O balconista encheu a caneca dágua pra jogar na vira-lata que fuçava o cestinho de lixo. O freguês se abespinhou: “Não tá vendo que ela tá amamentando?”, apontou para as tetas protuberantes do animal. Comprou uma salsicha empanada, a cadela comeu e lançou pro garçon um olhar do tipo: “Tá vendo aí, ô filhodaputa?”, e saiu abanando o rabo lá para as bandas do Jd Rosana.
Enquanto esperava minha porção de frango-com-quiabo, a conversa de outro homem com o benfeitor do bicho chegou até mim: “E neste livro, tem uma cachorra inteligente, entende tudo o que os donos falam, acho que ela até pensava feito gente, e o dono mais a mulher, com dois meninos, o papagaio e ela, a cachorra, ia embora debaixo do solzão danado.”
“Vidas Secas!”, exultei no meu canto do balcão. “Os economistas, os militares, os ministros da Justiça e os bandidos diplomados pelo TRE não conseguiram acabar com o País. O Brasil vai existir enquanto, em pé frente ao balcão, com seu copo de pinga com limão, um cidadão contar pro parceiro de boteco a história de Vidas Secas.”
“Vidas Secas”, ecoou o homem, como se ouvisse meu pensamento. “Do Graciliano Ramos”, continuou, “só não lembro o nome da cachorra.”
“É Baleia”, foi minha deixa; e a conversa sobre a fantástica personagem do escritor alagoano rendeu mais uns tantos goles. O protetor da cadela sem dono disse que até o fim da vida vai ajudar cães de rua, depois da ajuda que recebeu de um deles quando foi levar a filha no pronto-socorro. A mini-conferência-etílico-canina prometia outras rodadas, e resolvemos apresentar-nos. O homem que evocou Vidas Secas, a quem, por motivo óbvio, vou chamar de Fabiano, recusou o formalismo: “Não tem nada que falar o nome, não!”. Já Antonio Carlos (“aqui no boteco me chamam de Pingo”), morador do Jd Record, em Taboão da Serra, e eu, cumprimos o ritual. E seguiu-se esta magnifíca história de um cachorro que perambula pelas ruas da minha Taboão da Serra.
“Minha filha tava muito mal do estômago, e saí com ela pro Antena”, começou Antonio, referindo-se ao Pronto-Socorro Municipal de Taboão da Serra que, construído ao lado da antiga antena da Rádio Capital, será sempre chamado pelo povo pelo nome da ilustre vizinha.
Enquanto a garota era medicada, o pai foi ao bar, e na volta procurou onde sentar-se. “Eu vi aquele cachorrão deitado embaixo do banco, e pensei: ‘alí não dá pé!’, mas a canseira foi maior, e me aprumei num pedacinho da beirada”.
Perturbado pela incômoda companhia, o cachorro mandou um olhar malevolente para Antonio. “Meu!, achei que ele ia avançar, era vira-lata mas era grande, parecendo um capa-preta, cor de pastor-alemão, preto em cima e caramelo em baixo”, segue Pingo. Como toda pessoa que não consegue boa acolhida no serviço público, ele apelou para o suborno. “Comprei uma coxinha e joguei pra ele”. O cão deu uma fungada estremunhada no salgado; todavia, a lei da rua diz: “De graça, até...” As fortes mandíbulas herdadas da parte nobre da sua mistura de cão sem raça engoliram o petisco numa só bocada. Após um bocejo de espremer lágrimas, o cão espichou-se no seu canto catinguento. Bonito na sua miséria. Folgado, atento, cachorro. Mas, voltaram a infernizar-lhe as malditas passageiras. O cão toca violentamente o cavaquinho, escarafunchando o couro para livrar-se das parasitas.
Mais íntimo, o homem sacaneia: “Tá brava a coisa aí, hein? Vou te chamar de Coceira!”
Quando a criança foi liberada, Antonio viu que o cão o seguiu. Frente ao portão do serviço de resgate, o cachorrão vacilou. O homem achou que ele ia desistir. O que Antonio, ou Pingo, não sabia, é que perambulando por ali Coceira quase foi esmagado por uma ambulância espavorida. Mas agora as ambulâncias estavam dormindo, e ele seguiu sua marcha.
“A garoa caia forte, mas o cachorro não deixou de me seguir até chegar em casa”, lembra Pingo, que mora na rua Virgílio Bento de Queirós, a mais de um quilômetro do pronto-socorro.. Após aninhar a filha na quentura da cama, o homem foi fuçar o quintal, atrás de uma caixa de papelão. “O que é que há?”, disse a mulher. “O cachorro me acompanhou desde o pronto-socorro, tá o maior escurão na rua, chovendo, ele veio, parece até que sabe o que é uma escolta”.
A mulher achou que seu homem estava doido. Nem sombra do Coceira no quintal, nem na rua. “Se for verdade mesmo que você vai colocar isto na internet, pode ser que uma pessoa que conheça o cachorro me diga onde ele está”, espera Pingo.
