terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Há 92 anos, uma história de sangue na beira de um riacho


Para Augusto Cerqueira, livreiro
David da Silva

Exatamente em um dia 26 de fevereiro, 92 anos atrás, era publicada a 1ª versão do conto Homem da Esquina Rosada, o mais famoso texto de ficção do Jorge Luis Borges (voltei a Buenos Aires só para comprar os dois volumes com suas Obras Completas, e fiz questão de adquiri-las das mãos de um vetusto livreiro na legendária Feira de San Telmo).
Borges não entrega facilmente o período histórico nem o local preciso onde o Homem da Esquina Rosada se passa. Situa o caso pelos lados do riacho Maldonado (“de águas torrentosas e sofridas”, como diz o conto), numa fase imprecisa em que a periferia de Buenos Aires era apenas um amontoado de ruas barrentas e homens sanguinários. 
Trecho do Arroyo (riacho) Maldonado, em 1895. Na beira deste córrego o escritor Borges fez acontecer sua mais famosa ficção
Com humor transbordante ele deu a receita: “Prefiro situar meus contos em tempos remotos e em lugares um pouco indeterminados. Porque se não imediatamente os leitores vão descobrir erros”. E completa de forma ainda mais divertida: “Se não descobrirem erros logo na primeira leitura, vão procurar, e procurando, vão achar”.
O duelo (não realizado) entre os dois valentões da história é contado quando as águas do córrego Maldonado ainda corriam soltas, e a gente pode se atrever a imaginar que foi por volta de 1895.
Outra dica de data é o personagem violinista cego que, com a chegada da polícia, começa a tocar “umas habaneras que já não se ouvem mais”; ou seja, o tango já imperava, mas ainda era mal visto pela sociedade; era música circunscrita aos ambientes do submundo.

No fundão
Na época em que Borges põe Francisco Real e Rosendo Juárez pra se enfrentar, já existia o bar El Preferido, na esquina rosada do bairro Palermo (foto abaixo), onde o escritor viveu sua infância.
Bar centenário, fundado em 1885, perto da casa onde cresceu Jorge Luis Borges, na rua que hoje leva o seu nome.
Foto: David da Silva
Mas ele preferiu empurrar o acontecido mais para o fundo, para as beiradas da então nascente Buenos Aires, lá pra cima da Vila Santa Rita. E em vez de um bar de família, ele coloca os personagens dentro de um puteiro, com muita cachaça, milonga, o mulherio e os palavrões.
Se o conto se passa num trecho inexato entre as atuais Avenida Gaona e Avenida Juan B. Justo, aqui a história ganha um componente de Brasil. A Gaona era o Camino de Gauna no conto, assim como a Juan B. Justo de agora era o ribeirão Maldonado, hoje totalmente canalizado.
As ruas daquela região eram indomáveis, sempre alagadas. No início dos anos 1800, o governo implementou grandes obras de aterramento para submeter as vias públicas à força do progresso. Em 1828 o Brasil estava em guerra contra a Argentina, na disputa pela Cisplatina (Uruguai). Os marinheiros brasileiros feitos prisioneiros no conflito foram colocados em trabalho forçado carregando terra para cobrir os charcos do Caminho de Gauna. É nestas imediações que ficava o “salão da Júlia”, onde acontece o Homem da Esquina Rosada.
Borges situa o conto Esquina Rosada em algum ponto deste quadrilátero da Vila Santa Rita, entre as avenidas Gaona e Juan B. Justo. O "salão da Júlia" ficava na beirada do arroyo Maldonado (hoje Av. Juan B. Justo), pois tudo o que se jogava pela janela dos fundos caia diretamente no córrego.


Bastidores do conto

A versão pioneira de Homem da Esquina Rosada surgiu em 1927 como Notícia Policial, com letras pequeníssimas na coluna central da revista Martin Fierro.
Borges não era um neófito; estava com 28 anos de idade, já tinha quatro livros publicados, dois de poemas e dois de ensaios. Mas nunca tinha escrito ficção.
No ano seguinte Leyenda Policial reaparece ampliado sob o título Hombres pelearan (homens brigaram) que deu origem a Hombre de las orillas (homem da periferia) publicado no jornal Crítica em um sábado 16 de setembro de 1933. Mas ali ele não usa seu nome. Assinou com o pseudônimo Francisco Bustos. Como se estivesse ensaiando o voo mais alto no universo da ficção.
Em 1935 o conto foi publicado na forma definitiva no livro História Universal da Infâmia.
A mitologia suburbana presente neste conto vem das coisas que Borges escutava quando criança. Muito precoce, o moleque escreveu seu primeiro conto aos 9 anos de idade, e com 10 traduziu do inglês para o espanhol O Príncipe Feliz, de Oscar Wilde. Por isto foi com certo desgosto que os pais viram seu menino se interessar mais pelas coisas mundanas da periferia, do que se entregar a temas literários mais “elevados”.

Pé no chão
O garotinho classe média alta sentia atração irrefreável pela realidade proletária que rodeava sua casa paterna. É o próprio Borges quem conta:
“Durante muitos anos acreditei ter sido criado em um subúrbio de Buenos Aires. Mas o certo é que me criei em um jardim, detrás de uma grade com lanças. O bairro Palermo do punhal e do violão ficava pelas esquinas”.
É na busca do que existia no lado de fora da grade com lanças que surge Hombre de la Esquina Rosada.
O responsável pelo ingresso de Borges no mundo da periferia foi seu vizinho Evaristo Carriego, poeta exaltador dos subúrbios morto de tuberculose com apenas 29 anos de idade e um único livro publicado.
Borges é o pioneiro a trazer para a literatura as classes populares do conurbano bonaerense.

