Nem perguntei (não me interessava) o por quê dos amigos estarem tão elevados no álcool. De minha parte, o porre monumental só não se consumou pela urgência do gerente em dar por encerrados os trabalhos. Bebi, como sempre em quantidade industrial, em louvor a Noel Rosa. Fez-se ontem 71 anos de sua perda irreparável. Eu já servi aqui aqui no nosso Bar & Lanches Taboão uma breve e dolorida crônica sobre os últimos dias de Noel Rosa.
Pois bem. A partir de hoje, toda a obra do Poeta da Vila passa a ser Domínio Público. A lei determina que decorridos 70 anos da morte do artista, no ano seguinte seu trabalho fica livre dos direitos autorais.
Estou certo que Noel não está nem aí com esta questão jurídica. Viveu como poucos, e sempre costeando perigosamente o alambrado da morte.
Noel era um cara muito atormentado, totalmente descrente. Mergulhou fundo nos copos dos bares, e nos corpos das mulheres da noite.
Era tão desapegado de algumas besteiras a que os otários chamam Vida, que em 1933, com apenas 22 anos, fez seu samba-testamento, que vamos ouvir um trecho com a impagável Araci de Almeida.
Mas antes, deixem-me contar um detalhe, protagonizado pelo compositor Donga. Acho que Donga era um tremendo mau-caráter (outra hora conto como ele se apropriou indevidamente, meteu a mão, se fez dono, roubou o samba Pelo Telefone).
Pois esse sujeito arrumou uma muzenga com o doce Noel de Medeiros Rosa, acusando-o de plágio.
Negro presepeiro, Donga abriu o berreiro no mundo, alvoroçou redações de jornais, dizendo que Fita Amarela, do sublime Noel, era uma cópia de um samba seu com o maestro Aldo Taranto. Vejam o absurdo; a letra de Fita Amarela está logo abaixo; comparem com estes versos de Donga: ‘‘Quando você morrer/ Não pense que vou chorar/ Vou procurar quem me dê/ O que você não dá’’.
Digam-me vocês: tem alguma coisa a ver? Este Donga era mesmo um bom de um filho-de-uma-puta, nénão?
O compositor e cantor Almirante comprou a bronca, defendeu Noel com vigor. Almirante explicou que ele próprio havia sugerido o tema de Fita Amarela pra Noel, com base numa batucada que corria becos, vielas e morros do Rio: ‘‘Quando eu morrer/ Não quero choro nem nada/ Eu quero ouvir um samba/ Ao romper da madrugada’’.
Bom. Agora que já mandamos, mais uma vez, o Donga de volta pros quintos dos infernos, vamos saborear os versos imortais do Filósofo do Samba. Fita Amarela foi gravado em 1933 na Odeon, com Francisco Alves fazendo dupla com Mário Reis.
Quando eu morrer, não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela gravada com o nome dela
Se existe alma, se há outra encarnação
Eu queria que a mulata sapateasse no meu caixão
Não quero flores nem coroa com espinho
Só quero choro de flauta, violão e cavaquinho
Estou contente, consolado por saber
Que as morenas tão formosas a terra um dia vai comer.
Não tenho herdeiros, não possuo um só vintém
Eu vivi devendo a todos mas não paguei a ninguém
Meus inimigos que hoje falam mal de mim
Vão dizer que nunca viram uma pessoa tão boa assim.
Já conversamos aqui no balcão, sobre a facilidade fenomenal de Noel em incorporar novos versos às suas obras. A maioria das gravações de Fita Amarela termina da forma como está acima. Mas há outras versões que trazem estes versos adicionais:
Quando eu morrer, não quero choro nem vela
Quero uma fita amarela gravada com o nome dela
Quero que o sol não visite o meu caixão
Para a minha pobre alma não morrer de insolação
Canta, Araci!UM GOLE A MAIS: Aqui em Taboão da Serra, Noel Rosa é homenageado com uma rua. O prefeito da época, Armando Andrade, sabia das coisas. Deu nomes de artistas a todas as vias daquele loteamento. Como artista é boêmio, geralmente beberrão, o bairro só poderia chamar-se Jd Santo Onofre, o santo padroeiro dos cachaceiros...
Nenhum comentário:
Postar um comentário