quarta-feira, 17 de outubro de 2007

Noel e o disco “fabricado” ao vivo

Para Orivaldo Vicentini, o Vado

No final de 1930, Noel Rosa compôs o samba “Cordiais Saudações”. O samba ficou inédito até ser gravado pelo próprio Noel em julho de 1931. Mas o Poeta da Vila não gostou da gravação com acompanhamento de orquestra. Resolveu fazer outra, acompanhado pelo Bando dos Tangarás, ao qual ele pertencia na época.
Em agosto daquele mesmo ano, o grupo foi convidado para fazer um show em prol da Santa Casa de São José dos Campos, no interior de São Paulo. O espetáculo ficou combinado para o dia 7 de setembro seguinte.
Chegando a São José dos Campos, os músicos foram recebidos pelo delegado da cidade, dr. Carlos Ribeiro, que também era dono da loja de discos local. Fazia poucos dias que o delegado havia recebido uma máquina de gravações.

Ao ver o equipamento, Noel Rosa logo teve a idéia de pregar uma peça no público. Na bagagem do conjunto, estava a matriz da gravação de “Cordiais Saudações” com acompanhamento dos amigos de viagem. “Vamos levar esta máquina de gravações para o palco”, expôs seu plano, Noel. “Como o verso final do samba cita a data de 7 de setembro, podemos dizer que esta matriz aqui, que gravamos lá no Rio, foi gravada na hora, em cima do palco!!!”
Na noite do show, com o teatro lotado, foi anunciada a novidade: pela primeira vez na história, um disco seria gravado à frente do público.
Os músicos que acompanhavam Noel Rosa no disco anteriormente gravado, eram os mesmos que estavam no palco naquela noite. Não havia qualquer risco de alguém notar qualquer diferença.
Noel Rosa cantou acompanhado do Bando dos Tangarás:

Estimo que este mal traçado samba,
Em estilo rude,
Na intimidade,
Vá te encontrar gozando saúde
Na mais completa felicidade
(Juntos dos teus, confio em Deus)

Em vão te procurei,
Notícias tuas não encontrei,
E hoje sinto saudades
Daqueles dez mil réis que te emprestei.
Beijinhos no cachorrinho,
Muitos abraços no passarinho,
Um chute na empregada
Porque já se acabou o meu carinho.

O público olhava extasiado, ora para os músicos e Noel, ora para o equipamento, ligado com suas luzes todas piscando, como se de fato estivesse gravando.
E prosseguia Noel:
A vida cá em casa está horrível.
Ando empenhado
Nas mãos de um judeu.
O meu coração vive angustiado,
Pois minha sogra ainda não morreu
(Tomou veneno e quem pagou fui eu)

Sem mais para acabar
Um grande abraço queira aceitar,
De alguém que está com fome
Atrás de algum convite pra jantar.
Espero que notes bem:
Estou agora sem um vintém
Podendo, manda-me algum.
Rio, 7 de setembro de 31.

Em suspense, o público mal aplaudiu o sambista. Todos queriam era ver se a música estava mesmo gravada no disco. Com o maior cinismo, Noel pôs a máquina para tocar.
E quando ouviu-se pelo alto-falante sair do disco aquela precisa data do show, a platéia irrompeu em delirantes aplausos.

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