quinta-feira, 16 de abril de 2015

A menina do violoncelo no ônibus 356

Roberta Regina - Foto: Divulgação
David da Silva
Transporte o teu pensamento para dentro de um ônibus às 5h35 da manhã, em plena terça-feira ou quinta-feira de trabalho. Todos os assentos já ocupados, e muitos passageiros em pé. Entra um rapaz do tipo “fortinho”, rechonchudo, carregando uma... tuba. O ônibus se desloca sonolento, e alguns metros à frente, entra uma garota carregando um... violoncelo!
Por vários anos esta foi a rotina da violoncelista Roberta Regina, no período de 2008 a 2011. “Eu ia de Taboão da Serra para estudar na Faculdade Cantareira, no bairro Belém, em São Paulo. Saia com o dia ainda escuro, pegava três conduções para ir e outras três, para voltar, e só retornava em casa por volta das onze e meia a meia-noite”, conta a artista.
Os passageiros do ônibus 356 não deviam achar graça nenhuma dividir espaço no corredor do coletivo apertado com dois instrumentos que estão entre os maiores de uma orquestra. “A gente dava preferência pro ônibus 356, porque na parte traseira dele havia um espaço maior entre os bancos, e nossos instrumentos iam ali naquele vão”, relembra divertida Roberta Regina. Ela e seu colega José Renato, da tuba, iniciaram carreira na Associação Músicos do Futuro, e hoje atuam em grandes orquestras. Roberta faz Mestrado em Música na Universidade Federal da Paraíba. Lá, desenvolve projeto de pesquisa em Práticas Interpretativas. E também toca na Orquestra Sinfônica daquele Estado.

A ligação com o violoncelo foi amor à primeira vista. “Em 2008 minha mãe me levou para a Associação Músicos do Futuro. Eu ia aprender violino. Mas na hora em que eu estava no balcão da escola esperando a ficha da matrícula, passou um menino carregando um violoncelo. Mudei de ideia na hora: ‘É este que eu quero’”. A garota tinha começado a aprender música com a mãe, tecladista. “Mas ela não tinha muita paciência pra ensinar, e achou melhor eu ir pra escola. Cheguei lá, encarei outro problema. O maestro Edison Ferreira disse que, com 17 anos, eu já estava ‘um pouco velha’ pra começar a aprender violoncelo” (risos).
Durante concerto em 31.mai.2014
O fundador da Associação Músicos do Futuro mostrou a Roberta Regina o árduo caminho que teria pela frente. “Ele me disse que eu precisaria ter grande determinação e muita disciplina para iniciar com aquela idade num instrumento que exige muito de quem o toca”.
Se a primeira atração de Roberta com o instrumento se deu pelo seu formato elegante e imponente, o som do violoncelo já brincava com a cabeça dela desde menina. “Meu pai tinha um desses automóveis com bastante espaço em uma tampa sobre o motor traseiro. E eu lembro que quando criança gostava de ir deitada naquele lugar do carro. Nessa época, passava muito no rádio um comercial da Volkswagen, onde tocava uma música linda, com um som que me tomava conta. Só anos depois descobri que aquele som que me atraía era o som de um violoncelo”, diz.

Ao aceitar as recomendações do maestro Edison em se aplicar no estudo do violoncelo, Roberta Regina ficou a cargo do professor Mauro Brucoli. “A Associação Músicos do Futuro não tinha violoncelo naquela época. O maestro Edison comprou o instrumento para mim. Antes de aprender pelo menos segurar o violoncelo como se deve, eu ficava namorando ele, fazendo pizzicatos nas cordas, passava o arco nas cordas tentando tirar algum som, mas nada feito” (risos).

