Para Augusto Cerqueira, livreiro
David da Silva
Exatamente
em um dia 26 de fevereiro, 92 anos atrás, era publicada a 1ª versão do conto Homem da Esquina Rosada, o mais famoso
texto de ficção do Jorge Luis Borges (voltei a Buenos Aires só para comprar os
dois volumes com suas Obras Completas, e fiz questão de adquiri-las das mãos de
um vetusto livreiro na legendária Feira de San Telmo).
Borges
não entrega facilmente o período histórico nem o local preciso onde o Homem da Esquina Rosada se passa. Situa
o caso pelos lados do riacho Maldonado (“de
águas torrentosas e sofridas”, como diz o conto), numa fase imprecisa em
que a periferia de Buenos Aires era apenas um amontoado de ruas barrentas e
homens sanguinários.
Trecho do Arroyo (riacho) Maldonado, em 1895. Na beira deste córrego o escritor Borges fez acontecer sua mais famosa ficção |
Com humor transbordante ele deu a receita: “Prefiro situar
meus contos em tempos remotos e em lugares um pouco indeterminados. Porque se
não imediatamente os leitores vão descobrir erros”. E completa de forma ainda
mais divertida: “Se não descobrirem erros logo na primeira leitura, vão
procurar, e procurando, vão achar”.
O
duelo (não realizado) entre os dois valentões da história é contado quando as
águas do córrego Maldonado ainda corriam soltas, e a gente pode se atrever a
imaginar que foi por volta de 1895.
Outra
dica de data é o personagem violinista cego que, com a chegada da polícia, começa
a tocar “umas habaneras que já não se ouvem mais”; ou seja, o tango já imperava,
mas ainda era mal visto pela sociedade; era música circunscrita aos ambientes
do submundo.
No fundão
Na
época em que Borges põe Francisco Real e Rosendo Juárez pra se enfrentar, já
existia o bar El Preferido, na esquina rosada do bairro Palermo (foto abaixo),
onde o escritor viveu sua infância.
Bar centenário, fundado em 1885, perto da casa onde cresceu Jorge Luis Borges, na rua que hoje leva o seu nome. Foto: David da Silva |
Mas
ele preferiu empurrar o acontecido mais para o fundo, para as beiradas da então
nascente Buenos Aires, lá pra cima da Vila Santa Rita. E em vez de um bar de
família, ele coloca os personagens dentro de um puteiro, com muita cachaça,
milonga, o mulherio e os palavrões.
Se
o conto se passa num trecho inexato entre as atuais Avenida Gaona e Avenida
Juan B. Justo, aqui a história ganha um componente de Brasil. A Gaona era o
Camino de Gauna no conto, assim como a Juan B. Justo de agora era o ribeirão
Maldonado, hoje totalmente canalizado.
As
ruas daquela região eram indomáveis, sempre alagadas. No início dos anos 1800,
o governo implementou grandes obras de aterramento para submeter as vias
públicas à força do progresso. Em 1828 o Brasil estava em guerra contra a
Argentina, na disputa pela Cisplatina (Uruguai). Os marinheiros brasileiros
feitos prisioneiros no conflito foram colocados em trabalho forçado carregando
terra para cobrir os charcos do Caminho de Gauna. É nestas imediações que
ficava o “salão da Júlia”, onde acontece o Homem
da Esquina Rosada.
Bastidores do conto
A
versão pioneira de Homem da Esquina
Rosada surgiu em 1927 como Notícia
Policial, com letras pequeníssimas na coluna central da revista Martin
Fierro.
Borges
não era um neófito; estava com 28 anos de idade, já tinha quatro livros
publicados, dois de poemas e dois de ensaios. Mas nunca tinha escrito ficção.
No
ano seguinte Leyenda Policial
reaparece ampliado sob o título Hombres
pelearan (homens brigaram) que deu origem a Hombre de las orillas (homem da periferia) publicado no jornal
Crítica em um sábado 16 de setembro de 1933. Mas ali ele não usa seu nome.
Assinou com o pseudônimo Francisco Bustos. Como se estivesse ensaiando o voo
mais alto no universo da ficção.
Em
1935 o conto foi publicado na forma definitiva no livro História Universal da Infâmia.
A
mitologia suburbana presente neste conto vem das coisas que Borges escutava
quando criança. Muito precoce, o moleque escreveu seu primeiro conto aos 9 anos
de idade, e com 10 traduziu do inglês para o espanhol O Príncipe Feliz, de Oscar Wilde. Por isto foi com certo desgosto
que os pais viram seu menino se interessar mais pelas coisas mundanas da
periferia, do que se entregar a temas literários mais “elevados”.
Pé no chão
O
garotinho classe média alta sentia atração irrefreável pela realidade
proletária que rodeava sua casa paterna. É o próprio Borges quem conta:
“Durante
muitos anos acreditei ter sido criado em um subúrbio de Buenos Aires. Mas o
certo é que me criei em um jardim, detrás de uma grade com lanças. O bairro
Palermo do punhal e do violão ficava pelas esquinas”.
É
na busca do que existia no lado de fora da grade com lanças que surge Hombre de la Esquina Rosada.
O
responsável pelo ingresso de Borges no mundo da periferia foi seu vizinho
Evaristo Carriego, poeta exaltador dos subúrbios morto de tuberculose com
apenas 29 anos de idade e um único livro publicado.
Borges
é o pioneiro a trazer para a literatura as classes populares do conurbano
bonaerense.
Legado de um conto
imortal
A
grande sacada de Hombre de la Esquina
Rosada é a força das imagens que ele imprime em nosso cérebro. Note que o
título do conto não tem artigo, igual aos títulos da maioria dos quadros dos
grandes pintores.
Em
1962 surgiu uma primeira adaptação do conto para o cinema. O filme dirigido por
René Mugica traz Francisco Petrone no papel de Francisco Real, el Corralero;
Suzana Campos como a sedutora La Lujanera, e Jacinto Herrera encarnando Rosendo
Juárez, el Pegador.
Borges no set de filmagens do seu conto em 1962 |
Em
1965 Borges se uniu a Astor Piazzola para compor o disco El Tango, tendo em uma das faixas a musicalização da trágica noite
no salão da Júlia.
Em
19 de setembro de 1985 veio a público a adaptação do Hombre para história em quadrinhos, com roteiro de José Luis
Arévalo e desenhos de Carlos Alberto Magallanes.
Uma
das transposições de Hombre para
outra forma de arte de que Borges mais gostou, foi um balé. “Quando escrevi
este conto eu o fiz com um propósito visual. E pensei que seria curioso aplicar
um assunto de periferia a essa técnica que quer que cada coisa ocorra de um
modo muito intenso, quer dizer, que todas as coisas ocorram como um balé”,
explica o autor. A bailarina Ana Itelman coreografou o conto em 1960.
Frases imagéticas
A
magia pictórica deste conto emana de frases poderosas, que vamos descobrindo a
cada releitura, como se antes não estivessem ali.
Há
um parágrafo no conto aonde o narrador vai para fora do salão, decepcionado com
o homem a quem até agora considerava um mito. “Fiquei olhando aquelas coisas da
vida inteira – céu até dizer chega, o riacho se empelotando solitário lá
embaixo, um cavalo dormido, o beco de terra, os fornos das olarias dos
tijolos...”
Ao
refletir sobre sua condição de humilde morador da periferia, permite-se a
autocomiseração: “Pensei que eu era apenas outro matinho daquelas beiras,
criado entre flores de brejo e ossadas. (...) Me deu coragem de sentir que não
éramos ninguém”.
Mas
logo sobrevém a autoestima: “Senti depois que não. Que quanto mais aporrinhado
o bairro, maior a obrigação de ser bravo”. Encanta-se com o espetáculo celeste:
“Havia estrelas de se ficar tonto olhando-as, umas em cima das outras”. E louva
em pensamento a música e o cheiro das madressilvas que o vento traz. “Lá fora
estava querendo clarear. Uns postes sobre o morro pareciam soltos, porque os
fios fininhos não se deixavam avistar tão cedo”.
A
energia imagética do texto explode na caracterização de Rosendo: “Os homens e
os cachorros o respeitavam e as mulheres também. Os moços copiávamos até seu
jeito de cuspir”.
Outra
descrição cirúrgica é a da personagem La Lujanera: “Vê-la não dava sono”.
Nada,
porém, é mais contundente do que a definição da figura do provocador Francisco
Real, el Corralero: “ ... chamaram à porta com autoridade, uma pancada e uma
voz... um silêncio geral, uma peitada poderosa na porta e o homem estava
dentro. O homem era parecido com a voz”.
Rosendo redimido
O
narrador autodiegético volta pra casa no fim da madrugada com um conceito ruim
do seu ex-herói. Ele é mantido sem nome desde o início, mesmo com Borges tendo
experimentado nomes variados para os personagens centrais – no manuscrito
original (vendido em 1996 por 164.000 dólares) Francisco Real era Francisco
Madrano, e Rosendo Juárez era Rosendo Fraga.
Por
falar em personagens centrais, é só na última frase do conto que Borges nos
deixa saber qual o real papel do narrador anônimo na encrenca toda.
Trinta
e cinco anos depois de publicar Hombre de
la Esquina Rosada Borges retomou o assunto com História de Rosendo Juárez, integrante do volume O Informe de Brodie (1970).
A
história de Rosendo também é ambientada numa quebrada do mundaréu. “Seriam umas
11 da noite; eu tinha entrado no armazém, que agora é um bar”, principia o
narrador. Lá num canto do armazém, sentado a uma mesa diante de um copo vazio,
um homem faz pssst chamando para conversar. É Rosendo agora que quer contar a
sua versão dos fatos.
Um comentário:
Puxa mano, é de tirar folego da grandeza desse escritor, achei muito belo esse conto, me faz pensar de haver tomado a minha decisão de não ficar fazendo teatro na cidade tentando ganhar essa palavra de "Famoso", eu não teria conhecido o que é uma periferia e sua cultura com sua miséria, alegria e tristeza; e não teria te conhecido que eres um hombre que busca desmembrar essa literatura latino americana, que nos faz mas ricos de conhecimentos, abraço.
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