Roberta Regina - Foto: Divulgação |
David da Silva
Transporte o teu pensamento para dentro de um ônibus às 5h35 da manhã, em plena terça-feira ou quinta-feira de trabalho. Todos os assentos já ocupados, e muitos passageiros em pé. Entra um rapaz do tipo “fortinho”, rechonchudo, carregando uma... tuba. O ônibus se desloca sonolento, e alguns metros à frente, entra uma garota carregando um... violoncelo!
Transporte o teu pensamento para dentro de um ônibus às 5h35 da manhã, em plena terça-feira ou quinta-feira de trabalho. Todos os assentos já ocupados, e muitos passageiros em pé. Entra um rapaz do tipo “fortinho”, rechonchudo, carregando uma... tuba. O ônibus se desloca sonolento, e alguns metros à frente, entra uma garota carregando um... violoncelo!
Por
vários anos esta foi a rotina da violoncelista Roberta Regina, no período de
2008 a 2011. “Eu ia de Taboão da Serra para estudar na Faculdade Cantareira, no
bairro Belém, em São Paulo. Saia com o dia ainda escuro, pegava três conduções
para ir e outras três, para voltar, e só retornava em casa por volta das onze e
meia a meia-noite”, conta a artista.
Os
passageiros do ônibus 356 não deviam achar graça nenhuma dividir espaço no
corredor do coletivo apertado com dois instrumentos que estão entre os maiores
de uma orquestra. “A gente dava preferência pro ônibus 356, porque na parte
traseira dele havia um espaço maior entre os bancos, e nossos instrumentos iam
ali naquele vão”, relembra divertida Roberta Regina. Ela e seu colega José
Renato, da tuba, iniciaram carreira na Associação Músicos do Futuro, e hoje
atuam em grandes orquestras. Roberta faz Mestrado em Música na Universidade
Federal da Paraíba. Lá, desenvolve projeto de pesquisa em Práticas
Interpretativas. E também toca na Orquestra Sinfônica daquele Estado.
A
ligação com o violoncelo foi amor à primeira vista. “Em 2008 minha mãe me levou
para a Associação Músicos do Futuro. Eu ia aprender violino. Mas na hora em que
eu estava no balcão da escola esperando a ficha da matrícula, passou um menino
carregando um violoncelo. Mudei de ideia na hora: ‘É este que eu quero’”. A
garota tinha começado a aprender música com a mãe, tecladista. “Mas ela não
tinha muita paciência pra ensinar, e achou melhor eu ir pra escola. Cheguei lá,
encarei outro problema. O maestro Edison Ferreira disse que, com 17 anos, eu já
estava ‘um pouco velha’ pra começar a aprender violoncelo” (risos).
Durante concerto em 31.mai.2014 |
O
fundador da Associação Músicos do Futuro mostrou a Roberta Regina o árduo
caminho que teria pela frente. “Ele me disse que eu precisaria ter grande
determinação e muita disciplina para iniciar com aquela idade num instrumento
que exige muito de quem o toca”.
Se a
primeira atração de Roberta com o instrumento se deu pelo seu formato elegante
e imponente, o som do violoncelo já brincava com a cabeça dela desde menina. “Meu
pai tinha um desses automóveis com bastante espaço em uma tampa sobre o motor
traseiro. E eu lembro que quando criança gostava de ir deitada naquele lugar do
carro. Nessa época, passava muito no rádio um comercial da Volkswagen, onde
tocava uma música linda, com um som que me tomava conta. Só anos depois
descobri que aquele som que me atraía era o som de um violoncelo”, diz.
Ao
aceitar as recomendações do maestro Edison em se aplicar no estudo do
violoncelo, Roberta Regina ficou a cargo do professor Mauro Brucoli. “A
Associação Músicos do Futuro não tinha violoncelo naquela época. O maestro
Edison comprou o instrumento para mim. Antes de aprender pelo menos segurar o violoncelo
como se deve, eu ficava namorando ele, fazendo pizzicatos nas cordas, passava o
arco nas cordas tentando tirar algum som, mas nada feito” (risos).