Roberta no seu Recital de Formatura
Foto: David da Silva - 18.fev.2014
Ao ganhar o mínimo de intimidade com o violoncelo, chegou a hora de enviar a garota para a faculdade de Música. “O maestro Edison me mandou ir lá na Faculdade Cantareira procurar a professora Ji. Fui me encontrar na frente da Igreja Santa Therezinha com um menino que também era dos Músicos do Futuro e estudava na Cantareira. Era o trompetista Guilherme (chamado Gonzaguinha por morar na praça Luiz Gonzaga). Fiquei espantada com a distância. Não existia na época a linha 4 do Metrô, e trocamos de ônibus três vezes”.
No caminho de Taboão da Serra até a faculdade, Roberta foi idealizando como seria a sua futura professora. “Pensei que o nome dela seria Gisele, pois o maestro me mandou procurar a Ji, achei que fosse apelido (risos). Nem imaginava que fosse nome de coreana – Ji Yon Shim. Na minha cabeça eu ia criando uma imagem dela como uma senhora já de certa idade, gorda, com corpo redondo igual um violoncelo, e coque no cabelo (gargalhadas). Cheguei lá, nada a ver. A Ji super nova, olhos puxadinhos, toda magrinha, timidazinha, carinhosinha. Uma fofa!”
“Cheguei na sala da Ji, ela disse: ‘Toca alguma coisa aí pra mim’. Pensei ‘meu Deus do céu, o que vou tocar agora?’,  e toquei... Foi um horror. Toquei tudo errado. Eu achei que estava indo na faculdade aquele dia só pra conhecê-la, e não que eu já fosse ter a primeira aula. Terminei de tocar, ela fez uma cara... (risos)... e disse: ‘Pega o método, e vamos aprender tocar direito’. Daí ela abriu a bolsa, tirou uns livros e falou: ‘Vai lá na xerox tirar cópias pra você’”. E inclusive me deu dinheiro para eu pagar as cópias. Quando voltei, ela passou as lições que eu deveria levar na semana seguinte. Eu sei que minhas aulas na faculdade começaram no dia 8 de maio de 2008, porque marquei meu nome e a data na capa do livro. Era o livro Fayard, que a Ji me explicou que é a “bíblia do violoncelo”, e estudo nele até hoje, comando de técnica. Mas não imaginava que fosse fazer aulas regulares com ela.”
“Antes de eu vir embora pra casa, a Ji perguntou quanto tempo eu tinha para estudar. Eu queria responder uma coisa certa, que agradasse a ela, mas não sabia o que falar. A Ji então me disse que para aprender o violoncelo eu precisaria de muita disciplina e dedicação. ‘Quatro horas por dia de estudo. Combinado?’. Aceitei.”
Com maestro Edison e colegas da
Associação Músicos do Futuro
“Nessa época eu fazia um monte de coisas. Tinha aula de artesanato, pintava panos de prato, fazia umas caixinhas pra embalar presentes, vendia produtos por meio de catálogos. Mas abandonei tudo isto porque tinha de me dedicar ao instrumento. Fazer aulas com a professora tão boa que me arrumaram, eu tinha mais é que me dedicar ao máximo.”

Neste ponto da narrativa, começa o duro dia-a-dia de Roberta Regina vencer a distância entre sua casa até a faculdade. Quando terminava sua aula, ela ficava até as 20h esperando os colegas José Renato, da tuba, e Gonzaguinha (Guilherme), do trompete, para virem juntos a Taboão. “Eu esperava eles terminarem os afazeres na faculdade até as oito da noite, tanto pra não vir sozinha, como também para escapar do horário do trânsito pesado do final de tarde.”

Na carreira artística de Roberta Regina, estudar música andou lado a lado com o ato de ensinar. “Tudo o que eu aprendia num dia com a Ji na faculdade, no dia seguinte eu compartilhava com a aluna Verônica, aqui na Associação Músicos do Futuro.”
“Passei a viver música 24 horas por dia. Aqui na Associação eu aprendi que para viver da música, é preciso total disciplina e dedicação. Quando eu não estava fazendo aulas de instrumento com a Ji na faculdade, eu estudava teoria musical e canto coral aqui. Eu praticamente vivia dentro da Associação. Minha agenda de aulas, tanto para aprender como para ensinar, era muito carregada. Só tinha folga aos domingos”.