Legado de um conto imortal
A grande sacada de Hombre de la Esquina Rosada é a força das imagens que ele imprime em nosso cérebro. Note que o título do conto não tem artigo, igual aos títulos da maioria dos quadros dos grandes pintores.
Em 1962 surgiu uma primeira adaptação do conto para o cinema. O filme dirigido por René Mugica traz Francisco Petrone no papel de Francisco Real, el Corralero; Suzana Campos como a sedutora La Lujanera, e Jacinto Herrera encarnando Rosendo Juárez, el Pegador.
Borges no set de filmagens do seu conto em 1962
Em 1965 Borges se uniu a Astor Piazzola para compor o disco El Tango, tendo em uma das faixas a musicalização da trágica noite no salão da Júlia.
Em 19 de setembro de 1985 veio a público a adaptação do Hombre para história em quadrinhos, com roteiro de José Luis Arévalo e desenhos de Carlos Alberto Magallanes.
Uma das transposições de Hombre para outra forma de arte de que Borges mais gostou, foi um balé. “Quando escrevi este conto eu o fiz com um propósito visual. E pensei que seria curioso aplicar um assunto de periferia a essa técnica que quer que cada coisa ocorra de um modo muito intenso, quer dizer, que todas as coisas ocorram como um balé”, explica o autor. A bailarina Ana Itelman coreografou o conto em 1960.

Frases imagéticas
A magia pictórica deste conto emana de frases poderosas, que vamos descobrindo a cada releitura, como se antes não estivessem ali.
Há um parágrafo no conto aonde o narrador vai para fora do salão, decepcionado com o homem a quem até agora considerava um mito. “Fiquei olhando aquelas coisas da vida inteira – céu até dizer chega, o riacho se empelotando solitário lá embaixo, um cavalo dormido, o beco de terra, os fornos das olarias dos tijolos...”
Ao refletir sobre sua condição de humilde morador da periferia, permite-se a autocomiseração: “Pensei que eu era apenas outro matinho daquelas beiras, criado entre flores de brejo e ossadas. (...) Me deu coragem de sentir que não éramos ninguém”.
Mas logo sobrevém a autoestima: “Senti depois que não. Que quanto mais aporrinhado o bairro, maior a obrigação de ser bravo”. Encanta-se com o espetáculo celeste: “Havia estrelas de se ficar tonto olhando-as, umas em cima das outras”. E louva em pensamento a música e o cheiro das madressilvas que o vento traz. “Lá fora estava querendo clarear. Uns postes sobre o morro pareciam soltos, porque os fios fininhos não se deixavam avistar tão cedo”.
A energia imagética do texto explode na caracterização de Rosendo: “Os homens e os cachorros o respeitavam e as mulheres também. Os moços copiávamos até seu jeito de cuspir”.
Outra descrição cirúrgica é a da personagem La Lujanera: “Vê-la não dava sono”.
Nada, porém, é mais contundente do que a definição da figura do provocador Francisco Real, el Corralero: “ ... chamaram à porta com autoridade, uma pancada e uma voz... um silêncio geral, uma peitada poderosa na porta e o homem estava dentro. O homem era parecido com a voz”.
Borges no traço de Iñaki Massini Pontis (2010)

Rosendo redimido
O narrador autodiegético volta pra casa no fim da madrugada com um conceito ruim do seu ex-herói. Ele é mantido sem nome desde o início, mesmo com Borges tendo experimentado nomes variados para os personagens centrais – no manuscrito original (vendido em 1996 por 164.000 dólares) Francisco Real era Francisco Madrano, e Rosendo Juárez era Rosendo Fraga.
Por falar em personagens centrais, é só na última frase do conto que Borges nos deixa saber qual o real papel do narrador anônimo na encrenca toda.
Trinta e cinco anos depois de publicar Hombre de la Esquina Rosada Borges retomou o assunto com História de Rosendo Juárez, integrante do volume O Informe de Brodie (1970).
A história de Rosendo também é ambientada numa quebrada do mundaréu. “Seriam umas 11 da noite; eu tinha entrado no armazém, que agora é um bar”, principia o narrador. Lá num canto do armazém, sentado a uma mesa diante de um copo vazio, um homem faz pssst chamando para conversar. É Rosendo agora que quer contar a sua versão dos fatos.
Córrego Maldonado em 1934, dois quarteirões acima do lugar onde Borges imaginou o conto Homem da Esquina Rosada. Foi nesta água que o personagem Rosendo jogou sua faca pela janela dos fundos do salão da Júlia

Um comentário:

Daniel Diez disse...

Puxa mano, é de tirar folego da grandeza desse escritor, achei muito belo esse conto, me faz pensar de haver tomado a minha decisão de não ficar fazendo teatro na cidade tentando ganhar essa palavra de "Famoso", eu não teria conhecido o que é uma periferia e sua cultura com sua miséria, alegria e tristeza; e não teria te conhecido que eres um hombre que busca desmembrar essa literatura latino americana, que nos faz mas ricos de conhecimentos, abraço.