Roberta no seu Recital de Formatura Foto: David da Silva - 18.fev.2014 |
Ao
ganhar o mínimo de intimidade com o violoncelo, chegou a hora de enviar a
garota para a faculdade de Música. “O maestro Edison me mandou ir lá na
Faculdade Cantareira procurar a professora Ji. Fui me encontrar na frente da
Igreja Santa Therezinha com um menino que também era dos Músicos do Futuro e
estudava na Cantareira. Era o trompetista Guilherme (chamado Gonzaguinha por
morar na praça Luiz Gonzaga). Fiquei espantada com a distância. Não existia na
época a linha 4 do Metrô, e trocamos de ônibus três vezes”.
No
caminho de Taboão da Serra até a faculdade, Roberta foi idealizando como seria
a sua futura professora. “Pensei que o nome dela seria Gisele, pois o maestro
me mandou procurar a Ji, achei que fosse apelido (risos). Nem imaginava que
fosse nome de coreana – Ji Yon Shim. Na minha cabeça eu ia criando uma imagem
dela como uma senhora já de certa idade, gorda, com corpo redondo igual um
violoncelo, e coque no cabelo (gargalhadas). Cheguei lá, nada a ver. A Ji super
nova, olhos puxadinhos, toda magrinha, timidazinha, carinhosinha. Uma fofa!”
“Cheguei
na sala da Ji, ela disse: ‘Toca alguma coisa aí pra mim’. Pensei ‘meu Deus do
céu, o que vou tocar agora?’, e
toquei... Foi um horror. Toquei tudo errado. Eu achei que estava indo na
faculdade aquele dia só pra conhecê-la, e não que eu já fosse ter a primeira
aula. Terminei de tocar, ela fez uma cara... (risos)... e disse: ‘Pega o método,
e vamos aprender tocar direito’. Daí ela abriu a bolsa, tirou uns livros e
falou: ‘Vai lá na xerox tirar cópias pra você’”. E inclusive me deu dinheiro
para eu pagar as cópias. Quando voltei, ela passou as lições que eu deveria
levar na semana seguinte. Eu sei que minhas aulas na faculdade começaram no dia
8 de maio de 2008, porque marquei meu nome e a data na capa do livro. Era o
livro Fayard, que a Ji me explicou que é a “bíblia do violoncelo”, e estudo nele
até hoje, comando de técnica. Mas não imaginava que fosse fazer aulas regulares
com ela.”
“Antes
de eu vir embora pra casa, a Ji perguntou quanto tempo eu tinha para estudar.
Eu queria responder uma coisa certa, que agradasse a ela, mas não sabia o que falar.
A Ji então me disse que para aprender o violoncelo eu precisaria de muita
disciplina e dedicação. ‘Quatro horas por dia de estudo. Combinado?’. Aceitei.”
Com maestro Edison e colegas da Associação Músicos do Futuro |
“Nessa
época eu fazia um monte de coisas. Tinha aula de artesanato, pintava panos de
prato, fazia umas caixinhas pra embalar presentes, vendia produtos por meio de
catálogos. Mas abandonei tudo isto porque tinha de me dedicar ao instrumento.
Fazer aulas com a professora tão boa que me arrumaram, eu tinha mais é que me
dedicar ao máximo.”
Neste
ponto da narrativa, começa o duro dia-a-dia de Roberta Regina vencer a
distância entre sua casa até a faculdade. Quando terminava sua aula, ela ficava
até as 20h esperando os colegas José Renato, da tuba, e Gonzaguinha
(Guilherme), do trompete, para virem juntos a Taboão. “Eu esperava eles
terminarem os afazeres na faculdade até as oito da noite, tanto pra não vir
sozinha, como também para escapar do horário do trânsito pesado do final de
tarde.”
Na
carreira artística de Roberta Regina, estudar música andou lado a lado com o
ato de ensinar. “Tudo o que eu aprendia num dia com a Ji na faculdade, no dia
seguinte eu compartilhava com a aluna Verônica, aqui na Associação Músicos do
Futuro.”
“Passei
a viver música 24 horas por dia. Aqui na Associação eu aprendi que para viver
da música, é preciso total disciplina e dedicação. Quando eu não estava fazendo
aulas de instrumento com a Ji na faculdade, eu estudava teoria musical e canto
coral aqui. Eu praticamente vivia dentro da Associação. Minha agenda de aulas,
tanto para aprender como para ensinar, era muito carregada. Só tinha folga aos
domingos”.
Foto: Vinícius Pazini |
Em 2009
o professor Paulo Meinberg, fundador da Faculdade Cantareira disse ao maestro
Edison Ferreira, diretor de música da instituição, que gostaria de montar uma
orquestra na faculdade. Começaram a montar a orquestra de cordas, que hoje é a
Camerata Cantareira. Na época, não havia na faculdade violoncelista com
disponibilidade para ensaiar com a orquestra às terças e quintas-feiras. Por
uma feliz coincidência, eram justamente os dias em que Roberta tinha aulas.
“O
maestro Edison chegou pra mim, e disse: ‘Vai ter uma orquestra aqui na
faculdade, e você já está escalada para tocar’. Como eu chegava na faculdade às
7h da manhã, e morava longe, eu já deveria ficar direto lá para os ensaios no
período da tarde.”
No
primeiro dia dos ensaios, quando deu 13h, pensei: ‘Meu Deus, acho que não vou
ficar, não...’. Eu estava em pânico. Mas
quando pensei em me levantar e ir na sala do maestro Edison dizer que eu ia
desistir, ele abriu a porta da minha sala de aula: ‘Vamos lá, Roberta!’.”
“Os
ensaios para formação da orquestra eram na bendita sala 12. Chego lá, o maestro
Edison me apresenta para o regente Sérgio Chnee. Os outros integrantes da orquestra
já estavam lá, me esperando. Todos os olhares voltados para mim... Entrei na
sala apavorada.”
Para se
ter uma ideia dos outros músicos que estavam esperando Roberta para o ensaio,
um deles é atual spalla do Theatro São Pedro, outro deles hoje é do Theatro
Municipal, um outro está na Orquestra Experimental de Repertório, outro estuda na
Hungria. “Enfim, fui tocar com essas ferinhas. E eu com menos de um ano de
estudos. Com apenas oito meses de violoncelo! Comecei tocando muito insegura,
perdidaça!!! Não sabia nem onde era o 1. Tentava fazer alguma coisa de ouvido,
mas..., uma catástrofe. Eu quis me enfiar num buraco no chão. Quando chegou o
intervalo, fui para o banheiro chorar. Foi horrível. Os primeiros ensaios foram
terríveis pra mim. ‘Meu Deus. O que eu estou fazendo aqui?’. Na minha cabeça,
eu achava que o regente Sérgio Chnee era extremamente grosseiro comigo; pensava
que ele me odiava, que não queria que eu estivesse ali. Eu pensava tudo de mal.
Eu sabia que eu não estava preparada para estar ali naqueles ensaios. Mas
encarei como oportunidade. Teve momentos em que eu pensei em sair. ‘Não tá
rolando’. Mas, se eu saísse dali, onde eu ia ter aquela oportunidade de novo?
Para entrar numa orquestra, você é submetido a testes de seleção, concorre com
milhares de pessoas, e eu não tinha esta condição de concorrer com ninguém”.
Roberta no ano de 2011 Foto: David da Silva |
Apesar
dos pesares, a jovem instrumentista não sentiu vontade real de parar. “Vai ter
que dar certo, eu pensava. E foi assim o primeiro semestre do ano de 2009. Eu
ia a todos os ensaios com vontade de chorar”.
Em julho
de 2009, Roberta Regina já estava pronta para a primeira apresentação da
Camerata Cantareira.
Antes de
encarar o primeiro concerto com orquestra, Roberta já havia feito algumas
apresentações no Shopping Taboão. “No final de 2008 apareceu um cachê para
apresentação no Shopping Taboão com quarteto de cordas e quinteto de metais,
para tocar em dias intercalados durante todo o mês de dezembro. Me deram as
partituras... Hoje eu olhando pra essas partituras... (risos). Eu fui fazer uma
limpeza nos meus papéis, encontrei uma pasta com um monte de partituras com
músicas natalinas. Eu vi o arranjo de Jingobells,
tudo riscado com anotações, sinaizinhos coloridos. Eram marcações pra eu não
esquecer. Hoje vejo que eram muito fáceis. Mas... na época, eu me apavorava e
fazia anotações até que meio simplórias (risos).”
“Varei a
madrugada estudando, porque afinal eu nunca tinha tocado para as pessoas em
espaço aberto. Naquela primeira aparição em público, toquei com o Douglas,
professor de violino aqui da Associação, o Márcio que toca viola, e a Sueidi
que durante um tempo tocou violino muito bem, mas não seguiu na música. Optou
por outra carreira.”