Foto: Vinícius Pazini
Em 2009 o professor Paulo Meinberg, fundador da Faculdade Cantareira disse ao maestro Edison Ferreira, diretor de música da instituição, que gostaria de montar uma orquestra na faculdade. Começaram a montar a orquestra de cordas, que hoje é a Camerata Cantareira. Na época, não havia na faculdade violoncelista com disponibilidade para ensaiar com a orquestra às terças e quintas-feiras. Por uma feliz coincidência, eram justamente os dias em que Roberta tinha aulas.
“O maestro Edison chegou pra mim, e disse: ‘Vai ter uma orquestra aqui na faculdade, e você já está escalada para tocar’. Como eu chegava na faculdade às 7h da manhã, e morava longe, eu já deveria ficar direto lá para os ensaios no período da tarde.”
No primeiro dia dos ensaios, quando deu 13h, pensei: ‘Meu Deus, acho que não vou ficar, não...’.  Eu estava em pânico. Mas quando pensei em me levantar e ir na sala do maestro Edison dizer que eu ia desistir, ele abriu a porta da minha sala de aula: ‘Vamos lá, Roberta!’.”
“Os ensaios para formação da orquestra eram na bendita sala 12. Chego lá, o maestro Edison me apresenta para o regente Sérgio Chnee. Os outros integrantes da orquestra já estavam lá, me esperando. Todos os olhares voltados para mim... Entrei na sala apavorada.”

Para se ter uma ideia dos outros músicos que estavam esperando Roberta para o ensaio, um deles é atual spalla do Theatro São Pedro, outro deles hoje é do Theatro Municipal, um outro está na Orquestra Experimental de Repertório, outro estuda na Hungria. “Enfim, fui tocar com essas ferinhas. E eu com menos de um ano de estudos. Com apenas oito meses de violoncelo! Comecei tocando muito insegura, perdidaça!!! Não sabia nem onde era o 1. Tentava fazer alguma coisa de ouvido, mas..., uma catástrofe. Eu quis me enfiar num buraco no chão. Quando chegou o intervalo, fui para o banheiro chorar. Foi horrível. Os primeiros ensaios foram terríveis pra mim. ‘Meu Deus. O que eu estou fazendo aqui?’. Na minha cabeça, eu achava que o regente Sérgio Chnee era extremamente grosseiro comigo; pensava que ele me odiava, que não queria que eu estivesse ali. Eu pensava tudo de mal. Eu sabia que eu não estava preparada para estar ali naqueles ensaios. Mas encarei como oportunidade. Teve momentos em que eu pensei em sair. ‘Não tá rolando’. Mas, se eu saísse dali, onde eu ia ter aquela oportunidade de novo? Para entrar numa orquestra, você é submetido a testes de seleção, concorre com milhares de pessoas, e eu não tinha esta condição de concorrer com ninguém”.

Roberta no ano de 2011
Foto: David da Silva
Apesar dos pesares, a jovem instrumentista não sentiu vontade real de parar. “Vai ter que dar certo, eu pensava. E foi assim o primeiro semestre do ano de 2009. Eu ia a todos os ensaios com vontade de chorar”.
Em julho de 2009, Roberta Regina já estava pronta para a primeira apresentação da Camerata Cantareira.

Antes de encarar o primeiro concerto com orquestra, Roberta já havia feito algumas apresentações no Shopping Taboão. “No final de 2008 apareceu um cachê para apresentação no Shopping Taboão com quarteto de cordas e quinteto de metais, para tocar em dias intercalados durante todo o mês de dezembro. Me deram as partituras... Hoje eu olhando pra essas partituras... (risos). Eu fui fazer uma limpeza nos meus papéis, encontrei uma pasta com um monte de partituras com músicas natalinas. Eu vi o arranjo de Jingobells, tudo riscado com anotações, sinaizinhos coloridos. Eram marcações pra eu não esquecer. Hoje vejo que eram muito fáceis. Mas... na época, eu me apavorava e fazia anotações até que meio simplórias (risos).”
“Varei a madrugada estudando, porque afinal eu nunca tinha tocado para as pessoas em espaço aberto. Naquela primeira aparição em público, toquei com o Douglas, professor de violino aqui da Associação, o Márcio que toca viola, e a Sueidi que durante um tempo tocou violino muito bem, mas não seguiu na música. Optou por outra carreira.”
“Eu suava e tremia muito. Em pânico. Nosso quarteto ficava com aquele mundaréu de gente em volta, no shopping. Guardo até hoje a camiseta vermelha com que toquei naqueles primeiros concertos aqui em Taboão da Serra.”

Fotos: Maíra Bedin
A rotina árdua de sair de casa bem cedinho para a faculdade, e só retornar já perto da meia-noite, comprometeu o rendimento de Roberta Regina. “Eu agüentei do jeito que deu até o final de 2011. No comecinho de 2012 a professora Ji me alertou que aquilo estava me fazendo mal. Todo lugar em que eu me encostava, queria dormir. Não dava mais. O cansaço começou a afetar minha concentração nos estudos. Foi quando resolvi morar perto da faculdade com outras seis colegas musicistas da Cantareira - Andrielli, Vanessa, Maria Luiza, Jennifer, Dani e Ana Luiza – duas cantoras, uma estudante de clarinete, outra de flauta, duas cursando violinos, e eu.

Sobre o seu dom de ensinar, Roberta Regina encara com naturalidade: “Essa questão da educação musical, de passar para outras pessoas o que eu estava aprendendo, foi desde o início da minha carreira. No dia seguinte à minha primeira aula com a Ji, eu já comecei a ensinar uma colega aqui da Associação. Foi acontecendo. E quando me dei conta, eu falei: ‘Gente!, eu realmente gosto de dar aulas’.  Gosto de ensinar tanto quanto gosto de tocar. Na minha concepção isto é fundamental. O maestro Edison sempre fala que é importante a gente criar discípulos.”

Por falar em discípulos, nada melhor que a mestra para falar de sua aluna. É Ji Yon Shim quem fala: "E muito fácil falar da Roberta, pois ela tem tantas qualidades... Ela também foi um presente para mim. Me mostrou do que é capaz. Cada ano de aprendizado era como um milagre. Ela fazia progressos que eram uma lição de vida pra mim. Com isto, chegou onde está. Superou tantas dificuldades. Gastava 3 horas pra vir para a faculdade, mais 3 horas para voltar para casa, enfrentando trens, ônibus. E eu nunca a vi reclamando de nada. Chegava com olheiras, é claro (risos). Mas sempre com alegria.”

Neste período de dois anos, iniciado em 2014, o Mestrado de Roberta Regina é sobre “Recitativo, Ária e Fuga para Violoncelo e Orquestra de Cordas”, do maestro e compositor José Siqueira – análise e discussão de questões prático-interpretativas, a partir de uma estética neoclássica.

2 comentários:

Maestro Edison Ferreira disse...

Caro amigo,

David da Silva.

Acredito e torço pela tua felicidade. Vejo em ti uma “Barsa de pernas”, que bem acredito, coloca em suas escritas palavras tão bem planejadas...

A Roberta Regina sempre foi e será uma grata surpresa em minha vida!

Esta bela figura que encarna em teu corpo, esbanja simpatia, humildade e comprometimento no que faz.

A gratidão esta nela, no seu olhar e abraçar, sentimos a tua fidelidade.

Por isso, não vejo nada mais que o pleno sucesso na vida desta lida flor.

Seja Feliz!

Rô.

Maestro Edison Ferreira


Unknown disse...

Ah, quantos momentos felizes, querido David...

Como sinto falta de tantas coisas que você citou nesse belo texto! Foi ótimo passar por tudo isso...
As presepadas com os meninos, situações na vida profissional que me fizeram amadurecer, pessoas que passaram pela minha vida e deixaram uma contribuição significativa para eu ter me tornado a pessoa que sou hoje! Em menos de 5 min, fui transportada para tanto lugares que até me emociono ao relembrar. Obrigada por me proporcionar esse momento tão nostálgico.

Não canso de agradecer ao meu muito estimado, Maestro Edison Ferreira, pai de coração, Associação Músicos do Futuro, à querida Ji Yon Shim, ao Maestro Sergio Chnee, a Faculdade Cantareira, meus amigos, minha família e tantos outros... A fé que tenho dentro do meu coração por um futuro bom é a certeza viva que nada acontece sem um propósito. Quanto chororô naquele banheiro ao lado da "bendita" sala 12 rs, quantas noites de sono estudando para fazer uma boa aula de violoncelo com a Ji e logo em seguida horas dentro do transporte público paulistano para retornar para casa, quantas festas junina, noites da pizza, feijoadas da Associação Músicos do Futuro correndo e trabalhando com os meninos para ajudar a levantar fundos para pagar as contas da nossa segunda casa... todas essas ocasiões permitiram que pessoas maravilhosas atravessassem o meu caminho. Tantas amizades que guardo com muito carinho dentro do coração, mesmo estando longe.

Mais uma vez, obrigada! Relembrar momentos assim me dão força para prosseguir com meus estudos e futuramente ter condições de retribuir em dobro tudo o que fizeram por mim.

Uma grande abraço, e se Deus quiser, até breve

Roberta Regina