quarta-feira, 23 de abril de 2008

O milagre do copo

Por Marco Pezão
- Quanto mais penso, em dúvida maior fico. Será que sou um, dois em um, ou quantos nessa cabeça do pensar tomam parte? Vai vendo. Eu vendo conversa pra boi não dormir. Muuugi, boi. Muuugi, boi... Que boi se interessa, que boi quer ouvir? Que verdade se pode contar, que fantasia pode fluir?
- Vai narrador de boa memória, desfia tua história.
- Bem, bem..., em campo, no CC Vila Iasi, tarde de domingo ensolarada, e os times do São Francisco e Bangu disputam uma vaga às quartas de finais do concorrido campeonato de Taboão da Serra.
Lamentavelmente desfalcadas, as equipes foram pro jogo sabendo que, no caso de empate, morreriam ambas abraçadas. Os torcedores atraídos, na maioria, chegam de suas sedes no Jd Leme e Pirajuçara. Divididos em distintos blocos, alçam suas bandeiras, espalhando olhares ansiosos por todo alambrado.
Roquinho, franciscano fiel, de coração corintiano, abandonara o prazer de ir aos grandes estádios. Porém, manteve intacto esse misto de alegria e sofrimento pelo futebol varzeano. Compulsivo, não consegue ficar parado a um canto. Também, não é de xingar ninguém. Mães, de árbitros e bandeirinhas, passam ilesas por sua assistência.
O confronto, duro de assistir. A bola, mordida e mascada, não chega aos atacantes. Roquinho coça a cabeça e se dirige ao boteco do Ebrinho:
- Ai, ai, ai, ai, ai! Assim não vai, mas eu vou. Ebrinho, põe aquela que matou o guarda, benta água pra aliviar a tensão. Quebra gelo da minha cerveja. Vê lá!
- Pura ou com limão?
- Cristalina.
Um copo em cada mão e olho no jogo, Roquinho anuncia:
- O primeiro gole é do santo. Vai São Francisco!!! - Dá uma bicada, em seguida outra, e, atento à jogada, vê o meia Mauricio invadir a área pela direita pra arrematar no barbante – Gooool!!! – Roquinho, braços erguidos, agradece - Santa benzida, meu Deus. É gol! O meu santo não falha!
A vitória parcial de 1 a 0 motiva a peleja. O Bangu se lança ao ataque. O São Francisco recua. As divididas trincam mais fortes.
– Esqueceu o cartão em casa? Juiz filho de uma quenga.
Malandramente, as ameaças e empurrões são tolerados:
– Vamos jogar, senhor! - O árbitro controla o clima e encerra a etapa inicial.
- Muuugi, boi. Muuugi, boi. Vê quantos procriadores de gente? Muuugi, boi. Não há pasto que chegue. Segue sua prosa que a bola volta a rolar.
Roquinho está inquieto. O resultado mínimo o deixa aflito.
Toma lugar ao balcão e pede:
- Ebrinho, põe mais uma no capricho. - Segue o ritual, benze o santo. E, ao inchar as bochechas da boca antes de engolir, teve as pupilas saltadas diante do chute certeiro, no canto direito, desferido pelo baixinho Lula. Goool de empate, 1 a 1, vibra a torcida adversária.
- Não! Não! Não! Assim, não! Dá mais uma, Ebrinho, que o santo não entendeu! É pro lado de lá, meu santinho!
E tome Bangu! Forçando no ataque, buscando a virada. E tome a “marvada” goela abaixo, quando a bola em lançamento encontra o avante Ferreira, livre de marcação, frente ao goleiro são franciscano, em prenúncio fatal de gol:
- Meu santo, assim não. Ficou bêbado, é? Entorta o pé do homem, entorta o pé do homem!
Com efeito, o chute saiu com defeito e pra linha de fundo a chance de gol é desperdiçada
- Ô, meu Chico, fica são. Que susto. Não faz assim comigo não! Ô santo milagroso, tá no fim do jogo e o empate nada adianta. Marca um gol pra mim que ao invés de um, eu te dou três golinhos. Benta negociata! Rogério se antecipa à zaga desatenta e na saída do goleiro bate por cobertura. Arrepiante, hilariante, a bola em declive faz chuá na malha da gaiola! Roquinho dobra os joelhos e no peito inflado desfere socos. O grito ensandecido de gol fez saltar a artéria do pescoço e apontando o dedo indicador para o céu profere vibrantes palavras:
- Nosso cavalo não é manco, São Francisco porreta!
Rojões e abraços, o azul celeste celebra a classificação na vitória em 2 a 1. Sapiência, dívida com santo se paga! E essa foi paga com juros. A talagada escorre pela parede e causa indignação alheia:
- Que desperdício é esse? Tá cheio? Dá pra mim que eu tomo!
Mirando o nada, Roquinho engole o restante. Sozinho, caminha na algazarra formada ao longo do portão de saída. O seu rosto estampa um sorriso de quem sabe dos mistérios. Com cerveja, leva a certeza que o milagre do copo acabara de ser concebido.
- Muuugi, boi! Muuugi, boi...

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