Mas com tanta rua pra vadiar, tanta sarjeta pra se espojar, não sei não... “Mesmo que ele não queira ir morar lá em casa, eu quero ver como ele está, dar um rango pra ele”, se prontifica Antonio Pingo, vendedor de uma casa comercial na Estrada do Campo Limpo.
Enquanto esperava minha porção de frango-com-quiabo, a conversa de outro homem com o benfeitor do bicho chegou até mim: “E neste livro, tem uma cachorra inteligente, entende tudo o que os donos falam, acho que ela até pensava feito gente, e o dono mais a mulher, com dois meninos, o papagaio e ela, a cachorra, ia embora debaixo do solzão danado.”
“Vidas Secas!”, exultei no meu canto do balcão. “Os economistas, os militares, os ministros da Justiça e os bandidos diplomados pelo TRE não conseguiram acabar com o País. O Brasil vai existir enquanto, em pé frente ao balcão, com seu copo de pinga com limão, um cidadão contar pro parceiro de boteco a história de Vidas Secas.”
“Vidas Secas”, ecoou o homem, como se ouvisse meu pensamento. “Do Graciliano Ramos”, continuou, “só não lembro o nome da cachorra.”
“É Baleia”, foi minha deixa; e a conversa sobre a fantástica personagem do escritor alagoano rendeu mais uns tantos goles. O protetor da cadela sem dono disse que até o fim da vida vai ajudar cães de rua, depois da ajuda que recebeu de um deles quando foi levar a filha no pronto-socorro. A mini-conferência-etílico-canina prometia outras rodadas, e resolvemos apresentar-nos. O homem que evocou Vidas Secas, a quem, por motivo óbvio, vou chamar de Fabiano, recusou o formalismo: “Não tem nada que falar o nome, não!”. Já Antonio Carlos (“aqui no boteco me chamam de Pingo”), morador do Jd Record, em Taboão da Serra, e eu, cumprimos o ritual. E seguiu-se esta magnifíca história de um cachorro que perambula pelas ruas da minha Taboão da Serra.
“Minha filha tava muito mal do estômago, e saí com ela pro Antena”, começou Antonio, referindo-se ao Pronto-Socorro Municipal de Taboão da Serra que, construído ao lado da antiga antena da Rádio Capital, será sempre chamado pelo povo pelo nome da ilustre vizinha.
Enquanto a garota era medicada, o pai foi ao bar, e na volta procurou onde sentar-se. “Eu vi aquele cachorrão deitado embaixo do banco, e pensei: ‘alí não dá pé!’, mas a canseira foi maior, e me aprumei num pedacinho da beirada”.
Perturbado pela incômoda companhia, o cachorro mandou um olhar malevolente para Antonio. “Meu!, achei que ele ia avançar, era vira-lata mas era grande, parecendo um capa-preta, cor de pastor-alemão, preto em cima e caramelo em baixo”, segue Pingo. Como toda pessoa que não consegue boa acolhida no serviço público, ele apelou para o suborno. “Comprei uma coxinha e joguei pra ele”. O cão deu uma fungada estremunhada no salgado; todavia, a lei da rua diz: “De graça, até...” As fortes mandíbulas herdadas da parte nobre da sua mistura de cão sem raça engoliram o petisco numa só bocada. Após um bocejo de espremer lágrimas, o cão espichou-se no seu canto catinguento. Bonito na sua miséria. Folgado, atento, cachorro. Mas, voltaram a infernizar-lhe as malditas passageiras. O cão toca violentamente o cavaquinho, escarafunchando o couro para livrar-se das parasitas.
Mais íntimo, o homem sacaneia: “Tá brava a coisa aí, hein? Vou te chamar de Coceira!”
Quando a criança foi liberada, Antonio viu que o cão o seguiu. Frente ao portão do serviço de resgate, o cachorrão vacilou. O homem achou que ele ia desistir. O que Antonio, ou Pingo, não sabia, é que perambulando por ali Coceira quase foi esmagado por uma ambulância espavorida. Mas agora as ambulâncias estavam dormindo, e ele seguiu sua marcha.
“A garoa caia forte, mas o cachorro não deixou de me seguir até chegar em casa”, lembra Pingo, que mora na rua Virgílio Bento de Queirós, a mais de um quilômetro do pronto-socorro.. Após aninhar a filha na quentura da cama, o homem foi fuçar o quintal, atrás de uma caixa de papelão. “O que é que há?”, disse a mulher. “O cachorro me acompanhou desde o pronto-socorro, tá o maior escurão na rua, chovendo, ele veio, parece até que sabe o que é uma escolta”.
A mulher achou que seu homem estava doido. Nem sombra do Coceira no quintal, nem na rua. “Se for verdade mesmo que você vai colocar isto na internet, pode ser que uma pessoa que conheça o cachorro me diga onde ele está”, espera Pingo.
Mas com tanta rua pra vadiar, tanta sarjeta pra se espojar, não sei não... “Mesmo que ele não queira ir morar lá em casa, eu quero ver como ele está, dar um rango pra ele”, se prontifica Antonio Pingo, vendedor de uma casa comercial na Estrada do Campo Limpo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário