Gaspar Z'África. Foto: Sílvio Novelli |
O rosto
do rapper Gaspar me lembra a feição
de Fabiano (pele avermelhada, olhos claros, barba e cabelos ruivos) personagem
de Graciliano Ramos no romance Vidas
Secas. Nascido na zona sul paulistana, na região limite entre o bairro Campo
Limpo e o município de Taboão da Serra, Gaspar gosta da comparação nordestina: “Sou
filho de potiguar, comedor de camarão”, diz referindo-se ao pai natural de São
Miguel, no Rio Grande do Norte.
Também
zela pela africanidade que não traz na aparência: “Sou um quilombola branco de
olhos claros”, diz. Em 1995 ele criou com colegas de infância o grupo Z’África
Brasil (o Z em apóstrofo é homenagem a Zumbi dos Palmares) um dos maiores
expoentes do rap nacional.
Perguntado
seu nome de batismo e idade atual, o rapper
rapa fora: “Não falo meu nome verdadeiro nem minha idade pra ninguém. Só digo
que sou Gaspar Z’África, e minha identidade artística é datada de 29 de
fevereiro de 1985”. Mas o Google “cagueta” para o repórter que ele nasceu
Wagner de Oliveira, e está com 36 anos.
Autógrafo do livro para bar & lanches taboão Foto: David da Silva - 14.jul.2014 |
Gaspar acaba
de lançar seu primeiro livro e o primeiro CD-solo de sua carreira. O apelido
remete ao tom de sua pele. “Por ser muito branquelo, os moleques da escola me
colocavam todo tipo de apelido relacionado à minha cor”, conta. A brancura
extrema lhe valeu virar "xará" do “fantasminha camarada” dos desenhos
animados.
Lançado
pela editora Nova Espiral, O Brasil é um Quilombo
é uma continuidade da trincheira que Gaspar e seus companheiros do Z’África
abriram 19 anos atrás. “Todo meu trabalho, inclusive este livro, traz uma visão
realista da periferia das grandes cidades brasileiras. Nossos quilombos urbanos”,
explica o autor. Não à toa, o primeiro álbum do grupo chamou-se Antigamente Quilombos, hoje Periferia,
gravado em 2002.
O grande
diferencial do Z’África Brasil em relação aos seus congêneres é a brasilidade. “A
gente não fica só na africanidade, nem estamos presos ao universo da periferia.
Somos guerreiros cósmicos”, autodefine-se. “Queremos explorar todos os gostos
do povo. Do rap ao repente, temos
liberdade de usar o canto falado. Somos como os cantadores de embolada, mas
usamos a caixa e o bumbo da nossa forma, misturando rap paulistano com samba, maracatu e forró”, afirma Gaspar, sem
deixar de dar o crédito ao rapper
Zulu Z’África, colega fundador do grupo: “Foi do Zulu a sacada de abrasileirar
o rap. Por intermédio dele nós
encontramos a nossa identidade musical”.
Essa
qualidade a mais valeu ao Z’África uma turnê pela Itália nas regiões de Verona
e Bolonha, com cerca de 30 shows pelo norte daquele país em 1999. Também já estiveram
por três vezes na França - em 2002, 2003 e 2007, onde foi gravado o terceiro CD
da banda.
Com Alessandro Buzo, da TV Globo Foto: Marilda Borges |
A malícia e
a sabedoria das ruas são o guia para o artista se virar em qualquer canto do
planeta: “Se você me jogar na África, vou usar o lado africano que o Brasil me
deu. Se você me jogar na Europa, vou usar meu lado europeu”, ginga Gaspar.
O respeito
do artista pelas raízes afro-nordestinas é patente já no título do disco de
estreia individual: Rapsicordélico. Na faixa de trabalho do CD, lançado em 24
de agosto no Auditório Ibirapuera, está sampleada uma fala do legendário
Patativa do Assaré, poeta popular e improvisador do sertão do Ceará, com um
refrão que Gaspar foi buscar com o mestre de jongo Totonho de Tamandaré, na
cidade de Guaratinguetá, interior de São Paulo.
Não foi
a primeira vez de Gaspar no palco do Ibirapuera. Esteve lá em novembro de 2013 apresentando-se
com a Orquestra Brasileira do Auditório na comemoração do centenário do poeta
Vinícius de Moraes, para quem escreveu:
“Neste rap tem samba que samba no sapatinho
Vai de Cartola, Candeia, a Zeca Pagodinho
Nelson Cavaquinho ao som do tamborim
Arlindo Cruz em Noite Ilustrada com Tom Jobim
De onde vem este samba quebrando as condutas?