“Eu
suava e tremia muito. Em pânico. Nosso quarteto ficava com aquele mundaréu de
gente em volta, no shopping. Guardo até hoje a camiseta vermelha com que toquei
naqueles primeiros concertos aqui em Taboão da Serra.”
Fotos: Maíra Bedin |
Sobre o
seu dom de ensinar, Roberta Regina encara com naturalidade: “Essa questão da
educação musical, de passar para outras pessoas o que eu estava aprendendo, foi
desde o início da minha carreira. No dia seguinte à minha primeira aula com a
Ji, eu já comecei a ensinar uma colega aqui da Associação. Foi acontecendo. E
quando me dei conta, eu falei: ‘Gente!, eu realmente gosto de dar aulas’. Gosto de ensinar tanto quanto gosto de tocar.
Na minha concepção isto é fundamental. O maestro Edison sempre fala que é
importante a gente criar discípulos.”
Por
falar em discípulos, nada melhor que a mestra para falar de sua aluna. É Ji Yon
Shim quem fala: "E muito fácil falar da Roberta, pois ela tem tantas
qualidades... Ela também foi um presente para mim. Me mostrou do que é capaz. Cada
ano de aprendizado era como um milagre. Ela fazia progressos que eram uma lição
de vida pra mim. Com isto, chegou onde está. Superou tantas dificuldades.
Gastava 3 horas pra vir para a faculdade, mais 3 horas para voltar para casa,
enfrentando trens, ônibus. E eu nunca a vi reclamando de nada. Chegava com
olheiras, é claro (risos). Mas sempre com alegria.”
Neste
período de dois anos, iniciado em 2014, o Mestrado de Roberta Regina é sobre “Recitativo,
Ária e Fuga para Violoncelo e Orquestra de Cordas”, do maestro e compositor
José Siqueira – análise e discussão de questões prático-interpretativas, a
partir de uma estética neoclássica.
2 comentários:
Caro amigo,
David da Silva.
Acredito e torço pela tua felicidade. Vejo em ti uma “Barsa de pernas”, que bem acredito, coloca em suas escritas palavras tão bem planejadas...
A Roberta Regina sempre foi e será uma grata surpresa em minha vida!
Esta bela figura que encarna em teu corpo, esbanja simpatia, humildade e comprometimento no que faz.
A gratidão esta nela, no seu olhar e abraçar, sentimos a tua fidelidade.
Por isso, não vejo nada mais que o pleno sucesso na vida desta lida flor.
Seja Feliz!
Rô.
Maestro Edison Ferreira
Ah, quantos momentos felizes, querido David...
Como sinto falta de tantas coisas que você citou nesse belo texto! Foi ótimo passar por tudo isso...
As presepadas com os meninos, situações na vida profissional que me fizeram amadurecer, pessoas que passaram pela minha vida e deixaram uma contribuição significativa para eu ter me tornado a pessoa que sou hoje! Em menos de 5 min, fui transportada para tanto lugares que até me emociono ao relembrar. Obrigada por me proporcionar esse momento tão nostálgico.
Não canso de agradecer ao meu muito estimado, Maestro Edison Ferreira, pai de coração, Associação Músicos do Futuro, à querida Ji Yon Shim, ao Maestro Sergio Chnee, a Faculdade Cantareira, meus amigos, minha família e tantos outros... A fé que tenho dentro do meu coração por um futuro bom é a certeza viva que nada acontece sem um propósito. Quanto chororô naquele banheiro ao lado da "bendita" sala 12 rs, quantas noites de sono estudando para fazer uma boa aula de violoncelo com a Ji e logo em seguida horas dentro do transporte público paulistano para retornar para casa, quantas festas junina, noites da pizza, feijoadas da Associação Músicos do Futuro correndo e trabalhando com os meninos para ajudar a levantar fundos para pagar as contas da nossa segunda casa... todas essas ocasiões permitiram que pessoas maravilhosas atravessassem o meu caminho. Tantas amizades que guardo com muito carinho dentro do coração, mesmo estando longe.
Mais uma vez, obrigada! Relembrar momentos assim me dão força para prosseguir com meus estudos e futuramente ter condições de retribuir em dobro tudo o que fizeram por mim.
Uma grande abraço, e se Deus quiser, até breve
Roberta Regina
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