “Aqui ainda é propriedade particular. Futuramente será um condomínio”, disse ela. Enfeitiçado pela beleza do lugar, Frederico e seus dois irmãos compraram o lote 42. A princípio construíram uma casa só para finais de semana. Tempos depois a propriedade foi desmembrada. Frederico construiu uma mansão num outro lote do mesmo condomínio. Em 1989, já casado com Maria Carolina dos Ramos, mudou-se do bairro Sumarezinho, na Capital, e fez do Jd Iolanda residência fixa.
Carolina dos Ramos recebe a reportagem - Foto: N. Esteves
Carolina dos Ramos me recebe em sua casa no topo mais alto do condomínio, constantemente banhada de sol. Como toda boa casa portuguesa com certeza o lar é encimado por dois torreões. A moradia imensa está de portas escancaradas quando chego lá acompanhado pelo síndico Nilton Esteves. Pensei estarem abertas porque a dona já nos esperava. Mas não. “Nunca fecho as portas daqui, pois é totalmente seguro”, conta Carolina. O portão elétrico desistiu de funcionar por desuso. Assim como o alarme nem alerta mais nada por quedar-se esquecido.
Carol no seu ateliê de pintura - Foto: Nilton Esteves
Em incerta feita um casal visitante de alguém no condomínio adentrou a propriedade de Carolina. “Eu estava varrendo aqui a porta de casa, e perguntei o que eles queriam. Disseram que estavam apenas passeando e vieram conhecer a igreja”, sorri Carolina. A entrada da mansão tem um hall abobadado, decorado por arte sacra, entre elas uma Nossa Senhora da Conceição. Outro quadro, uma Madonna, é obra da própria Carolina.
Carolina é artista plástica. Sua técnica mais frequente é massa colorida de acrílico sobre tela. A pintura pula para fora da moldura. 
“Adotei esta técnica pois eu tinha uma amiga cega, a Luzia, a quem chamávamos Nenê. Ela se queixava de a sua cegueira impedi-la ver meus quadros. Daí passei a fazer esta pintura tátil, para Nenê sentir o quadro com as mãos”, diz a artista.

Sinal dos tempos
Até 1994 o Condomínio Iolanda vivia em clima de verdadeira comunidade rural incrustada no subúrbio da suburbana Taboão da Serra. Com o Plano Real [reforma econômica implantada pelo ex-presidente FHC] muitos proprietários desdobraram seus imóveis. Ficou caro manter as despesas sem os juros que auferiam na ciranda financeira. O número de casas saltou de 92 para 120 moradias.
Os novos proprietários já não vinham com a filosofia de vida dos antigos habitantes da área, que prezavam acima de tudo a amizade e a harmonia entre vizinhos.
Carolina é uma das que estranharam os hábitos refratários dos novos moradores. “Aqui sempre vivemos em comunhão. E quem chegou depois não incorporava nossa concepção de morar”, conta. 
Quem conviveu com a afetividade da vizinhança original do Jd Iolanda, jamais esquece. “Tenho uma filha que mora na França, e ela veio de lá exclusivamente para casar-se aqui em casa, pois tem laços profundos com o que viveu aqui na infância e adolescência”, relata Carol (pelo apelido aqui usado você nota que já me sinto amigo antigo da moradora).
Com o passar dos tempos os novos vizinhos já mostram sinais de adequação ao espírito amistoso implantado por Iolanda Catani.
“Às vezes algumas pessoas estranham o meu jeito de tratar os outros. Alguns podem até pensar que estou precisando de tratamento por eu ser assim tão empolgada e expansiva”, brinca Carol. Aí é que se enganam. Eles (os arredios) é quem precisam tratamento. Carolina dos Ramos é psicanalista com consultório na Avenida Faria Lima, em Pinheiros.
José Melo - Foto: David da Silva
A concórdia entre os moradores do paraíso habitacional criado por Iolanda Catani não se fechava nos muros do empreendimento. 
Moradores do entorno do condomínio costumavam vez ou outra passear pela propriedade de natureza exuberante e até nadar na piscina da casa de dona Iolanda. “Todos os anos, até meus 14 anos de idade, dona Iolanda sempre mandava presentes de Natal para mim”, lembra José Antonio Coelho de Melo, 49 anos, nascido na localidade vizinha ao Jd Iolanda. Ele é filho do Zé Grande do início desta história.

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