É o samba do Pixinguinha e Os Oito Batutas
Seja quem for, pode chapar o DOPS e sua tropa
O Simonal com a Seleção vai ser o artilheiro da Copa
Dos Carnavais, dos sambas geniais
Adoniram Barbosa, Toquinho e Vinícius de Moraes
Encontro de gerações igual nunca se viu
Esta é uma homenagem ao branco mais preto do Brasil”
Com
infância e juventude passadas nas duas margens do córrego Pirajuçara, ora na
área dos jardins Mitsutani e Maria Sampaio na capital paulista, ora no Jardim Leme
em Taboão da Serra, Gaspar Z’África tinha mesmo de ser poeta. Cursou o ensino
fundamental em uma escola com nome de Fagundes Varella. E concluiu o ensino
médio no colégio a poucos metros de onde germinou, anos depois, o Sarau do
Binho.
Na
contra-capa do livro, o poeta Sérgio Vaz define Gaspar como “um poeta simples,
de palavras afiadas, doces e sinceras, ora estrala como um chicote, ora nos
adoça os olhos”. Para o poeta Vaz, seu colega Gaspar “não nos oferece apenas um
livro, mas tudo aquilo que não cabe no seu coração”.
Como
todo moleque nascido e criado na periferia, Gaspar (à semelhança de um samba do
João Nogueira) se agarrou na bola e pensou ser um dia um craque da pelota ao se
tornar rapaz. “Comecei na escolinha de futebol da Portuguesinha dos Oliveiras,
em Taboão da Serra. Primeiro jogava no ataque, depois descobri que era
zagueiro. Joguei por sete anos no Pequeninos do Jockey. Na sequencia joguei por
seis meses na Portuguesa de Desportos. Fiz testes em tudo que é clube que você
possa imaginar. Até meus 13, 14, 15 anos sonhava ser jogador profissional”.
Mas a
família teve de se mudar para o Ceará, e o futebol foi uma vontade que ficou
pra trás.
No
nordeste o garoto entrou de cabeça nos ritmos do lugar. “Quando voltei do Ceará
para São Paulo, eu disse pra mim mesmo: 'já era o futebol. Vou fazer essa parada
aí de música' ”, relata.
Lançamento do CD no Auditório Ibirapuera | Reprodução |
O código
genético musical de Gaspar fermentou no fole da sanfona de seu pai Zé Altimar. “Meu
pai foi sanfoneiro famoso aqui na região. Pode perguntar pros antigos que todo
mundo conhece ele”, historia o filho que hoje tem orgulho de ser igual seu pai.
“Eu
pegava os forrós do Trio Nordestino e acelerava (canta um trecho do baião Chinelo de Rosinha, do compositor
Bosquinho de Alcantil: ‘É o chinelo, é o
chinelo dela / A sola do chinelo dela que é danado pra chiar’). Minha
primeira formação musical foi essa e o samba de raiz, Bezerra da Silva, Fundo
de Quintal”.
O rap entrou pra valer em sua vida por
volta de 1992 a 1993, quando assistiu pela primeira vez um show do Racionais
MCs na antiga chácara onde hoje está o CEU Campo Limpo. “Mas eu já vinha
prestando atenção n’Os Metralhas. Foi deles o primeiro rap que decorei (canta: “Já
tive uma vida diferente da sua / já tive mordomia, mas hoje durmo nas ruas...”). Daí pensei: 'Porra, eu sei fazer essa
parada!' ”.
Foto: Conexão Cultural SP |
Gaspar
pede licença para atender a uns garotos que vieram convidá-lo para uma
apresentação na escola deles. Geralmente nas fotos Gaspar, a exemplo de outros rappers, aparece de semblante fechado,
marrento. Mas pessoalmente é muito cordial, bem atencioso mesmo com as pessoas.
Traço típico da solidariedade dos habitantes periféricos. Que a despeito de
tantas mazelas, não descuidam de uma certa afetividade regida pela necessidade
de se protegerem mutuamente.
Como
Gaspar diz na página 56 do seu livro:
“De
solidão nóis num sofre”.
"Acreditar num sonho é poder cantar e conhecer cada canto da terra, e ver os griots, os pajés, ouvir suas histórias contadas de gerações passadas de pai pra filho" (Gaspar) |
Acompanhe
Gaspar Z’África no facebook
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