sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Sempre no meu coração



Por Marco Pezão


Cotidianamente fico ao fundo do balcão, na mercearia à moda antiga perto de casa. Ela resiste ao tempo. Conserva aparência de sua inauguração, creio que já se vai uns quarenta e tantos anos. Sob o tampo de fórmica parecendo granito, a geladeira não comportava a demanda de gelar a cerveja como gosta a clientela. E, então, por reclamação unânime, um freezer vertical foi colocado ao lado dos velhos recipientes contendo milho, feijão, farinha de mandioca grossa e fina...
A novidade, além dessa, é o dono. Um rapaz jovem, brasileiro, casado com uma moça bacana, que conseguiu obter confiança do proprietário. Um japonês desconfiado, cuja exigência ao arrendar o estabelecimento é que nada fosse mudado. No que ele tem razão. Pois quando precisamos de miudezas, uma lata de óleo, um papel higiênico, um sabonete, um envelope de carta, mortadela, uma lâmpada, do necessário quase tudo um pouco exposto na prateleira, onde tantas vezes fui servido. Enfim, o japonês ganhou a vida assim, e nós torcemos para que a mercearia assim continue.
Embora conheça a todos, sou daqueles que prefere ficar a um canto bebericando, pensando na vida. Pensando, porém, de ouvidos atentos. Um dia me chamaram de coruja, como quem diz: não fala nada, mas presta uma atenção... Fiquei na minha, não respondi. Melhor não dar trela. Escutar é sabedoria. Falar demais, dá-se língua à queimadura.
O segundo copo de cerveja pedia reposição enquanto o noticiário da tv comentava a renúncia de Fidel Castro, após 49 anos no comando de Cuba. No bar todos falavam ao mesmo tempo, mas pude ouvir o Alberto Careca, santista roxo, declarar: “Já está na hora de morrer. Só assim pros cubanos conhecerem o que é liberdade”.
Sentado no saco de batatas, o Bereta, um sujeito atarracado, gordo, de cara enorme, com idade acima de 60 anos, respirou fundo antes de se levantar e responder: “Que sabe você de liberdade, santista?”
- Liberdade, Bereta, é poder fazer o que a gente quiser. Vê se aquele povo faz churrasco, anda a vontade que nem nós, usa tênis de marca? Nem telefone os caras têm, quanto mais celular? Aquilo é um atraso. Ainda bem que agora acaba essa bosta de comunismo...
Da maneira que o Alberto fez a colocação, senti que a coisa ia feder.
- Eu acho que isso merece uma resposta. Você sabe que eu sou corinthiano e mais, sou comunista! E você, pra falar do Fidel, na minha presença, tem que lavar a boca. Fidel é único. Só ele teve coragem de enfrentar a corja dos americanos, esses imperialistas que se acham donos do mundo. Eles, sim, subtraíram a liberdade daquele povo. Impuseram um boicote covarde que já dura 46 anos, e os cubanos sobreviveram com dignidade. Vê a taxa de mortalidade infantil deles. Vê o grau de educação deles. Pra você ficar sabendo, santista, a medicina de Cuba está entre as primeiras do mundo. E tem mais, esse seu presidentezinho, esse tal de Da Silva, tem que ir comprar vacina fabricada lá!
Nesse teor, o Alberto Careca, de peitinho estufado, quis tomar a palavra, mas, Bareta, antecipou:
- Você é pelezista. Virou torcedor do Santos por causa do Pelé. E, pela sua idade, viu o negão em fim de carreira. Eu vi o Santos de Pagão, Del Vechio, Formiga. Nem Gilmar dos Santos Neves e Zito você viu jogar. Quer o quê? Não sabe nem fumar, quer falar do Fidel? Não vou admitir que você rale quem vive sempre no meu coração...
Acendeu o cigarro e soprou a fumaça pro ar. Agora, todas as atenções estavam voltadas para os dois. Alberto Careca ouviu:
- Há algo mais belo do que um homem, comandante, revolucionário, depois de tudo que viveu e fez, aos 81 anos, se declarar um soldado das palavras? Quantos livros você já leu, Careca? No máximo ouve essa imprensa corroída, mentirosa, a serviço do capitalismo. Que justifica invasões e massacres no Afeganistão, no Iraque, em qualquer parte do mundo, para impor uma democracia bandida. Mas em Cuba é diferente, Cuba é livre. É pátria ou morte!
Eufórico, Bareta, deu um tapa no balcão e conclamou:
- “A grandeza de Cuba se confunde com a dimensão de Fidel, que traçou uma linha a ser seguida. Os princípios não se negociam nem perante o mais gigantesco e agressivo adversário".
Com o braço em riste apontando a tv, Bareta limpou o pigarro e, com lágrimas nos olhos, relembrou a fala do seu grande líder:
- “É isso que eles não podem nos perdoar, que estejamos aqui, sob seus olhares, e que tenhamos feito uma revolução socialista debaixo dos narizes dos Estados Unidos. Esta é a revolução socialista e democrática dos humildes, com os humildes e para os humildes!"
Todos, sem exceção, levantaram seus copos e saudaram:
- Corinthians, Corinthians, Corinthians...

2 comentários:

Giuliano Gimenez disse...

Opa, pelo simples fato de você homenagear o joão antonio e o plinio marcos, já ganhou a minha amizade.

grande abraço.

David da Silva disse...

Ei, Giuliano!
Aqui no nosso blog/boteco também temos veneração pelo Dalton, o vampiro aí da tua Curitiba.